Temer entre a ética e a “cordialidade” das oligarquias corruptas

03/05/2016 às 12:04
Leia nesta página:

Alguns analistas mais otimistas estão idealizando o governo Temer que, pelo seu estilo, seria um homem público que se guia pela ética da responsabilidade (de Max Weber), ou seja, seus atos devem ser valorados pelas suas consequências positivas...

Alguns analistas mais otimistas estão idealizando o governo Temer que, pelo seu estilo, seria um homem público que se guia pela ética da responsabilidade (de Max Weber), ou seja, seus atos devem ser valorados pelas suas consequências positivas ou negativas (veja abaixo doze indicações para um governo ético).

Como somos adeptos do “realismo político”,[1] que sugere uma visão realista de cada país (sua formação ética, sua cultura) e de cada momento histórico, partindo da premissa cética sobre a natureza humana (particularmente a natureza das elites políticas e empresariais que sempre mandaram no Brasil), diríamos (torcendo sinceramente para estarmos completamente errados) que Temer e o PMDB (pelos seus históricos) não vão  conseguir o título de primeiros governantes das oligarquias brasileiras a não se guiarem pela Realpolitik de Maquiavel, que pode às vezes não passar de uma chula e rasteira Machtpolitik (política de poder).

O pensamento realista (ou até mesmo pessimista) em relação à política “revela maturidade” (Ludwig Marcuse), não imprudência. Pelo histórico de desmandos, caprichos e corrupção das nossas oligarquias governantes e “co-mandantes” (o lulopetismo é só um exemplo dessa tradição), temos sempre que supor que o pior (Julien Freund) é um horizonte nunca descartável (não tendo nenhuma função ontológica consistente para nossa realidade o refrão de Tiririca no sentido de que “pior que está não fica”).

As oligarquias nacionais nunca se caracterizaram pela objetividade, impessoalidade e racionalidade sistemática na condução da coisa pública. Ao contrário, sempre se mostraram “cordiais” (no sentido de Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil), o que significa que tendem (invariavelmente) a estabelecer suas relações, sobretudo no exercício do poder público, com base na afetividade (típicas das relações familiares) e emotividade.

A escolha de um deputado para ser ministro de Temer poderia estar vinculada ao fato de ele, no momento da votação do impeachment de Dilma, ter sido o voto 342 (número necessário para que a Câmara autorize o processamento do presidente). Essa escalação lotérica seria mais uma evidência do governante “cordial” (no sentido explicitado), que é aquele que age com o coração, com a paixão, com os sentimentos, com a afetividade, com a emoção.

Assim as oligarquias têm administrado o Brasil (seja de esquerda ou de centro ou de direita – “Nada há de mais parecido com um saquarema – conservador – do que um luzia – liberal – no poder” – Holanda Cavalcanti), confundindo frequentemente a coisa pública com os bens privados (patrimonialismo). Do patrimonialismo surgiram todos os demais “ismos” imaginários: fisiologismo, amiguismo, nepotismo, filhotismo etc.

A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas, sobretudo em relação a Temer, para além de um traço do caráter do brasileiro, modulam a “cordialidade” das oligarquias com todos aqueles que lhe são próximos (chegam a ponto até de formar carteis), ficando a boa governança da coisa pública (muitas vezes) em segundo plano.

Veja mais (uma breve viagem pela filosofia que une a ética com a política)

Falar em ética na política, normalmente, é falar de uma Ilha da Fantasia. Mas não custa exercitar sobre como o “ser” “deveria ser”.

Ética racional “versus” ética religiosa

A observação histórica nos permite inferir que o tribunal ético de quem exerce o poder político reside ou em uma ética racional (referências morais racionais, que governaram na Grécia o poder pré-cristão) ou em um Deus (referências morais divinas, como as cristãs, na Idade Média e até o Renascimento, excluindo-se Maquiavel)[2].

A questão, muitas vezes, não é a falta da ética pública (como ocorre com o sistema político-econômico brasileiro), sim, a possibilidade cênica de várias éticas (até mesmo conflitivas). Mais: nem sempre as leis humanas (a ética racional ou supostamente racional das cidades, do Estado, das leis gerais, impessoais) estão em consonância com as leis divinas (ética das famílias, dos povos, das leis pessoais). É aí pode surgir o problema da desobediência civil (da rebeldia, tal como a de Antígona).

