Densidade constituinte:breves olhares sobre as leis fundamentais do Maranhão

Leia nesta página:

1 INTRODUÇÃO

Constitucionalismo pode ensejar diversas interpretações, a depender da perspectiva adotada como base na análise do tema. A partir da obra de André Ramos Tavares, elencada por Pedro Lenza[1], pode ser entendido como movimento de caráter político que objetiva impedir o poder arbitrário ou mesmo representar o período histórico marcado pelo surgimento dos textos constitucionais nos países. Pode representar a evolução constitucional dos Estados ao longo da História ou, ainda, a busca em garantir direitos fundamentais, através de uma estrutura limitadora do governo, separadora de poderes e que tem a constituição como norma jurídica central, exercendo força superior sobre as demais normas.

A questão é determinar a relação do termo com a Constituição enquanto texto fundamental e se a mesma possui maior enfoque jurídico ou político. Sua importância política se substancia na determinação de parâmetros racionais capazes de disciplinar as relações cotidianas. Já sua dimensão jurídica, como aponta Celso Ribeiro Bastos[2], é verificada a partir do momento em que ela regulamenta de forma legal o exercício do poder, através dos conteúdos nela escritos, dividindo-os e dando a eles maior organização.

Muito embora os doutrinadores didaticamente estabeleçam como marco para o constitucionalismo moderno o período das grandes revoluções do século XVIII, dando início à concepção de Constituição real e de conteúdo material, pode-se identificar de acordo com as lições de Paulo Ferreira da Cunha[3], uma organização política já existente, uma Constituição natural que, ainda possuindo caráter rudimentar e carecendo de institucionalização, pode ser verificada como força matriz presente ao longo da história, capaz de fazer contraponto ao paradigma que fundamentava o poder na origem divina do rei, buscando-se, conforme as lições do professor José Cláudio Pavão Santana[4], avanços no sentido de se organizar a sociedade de forma racional, tendo-se o homem como centro. Poder-se-ia falar, portanto, em uma fase pré-constitucional que revela vários constitucionalismos ou movimentos rumo ao constitucionalismo, segundo uma ideologia ou teoria, como aponta José Joaquim Gomes Canotilho[5] e não como forma estanque ou pronta. Em mesma linha de pensamento André Ramos Tavares[6].

Tal enfoque em busca da identificação da presença de uma força constitucional anterior ao momento do constitucionalismo decorrente das revoluções do século VXIII pôde ser verificado não somente nos Estados europeus, projetando-se ao continente americano no período das colonizações e assumindo relevância no estudo do constitucionalismo no referido continente. Neste cenário, utilizando-se do pensamento do supracitado professor José Cláudio Pavão, o presente texto tem por finalidade apresentar, em adoçada síntese, algumas características das Leis Fundamentais do Maranhão, bem como suas distinções quanto ao Brasil Colônia, enquanto conjunto de normas que, embora existente em momento anterior à época da eclosão dos textos constitucionais, pode revelar traços muito peculiares que às aproximam destes.

2 AS LEIS FUNDAMENTAIS DO MARANHÃO E SUAS RELAÇÕES COM O MOVIMENTO CONSTITUCIONALISTA

As Leis Fundamentais do Marnahão são normas instiuidas pelos franceses na faixa litorânea colonizada por eles ao norte do território pertencente à Portugal por meio do tradado de Tordesilhas. Os franceses, em desacordo com as disposições do referido tratado –  por ele não tendo direitos sobre o território americano – estabeleceram nas terras maranhenses uma colônia no ano de 1612, objetivando a fundação da França Equinocial.

Aos moldes das cartas reais que eram os documentos utilizados como legitimação das terras colonizadas, tais leis traziam ordenações e bases para a organização social daquela sociedade, sendo escritas, publicadas e arquivadas em território colonial maranhense, servindo como normas invioláveis e referenciais. A colonização teve traços diferentes da realizada por Portugal nos restante do território, sendo marcada por uma proximidade não hostil, pela maior integração de ações e prestações entre colonizadores e nativos, não ocorrendo, de forma unilateral. A França garantia entensão de seu poder real e territórial além do Atlântico e os nativos receberiam os ensinamentos cristãos e maior proteção contra povos inimigos.

Muito embora historicamente seja conferida grande relevância à Constituição dos Estados Unidos da América como documento-chave para o estudo evolutivo do constitucionalismo, enquanto processo de transformação de um estado real para um estado legal e de racional organização da sociedade, as Leis fundamentais do Maranhão vão também ser forma de legitimação e de projeção do poder, cabendo destacar, a partir das lições do professor José Cláudio Pavão Santana, aspectos que nos levam a identificar em tais normas origem e força constituinte.

Um primeiro aspecto diz respeito à competência para a elaboração das normas no contexto da territorialidade. As cartas-patentes por meio das quais Espanha e Portugal asseguravam a exploração dos territórios e as prerrogativas de natureza penal e cível aos colonizadores, mas ao mesmo tempo, os vinculavam de tal maneira que os mesmos não realizavam produção de normas – dado que tais documentos eram formulados nas metrópoles. No território colonizado pela França o procedimento deu-se de modo diverso, uma vez que as práticas e regulações sociais, bem como as decisões administrativas gravitavam em torno dos costumes e discussões colegiadas e que levariam à exigência de sua positivação por meio da criação de leis no território americano[7].

Tal reflexão faz com que seja possível identificar um elemento peculiar na formação normativa das Leis Fundamentais do Maranhão, qual seja a marcante natureza contratualista. As regras que dela se projetaram foram criadas com base em princípios de maior enfoque político e jurídico do que mercantil, somando-se ainda elementos que simbolizavam a reunião de vontades dos franceses e índios. Tal caráter contratual, também se consubstancia na preocupação em estabelecer regras de convivência e também servir como repositório para o solucionamento de situações futuras de conflito, tanto pessoais como institucionais, revelando sua densidade jurídica.

Outro elemento relevante para a verificação da aptidão constitucional das Leis Fundamentais do Maranhão diz respeito à soberania. Em primeira perspectiva, verificou-se certa transcendência aos limites de situações ordinárias para as Leis Fundamentais do Maranhão, não apenas regulando as condutas em sociedade, mas garantindo direitos fundamentais, tais como à propriedade francesa do território em detrimento á divisão de terras entre Espanha e Portugal, reconhecendo na França Equinocial um Estado soberano.

Ademais, destaca-se à vinculação das Leis Fundamentais do Maranhão a outra norma. Identifica-se a legitimidade das regras a partir de sua compatibilidade com uma Norma ou Lei Fundamental que representa sua base jurídico-política. Assim, as Leis Fundamentais do Maranhão não poderiam ser qualificadas enquanto norma central, haja vista sua vinculação à outra norma, qual seria a carta patente conferida pelo Rei da França aos colonizadores. Tal vinculação resultaria no desaparecimento da essência de soberania e, por conseguinte, na descaracterização de sua natureza constituinte. No entanto, pelas lições de Carlos Ayres Britto, o poder constituinte é latente e se manifesta de forma desvinculada ao aspecto formal da norma. É o próprio povo, sendo a primeira manifestação da soberania[8]. Nesse sentido, conforme as lições do professor José Cláudio Pavão Santana, a soberania também se faz presente no próprio reconhecimento das Leis Fundamentais do Maranhão enquanto instrumento formador do Estado da França Equinocial pela Coroa Francesa[9].

Quanto ao aspecto cronológico, o autor supracitado aponta como documento mais remoto presente na América, suscetível de análise sob foco constituinte, a Carta Colonial da Virgínia de 1606, documento por meio do qual se aplicavam por extensão os direitos dos ingleses aos colonos. Em tal perspectiva aponta-se a ausência de originalidade do documento, visto que tal Carta fora enviada da capital inglesa, traslado que não ocorreu com as Leis Fundamentais do Maranhão, texto produzido no próprio continente. Daí o autor em epígrafe concluir ser este o documento formal com natureza constitucional mais remoto elaborado no continente americano.

Por fim, vale destacar a densidade normativa das leis Fundamentais do Maranhão como característica presente na própria estrutura formal de seus enunciados. O texto traz regras que podem ser sistematizadas em torno da origem, das normas de salvaguarda, proteção dos nativos e regras de natureza penal. A força constituinte de tal documento se manifesta pelos os objetivos políticos refletidos nas regras. Por meio da análise das normas contidas no documento, pode-se verificar relações de ação e imputação, cuja validade está na Norma Fundamental, possibilitando-se a teorização no plano lógico-jurídico como também a observação e concretização da norma na sociedade de forma eficaz.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da breve análise do constitucionalismo, suas mais variadas interpretações e sua evolução, pode-se concluir que o mesmo está diretamente ligado à verificação dos principais fenômenos políticos que influenciaram o seu fortalecimento no decorrer da história. Nessa perspectiva, muito embora seja utilizado pelos doutrinadores o recurso da delimitação temporal como forma de facilitar a compreensão acerca do constitucionalismo, não pode o mesmo ser entendido tão somente a partir do período das grandes revoluções do século XVIII, haja vista que as implicações políticas e jurídicas ocorridas desse período em diante já possuíam elementos históricos forjados em momentos muito anteriores, desde a Magna Carta Libertatum do século XIII, com vistas à limitação de poderes reais.

Em meio à busca pela ampliação territorial em novos continentes pode-se verificar que as potências europeias que chegaram ao continente americano realizaram seus processos colonizatórios de modos distintos, a depender da natureza política do empreendimento, buscando-se explorar os recursos naturais, abastecendo a metrópole ou almejando o povoamento com base em estruturas formais reguladoras da convivência e a criação de novos Estados soberanos.

Assim, é indubitável a representatividade que tais Leis adquirem na análise do movimento constitucionalista na América, à medida que, ao estabelecerem os preceitos que fundamentaram e qualificaram com legitimidade a criação do Estado da França Equinocial, as Leis Fundamentais do Maranhão passaram a adquirir densidade jurídica, regulando as relações entre os destinatários e estabelecendo sanções para condutas adversas. Ao mesmo tempo, possuem notável densidade constituinte, dados os seus contornos de marco instituidor, quais sejam, o status fundamental, orgânico e vinculativo no plano político.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

REFERÊNCIAS

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito  Constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.

CUNHA, Paulo Ferreira da. Raízes da República – introdução histórica ao Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2006.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

SANTANA, José Cláudio Pavão. As Leis Fundamentais do Maranhão: Densidade Jurídica e Valor Constituinte. A contribuição da França Equinocial ao constitucionalismo americano. 2008. 258 f. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) – Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2008.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
 

[1] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 56

[2] O constitucionalismo, segundo o autor seria “[...] o movimento de valorização da judicialização do poder, com a finalidade de dividi-lo, organizá-lo e discipliná-lo, bem como da elevação de tal norma a condição de legislação suprema do Estado.” (BASTOS: 2010, p. 149)

[3] CUNHA, Paulo Ferreira da. Raízes da República – introdução histórica ao Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2006.

[4] “A Construção do constitucionalismo, portanto, decorreu da necessidade de se encontrar, através de um meio alheio à origem divina, um fundamento de legitimação do poder. Para tanto os ideais iluministas de Locke, Rousseau e Montesquieu foram fundamentais, irradiando-se por todo o mundo e no Continente Americano pelas obras de Jefferson, Adams, James Madison, George Mason e Outros.” (SANTANA: 2008, p. 32)

[5] O autor define constitucionalismo como sento “[...] teoria (ou) ideologia que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma sociedade.[...]”(CANOTILHO:1993, p.51)

[6] “[...] é errôneo supor que o constitucionalismo surgiu apenas com o advento das revoluções modernas, que instauraram a democracia e afastaram os regimes absolutistas até então existentes.” (TAVARES: 2011 p. 25)

[7] “Essa singularidade torna visível o critério da territorialidade. É que as Leis Fundamentais do Maranhão inauguraram a concepção de uma norma com objetivos instituintes de uma ordem jurídico-política no Continente Americano. Aqui foram concebidas escritas e publicadas, donde se concluir pela sua natureza inaugural, pioneira, no território.” (SANTANA: 2008, p. 120)

[8] [...] O Poder Constituinte é o criador da Constituição porque ele, sendo a primeira manifestação da soberania, é o próprio povo. É a polis por completo [...] (BRITTO: 2003, p. 41).

[9] “Sucede que a cláusula que fundamenta às Leis Fundamentais do Maranhão como instrumento constituinte reserva a expressão de Constituição de um único Estado soberano, no caso, o Estado da França Equinocial. Nesse Sentido, formal e materialmente a norma que examinamos neste tópico dispõe de força constituinte, servindo como declaração da vontade soberana do poder monárquico.” (SANTANA: 2008, p. 151)

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Roberto Cleyton dos Santos Gomes

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos