O ministro Fachin votou contra o governo recentemente na questão do impeachment; mesmo assim continua a crença generalizada de que ele não é independente (ao menos frente ao PT). O Ministro Gilmar destoa muitas vezes das diretrizes da direita liberal (PSDB) e ainda assim muitos dizem que ele não é independente (frente ao grupo de poder que o nomeou). Esse cenário sempre nebuloso deveria ser modificado prontamente; com isso teríamos melhoras institucionais sensíveis.
Do ponto de vista formal a República Federativa do Brasil tem na separação dos poderes (Legislativo, Executivo e Judicial) a base do Estado Democrático de Direito. Na realidade, essa separação está longe de ser uma verdade incontestável.
Todo “poder” que depende do dinheiro do caixa central do Estado constitui um “meio-poder”. A falta de independência financeira assim como a politização dos máximos órgãos judiciais dá abertura para a manutenção ou o incremento de uma república cleptocrata, que todos nós (ressalvados os beneficiários dela) gostaríamos de varrer da nossa história.
A ideia da separação dos poderes foi consolidada no século XVIII e defendida brilhantemente (no livro O Espírito das Leis, de 1748) por Charles de Secondat, conhecido como barão de Montesquieu (1689-1755).
A vergonhosa “Justiça” manipulada descaradamente pelos monarcas ensinou que ela não pode estar subordinada aos políticos. Cada poder tem a função de controlar os demais. Daí o sistema de “pesos e contrapesos” desenvolvido no século XVII por John Locke[1].
A existência da Justiça se explica porque os humanos precisam se defender dos ataques e abusos dos outros humanos (corrupção, violência, fraudes etc.). E quando o agressor é o próprio Estado? Quem vigia o Estado vigilante (como era chamado por Stuart Mill)?
Somente os juízes (e os demais órgãos da Justiça) são capazes, dentro do Estado de Direito, de controlar e, eventualmente, punir pelos seus abusos e arbitrariedades os donos do poder (político, administrativo, militar, econômico, financeiro e corporativo).
A escolha e a nomeação dos ministros dos tribunais superiores pelo Presidente da República (como ainda hoje acontece no Brasil) retratam um dos mais graves defeitos na nossa Justiça. Há outros, mas esse é bastante grave.
Esse vício da “eleição política” do juiz faz com que a separação dos poderes seja, quase sempre, uma utopia. Nesse sentido, se parece com a democracia real (ou republicana): é uma quimera.
O sistema de investidura dos ministros em suas funções merece aprimoramento, porque frequentemente eles são chamados a julgar os atos da presidência ou de integrantes do seu partido.
As castas (os donos dos poderes político, administrativo, militar, econômico, financeiro e corporativo), que já contam – alguns deles – com foro especial, não podem também escolher “seus juízes” (que com elas possuem afinidades, no mínimo, ideológicas ou a mesma visão de mundo).
A Justiça, antes de tudo, tem que ser independente frente ao governo e ao legislador. Onde os juízes não são independentes, só resulta a “harmonia”, que não passa de subserviência.
Quando o governo espanhol propôs uma profunda reforma do Judiciário (1985) para subordiná-lo ao governo (assim é até hoje), todos perguntavam pela separação dos poderes. O escandaloso vice-presidente Alfonso Guerra, em defesa da reforma, disse: “Montesquieu já morreu”.[2]
Se não queremos desistir do Brasil, deveríamos pensar em uma grande quantidade de reformas plausíveis, sobretudo naquelas que possam contribuir para retirar do seu curriculum a fama de república cleptocrata.
Como garantir a independência dos ministros do STF?
Diante da vacância de um cargo, deveria o STF abrir um edital. Todos que preenchem os requisitos constitucionais poderiam se inscrever, exigindo um tempo mínimo de exercício profissional (20 anos, por exemplo). O STF analisaria as qualificações, a vida pregressa e o mérito de cada candidato e faria uma lista sêxtupla.
Ao Congresso Nacional caberia analisar, em seguida, com toda transparência, o curriculum e a vida profissional de cada postulante (dentro de prazo certo), fazendo-se as devidas arguições públicas (o que possibilita o controle democrático). Após essa aprovação pública e democrática de cada candidato, segundo a perspectiva da meritocracia, haveria sorteio para a escolha do ministro, a ser nomeado pelo presidente do STF. Sorteio?
Garantida a idoneidade de todos os candidatos aprovados, é indiferente para a República a pessoa concreta a ser nomeada. Todas estão aptas para o exercício do cargo (em razão dos filtros qualificativos do STF e do CN). O sorteio tem a virtude de evitar a escolha “a dedo” (que na teoria e, muitas vezes, na prática destrói a legitimidade da independência do juiz). A sorte permite o exercício da jurisdição com absoluta independência.[3]
A esse ponto da reforma deveríamos agregar outro: tempo limitado para o exercício das funções de ministro do STF (15 anos, por exemplo), respeitando os direitos dos atuais. Depois de encerrado seu período, ainda se faz mister respeitar uma razoável quarentena (remunerada) antes de poder voltar ao mercado de trabalho (público ou privado).
Reforçar as instituições da República e buscar o aprimoramento educacional do povo em geral, além de lutar pela independência e transparência dos órgãos do controle jurídico dos demais poderes, é o caminho adequado para a defesa da democracia e do Estado de Direito. O novo governo estaria disposto a fazer isso?
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Os aprimoramentos institucionais, para além dos individuais, também são necessários para que possamos tirar o Brasil do atoleiro ético, administrativo, político e econômico em que se encontra. O Brasil não está condenado a ser sempre um país com corrupção sistêmica, uma república cleptocrata. Suas elites são melhoráveis, mas para isso temos que promover as reformas necessárias (sobretudo de comportamentos).
As ideias que são lançadas sob o signo da incrementabilidade pessoal e institucional devem ser factíveis, pois do contrário caímos na retórica dos xamãs, com suas receitas mágicas e exotéricas. Quase tudo que se sugere comporta dilemas, que devem ser enfrentados racionalmente, tomando-se a decisão política mais desejável em cada momento. A redistribuição do poder é um dos segredos dos países prósperos.
A politização, por seu turno, é uma enfermidade grave para todo o Poder Jurídico (juízes e Ministério Público). De qualquer modo, os políticos não teriam sucesso nas suas investidas (às vezes indecorosas) se não houvesse eco dentro das próprias instituições. O Brasil continua sendo uma república cleptocrata, apesar de operações incisivas como a Lava Jato, porque ainda existe uma imensa simbiose entre o mundo político e o jurídico. Muitos integrantes do mundo jurídico ainda se prestam ao jogo de cartas marcadas (por exemplo, segurando o andamento de um processo criminal até que chegue a prescrição). Quando assim procedem, os juízes deixam sua postura de independência de lado e passam a compor as castas (que somente pensam nos seus interesses).
O Brasil tem carência de forças regeneradoras. A Justiça, sob pena de se transformar numa monstruosidade, não pode ter vínculos pessoais ou institucionais com os demais poderes nem tampouco receber favores, sobretudo dos poderes econômicos e financeiros. A magistratura subserviente é um ser disforme, diabólico, movido pelo medo ou pela paixão. Um “juiz” desse jaez pode ser tudo, menos “juiz”.
[1] Ver MONTERO, Daniel. La casta. Madrid: La Esfera de los Libros, 2009, p. 177 e ss.
[2] Ver MONTERO, Daniel. La casta. Madrid: La Esfera de los Libros, 2009, p. 185.
[3] Ver SOSA WAGNER, Francisco. La independencia del juiz: uma fábula? Madrid: La Esfera de los Libros, 2016, p. 260.