Conta o dramaturgo Sófocles (497 ou 496 a.C. – 406 ou 405 a.C.), na tragédia Antígona (cerca de 442 a.C), o seguinte:

  • Os dois filhos de Édipo (Etéocles e Polinices), depois do seu falecimento, se mataram, na luta pelo trono de Tebas[3]. Assume o poder Creonte, que é um parente próximo da linhagem de Jocasta (mãe de Édipo). Seu primeiro édito dizia respeito ao sepultamento dos irmãos Labdácidas (casa dinástica que reinou em Tabas). Etéocles receberia o cerimonial devido aos mortos e aos deuses. Polinices teria seu corpo largado a esmo, sem o direito de ser sepultado e deixado para que as aves de rapina e os cães o dilacerassem. Creonte entendia que isso serviria de exemplo (de intimidação) para todos os que pretendessem intentar contra o governo de Tebas. Antígona, irmã dos dois, insurgiu-se contra a lei do Estado, lei de Creonte (= lei da pátria), para dar a Polinices os ritos sagrados aprendidos com sua religião. Eis o conflito entre as leis humanas (ética supostamente racional) e as leis divinas (ética divina). É nítida a “desobediência civil” (a rebeldia). Para Antígona a lei da cidade (do Estado) não podia se sobrepor à lei da família, dos deuses. É a fé se sobrepondo à lei terrena. A lei particular preponderando sobre a lei geral[4]. Ismênia, irmã de Antígona (e também dos dois mortos), para livrá-la de responsabilidade, confessa o crime do sepultamento digno (que não cometeu). Ambas são condenadas à morte por Creonte. Hêmon, filho de Creonte, no entanto, se apaixona por Antígona e ainda informa ao pai que o povo nas ruas está de acordo com as convicções dela. Mas a vaidade e o poder já tinham tomado conta de Creonte, que acredita ser o único a poder ordenar e governar aquele país (“É a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar?”; “Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?”). O filho ainda tenta trazê-lo à razão: “Não tens respeito pelo seu poder soberano quando menospreza as honras devidas aos deuses”. Hêmon ameaça se matar se o pai não anular o seu ato. O tirano aprisiona Antígona cruelmente (para que ela tenha uma morte lenta). Tirésias, adivinho conhecido e respeitado por todos, adverte Creonte do mal que irá se abater em sua vida devido à sua teimosia, e que os deuses estão enfurecidos. Ele se mantém irredutível, mas após a partida do adivinho é convencido pelo coro a libertar Antígona e sepultar Polinices. Não teve tempo para isso: Antígona morreu e, Hêmon (filho de Creonte), se suicidou; em seguida a esposa de Creonte (Eurídice) fez a mesma coisa, ao saber da morte do filho. Creonte com sua lei supostamente racional venceu, mas perdeu para toda eternidade a futura nora, o filho e a esposa.

Na dramaturgia de Sófocles preponderou como pauta ética a lei do Estado (a lei humana), mas a um custo extraordinariamente trágico. Hoje um conflito ético desse jaez (racional “versus” divino) continua se estabelecendo entre a Constituição (lei do Estado, lei humana) e as crenças religiosas (casamento entre pessoas do mesmo sexo – ver autorização do STF na ADI 4.277 e na ADPF 132 -, uso de embriões, aborto anencefálico – ver permissão do STF na ADPF 54 – etc.).

Está estabelecida a aporia entre a “bancada da bíblia” (dentro do Congresso Nacional) e a Corte Suprema (STF). Mas no Estado laico o predomínio é indiscutivelmente da Constituição. Esse embate está na iminência de ser repetido no que diz respeito ao conceito de família. A perspectiva é a mesma: qualquer restrição ao espírito constituicional laico (muito provavelmente) será derrubada no STF.

Ética racional

Na filosofia clássica grega (Sócrates-Platão-Aristóteles) a ética (racional) não tem fundo religioso e, ademais, não estava separada da política. Não se imaginava o indivíduo (sujeito que toma decisões em nome da cidade, do Estado) com capacidade de desenvolver virtudes e qualidades morais fora da organização social que constitui a polis[5]. É um idiotés o que se recusa a participar da vida pública. O homem é um animal político (zoon politikon), logo, sua ética é, ao mesmo tempo, pessoal e política. O bem do indivíduo coincide com o bem da sociedade (Aristóteles). Isso se realiza por meio da razão (ética racional).

Ética religiosa

Durante toda Idade Média e até mesmo no Renascimento (excluindo-se Maquiavel) ganhou força (no mundo ocidental) a ética divina cristã (isso se deu de Santo Agostinho – 354 d.C. a 430 d.C. – até o século XVI).

A racionalidade do mundo grego desapareceu (durante a era medieval). No seu lugar entrou a visão bíblica, o dogma cristão, que é o que deveria inspirar as decisões políticas. É a lei de Deus que comanda a vida pública. Os monarcas eram representantes de Deus na Terra. O Direito era divino.

A colonização do Brasil tinha propósito mercantilista (expropriatório, espoliador), mas ao mesmo tempo foi envalizadora. Deus é a referência moral da vida política, que é julgada não pelo antropologismo grego, sim, pela ética cristã. Para quem quer assumir funções reinantes (de governo) é absolutamente imprescindível a “instrução cristã”, posto que o poder é exercido sob o império da moral divina.

O Antigo e o Novo Testamento palmilham a trilha ética a ser seguida por todos aqueles que querem ser virtuosos morais: não ser soberbos, nem avarentos, nem adúlteros, evitar prazeres efêmeros, conhecimento das leis que regulam a bem comum, imparcialidade, temer a Deus, benevolência, não ser arrogante nem iracundo etc.[6]

Ao longo da História, como se vê, o problema da relação entre política e ética sempre requisitou uma instância referencial, já evidenciada na dramaturgia de Sófocles e situada acima dos poderes seculares adversários: na filosofia clássica romana predominou a ética racional (ética e política não se separam); na era medieval e monárquica (na Europa) e colonial e imperial (no Brasil) teve grande influência a ética cristã (o divino convive com o político). Dessa forma discorreu a relação entre política e ética até o século XVI.

Modernidade

Dentre tantos outros, pelo menos quatro filósofos da modernidade não podem deixar de ser lembrados: 1) Hobbes (1588-1679), para quem a moral deveria se subordinar ao poder político; Kant (1724-1804), para quem o poder político é que deve estar subordinado à moral; 3) Hegel (1770-1831), para quem a moral pode ser superada pelo poder político e 4) Max Weber (1864-1920), para quem o poder político deve estar aberto à moral[7].

De cada um dos quatro filósofos poderíamos extrair pelo menos três indicações morais relevantes para se valorar as oligarquias dominantes e governantes, frequentemente entregues à cleptocracia. São elas: equidade, transparência e receptividade em Hobbes, universalização, publicidade e dignidade em Kant, progresso rumo à liberdade, realização de fins universais e direitos sagrados em Hegel e serviçalidade, ética das convicções e ética da responsabilidade em Max Weber[8].

Sucintamente, eis as doze indicações éticas listadas (três de cada filósofo), que servem de limites ao poder e à política[9]:

1ª) Hobbes, no seu livro Leviatã (publicado em 1651), conferia todo poder ao soberano, que não deveria se sujeitar a limites morais externos. Por força do (suposto) pacto social firmado pelos cidadãos, teríamos que aceitar todas as decisões desse soberano. Mas do capítulo 30 do seu livro podemos extrair algumas indicações morais: “que pobres e ricos, poderosos e humildes, devem ter seus direitos reconhecidos quando tenham sido injuriados”; “deve-se evitar a impunidade, seja da violência, seja da desonra” (é o império da lei e a certeza do castigo); trata-se da regra da equidade, que obriga a todos;

2ª) O soberano deve publicar leis boas, indispensáveis, não necessariamente justas (sic); o que é produzido pelo rei tem que ser observado (sic); as leis devem ser compreensíveis, claras, inequívocas; leis não necessárias são “trampas para fazer dinheiro”; devem ser publicadas as causas e os motivos das leis; trata-se do critério ético da transparência;

3ª) O soberano deve cercar-se de bons conselheiros, que tenham conhecimento, que se dediquem à defesa da República; também é preciso ouvir o povo, “que está mais familiarizado com suas necessidades”; sem bases populares, que não contradigam a soberania, o Estado não pode subsistir; trata-se do critério de receptividade (o soberano deve ser receptivo tanto aos conselhos dos auxiliares como da queixas da população);

4ª) Posição oposta à de Hobbes foi a assumida por Kant[10] (o exercício do poder tem limites morais – ver seu livro A paz perpétua); “a verdadeira política não pode dar um passo sem antes ter-se rendido às regras morais”; havendo conflito entre a moral e a política, prepondera naturalmente a moral; na prática, se sabe, as coisas não são bem assim, porque não é rara a figura do “moralista político”, que evoca a doutrina de Maquiavel para ampliar ou manter continuamente seu poder (forjando uma moral para cada ato que realiza); o “moralista político” (que é o oposto do “político moral”) transforma os conflitos morais em problemas técnicos, que devem ser resolvidos com habilidade; quais princípios morais guiaram o político? O primeiro se fundamenta no critério ou lei da universalização: “Age como se (a máxima de) tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal”.

5ª) A publicidade é o melhor instrumento de concretização dessa lei (assim como de todos os demais imperativos categóricos); não pode prosperar a máxima de que o político não possa se manifestar em voz alta, em público (o sigilo contraria o direitos dos demais); todas as máximas que necessitam de publicidade estão de acordo com o direito e a política bem como com o interesse geral do povo;

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

6ª) O terceiro imperativo categórico que rege a relação entre a ética e a política reside no critério da dignidade: “Atue de tal modo que use a humanidade (sua ou dos terceiros) sempre como um fim em si mesmo, nunca como meio”; o humano não pode nunca ser instrumentalizado (sua dignidade deve sempre ser respeitada); toda decisão tem que ser preocupar em não usar os humanos como meios para alcançar fins imorais ou ilegítimos; o Estado não pode usar seus policiais ou seu exército como mero instrumento; não é moral pagar dinheiro para pessoas serem mortas ou matarem outros humanos; os policiais não podem ser meras máquinas e instrumentos nas mãos do Estado;

7ª) A moral pessoal pode ser superada pelo poder político em algumas situações, diz Hegel (quem defende que não existe um código moral pessoal que imponha valores distintos aos da prática política). A História reflete sempre o “espírito do povo” (não um indivíduo particular), que sempre se declinou pela liberdade; os agentes públicos devem guiar seu povo por esse espírito, daí sua primeira indicação moral: a humanidade caminha para o progresso da liberdade. Grande é o político (o herói) que consegue avançar nesse sentido (para o progresso da liberdade);

8ª) O direito e a ordem social são criados para controlar os interesses egoístas (bem como as paixões) dos humanos; o fim universal da história reside nos fins particulares dos grandes políticos, que são os instrumentos da sua realização; grandes humanos da História são os que se dedicam a realizar fins particulares que contêm o espírito universal. Aqui reside o critério da realização dos fins universais (por meio da concretização dos fins particulares dos grandes políticos); se o fim particular não realiza um fim universal nos encontramos diante do capricho e de uma imoralidade; a paixão não é em si imoral, quando se concretiza num fim universal; o fato de os poderosos buscarem seus próprios interesses não significa automaticamente uma imoralidade, desde que coincidente com os fins universais;

9ª) “Uma grande figura que caminha, massacra muitas flores inocentes e destroi por força disso muitas coisas por onde passa” (Hegel). Mas há um limite (para essa grande figura política): o dos direitos [fundamentais] sagrados (a dignidade humana, por exemplo, na linguagem de Kant). Mas, e se o ato político atende os fins universais? Nisso reside a ambiguidade de Hegel (que admitiria em favor dos grandes humanos a destruição de “flores inocentes”. Ocorre que nenhum humano pode ser utilizado como meio para se alcançar um determinado fim (Kant). Mais: a noção de direitos sagrados é incompatível com a destruição de “flores inocentes”. Em última instância, a flexibilização dos direitos sagrados para a realização do progresso da liberdade, da estabilidade do Estado, da paz social, do bem-estar geral etc. evoca a regra de ouro ditada por Maquiavel, de que os fins justificam os meios (os bons fins justificam todos os meios, ainda que destrutivos de direitos sagrados).

10ª) Max Weber encerra o quarteto filosófico selecionado. Para ele, quem faz política (quem a exerce por profissão ou esporadicamente ou ainda, acrescentaríamos, quem procura estar bem posicionado dentro do Estado para influenciar as decisões políticas) aspira ao poder, seja para conseguir outros fins (idealistas ou egoístas) ou simplesmente pelo puro amor ao poder (prestígio, privilégios, ostentação etc.). Há duas maneiras de se exercer a política (diz Weber): (a) há aqueles que vivem para a política (são os que querem servir à causa pública, independentemente de remuneração); (b) e há aqueles que vivem da política (que são os assalariados ou funcionários, que dependem da política para viver). A essas duas maneiras eu agregaria uma terceira (que constitui a espinha dorsal do clube da cleptocracia brasileira): há ainda os pilhadores, os que vivem para se enriquecer ilícitamente ou ilegitimamente com a política (leia-se: para pilharem o patrimônio público ou o poder por meio da governança ou da posição de domínio sobre a sociedade = por meio da política). “Quem gosta muito de dinheiro deveria ser afastado da política” (diz José Mujica)[11], que acrescenta: “a vontade de ter [muitos] bens materiais” não se relaciona bem com o serviço público; “Sempre disse aos empresários: se eu souber que pediram alguma propina a vocês e vocês não me avisaram, teremos uma relação péssima. Com essa declaração, não havia abertura para que me oferecessem nada”; “Se misturamos a vontade de ter dinheiro com a política estamos fritos. Quem gosta muito de dinheiro tem que ser tirado da política”; é preciso castigar essa pessoa porque ela gosta de dinheiro? Não. “Ela tem que ir para o comércio, para a indústria, para onde se multiplica a riqueza”, declarou. Bonete Perales chama a primeira limitação de Weber de critério da serviçalidade[12] (ou seja: é moralmente válida a atividade de servir à causa política, à sociedade, não a de se servir da política para se enriquecer ilícita ou ilegitimamente);

11ª) A ética da convicção (agir de acordo com alguns princípios éticos) e a ética da responsabilidade (prestar atenção nas consequências dos atos) completam a concepção trinária de Max Weber, para quem: “Há uma diferença abismal entre seguir a máxima da ética da convicção, tal como a que ordena (religiosamente falando) que “o cristão obra bem e deixa o resultado em mãos de Deus” ou segundo a máxima ética da responsabilidade, como a que ordena ter em conta as consequências previsíveis da própria ação”[13]. Para Weber, ademais, toda ética da convicção deve ter publicidade, deve ser clara (todos devemos dizer a verdade). Ela se caracteriza por não prestar atenção nas consequências dos atos; os fins não podem justificar os meios; se os meios são moralmente censuráveis, os fins não restam justificados;

12ª) Mas é fundamental ao político também prestar atenção nas consequências dos seus atos (aqui reside a ética da responsabilidade). Os meios podem ser moralmente justificados, mas às vezes as consequências do ato são extremamente desastrosas (veja acima o sofrimento que Creonte teve que suportar, para manter a coerência da sua ética de convicção). De outro lado, a ética da responsabilidade ainda diz o seguinte: “Nenhuma ética do mundo pode desprezar o fato de que para conseguir fins bons é preciso contar em muitos casos com meios moralmente duvidosos ou perigosos, e com a possibilidade ou até mesmo a probabilidade de consequências laterais moralmente más”. Não é verdade que “do bem só pode resultar o bem e do mal só pode decorrer o mal”. As coisas não são tão lógicas no mundo da política e do poder. De qualquer modo, mesmo tendo presente a ética da responsabilidade, o político não está impedido de se abrir para a ética da convicção (dos princípios), para tomar as decisões mais justas possíveis. A duas éticas (da convicção e da responsabilidade) são complementares.

No fundo, Weber suaviza a ética dos princípios de Kant (dizendo que o político também leve em conta as consequências). Ambos, no entanto, coincidem que o poder e a política não podem ser exercidos sem ética. Muito mais flexíveis são Hobbes e Hegel (que colocam em primeiríssimo plano a política). A moral está subordinada à política, ao soberano (Hobbes). Ou a moral pessoal pode ser superada pelas grandes decisões dos (herois) políticos (Hegel). A combinação de Weber com Kant oferece limites mais estreitos à atuação política. As ideias de Hobbes e Hegel são tendencialmente maquiavélicas (libera o político da ética), mas isso não significa que eles não ofereçam qualquer limite às decisões políticas, como vimos.

Maquiavel (política maquiavélica)

É de se lamentar que todos os princípios éticos que acabam de ser sintetizados sejam, em regra, uma quimera (uma fantasia, uma mitologia) para nossa realidade política. O jogo cênico político no Brasil é muito mais dinâmico e velhaco (bilontra, tribofeiro, consoante a linguagem do século XIX) que as pautas recordadas. Há exceções, claro, mas a regra geral vigente é a que confunde preceitos morais com posturas municipais (não dando valor a nenhuma delas).

Nossa República, seguindo José Murilo de Carvalho[14], que prometia democracia, de pronto excluiu a participação popular. Predominou (e, em certo sentido, ainda predomina) a ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico (leia-se: de poucas famílias, clãs, grupos, blocos).

Toda teoria “radical” (Kant) sempre foi posta de lado. O peso das tradições escravista, colonial e neocolonial (a partir de 1822) obstrui o desenvolvimento pleno das liberdades civis assim como as relações do cidadão com o governo. Nunca impressionou eficazmente os arroubos libertários do liberalismo. Ao menos no seu sentido prático. Esse panorama não se altera nem mesmo com as sucessões ad infinitum das regras jurídicas. As mais novas se sobrepõem às antigas, sem a fixação de padrões comportamentais genuinamente liberais.

Fixada a tábua das doze regras relacionadas com o exercício ético do poder político, não cabe dúvida que todos os que reinam – governam – ou que dominam poderiam, com lucidez e inteligência, construir um código ético de aprimoramento de uma verdadeira democracia, que é totalmente incompatível com as perniciosas atividades de pilhagens do clube das aligarquias cleptocratas. Sócrates disse que “a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”.

Uma carreira política (desenvolvida por quem reina ou por quem domina), sem ter consciência e prática das bases éticas mínimas (do quilate dos filósofos modernos aqui expostos), teoricamente não valeria a pena ser empreendida. Precisamente é essa ética pública que nos falta (desde a raiz). Sem ética e sem educação de qualidade para todos, o Brasil sempre será uma nação (globalmente falando) fracassada.

Nosso sistema político rompe, ab initio, com a lógica da ética pública e se encosta em Maquiavel (1469-1527), que escreveu (em 1513), dentre outros, do livro O Príncipe: para esse pensador florentivo, moral e política devem ser enfocadas de forma totalmente autônoma (uma não se vincula à outra); quem exerce o poder político não deve se guiar por critérios ou códigos morais ou religiosos; a política não se confunde nem com a ética (ou moral) nem com a religião.

A vida política (a Realpolitik) é regida por critérios próprios, que não se correspondem a cenários imaginários, ou seja, nem com a organização ideal do Estado (sugerida por Platão), nem pela antropologia racionalista de Aristóteles nem pelos dogmas cristãos (Idade Média e Renascimento).

As decisões políticas estão subordinadas a outras regras mais profanas. A política tem sua dinâmica própria, ainda que o político tenha sua ética pessoal[15]. É previsível que o clube das aligarquias cleptocratas renda homenagens diárias a Maquiável, embora nem ele entenderia tudo que aqui se passa nas relações do poder.

 

[1] Defendido, por exemplo, por NEGRO PAVÓN, Dalmácio. La ley de hierro de la oligarquia. Madrid: Encuentro, 2015, p. 9 e ss.

[2] Ver TITTER, Gerard, citado por BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 11.

[3] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%ADgona_(S%C3%B3focles), consultado em 18/01/16.

[4] Ver HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 141.

[5] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 12.

[6] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 13.

[7] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 15 e ss.

[8] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 15 e ss.

[9] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 17 e ss.

[10] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 18-20.

[11] Ver http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150423_entrevista_mujica_cc, consultado em 19/01/16.

[12] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 25.

[13] Citado por BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 25.

[14] Ver CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. 3ª edição, 24ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 161-163.

[15] Ver BONETE PERALES, Enrique (ed.), Poder Político: Límites y corrupción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014, p. 14.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos