Fazenda sol nascente: um conflito agrário e judicial trintenário.

Análise jurídica sob a ótica do direito civil e do Estatuto da Terra

11/05/2016 às 13:43

Resumo:


  • O pagamento em atraso do preço ajustado pelo promitente comprador e aceito pela autarquia configura purgação da mora contratual e adimplemento da cláusula estipulada no contrato preliminar de compra e venda.

  • A destinação do imóvel rural deve ser compatível com a posse agrária exercida pelo promitente comprador, caracterizada pelo trabalho e atividades agropecuárias, sem necessidade de elementos técnicos para verificar o cumprimento dos princípios elencados no Estatuto da Terra.

  • O processo administrativo de liberação de cláusulas resolutivas não deve ser automaticamente suspenso devido à existência de ação judicial em andamento, sendo possível a decisão administrativa enquanto pendente ação judicial, desde que não haja risco de decisões contraditórias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Esse artigo jurídico tem como escopo analisar os aspectos jurídicos, que envolvem o imóvel rural FAZENDA SOL NASCENTE, objeto de inúmeras decisões judiciais e de conflitos agrários na região de Guajará-Mirim, Rondônia

 Esse artigo jurídico tem como escopo analisar os aspectos jurídicos que envolvem o imóvel rural FAZENDA SOL NASCENTE, adquirido por Zuleica Yoshiko Morimoto, objeto de inúmeras decisões judiciais e de conflitos agrários na região de Guajará-Mirim, Rondônia, por mais de três décadas.

Esse caso foi analisado pelo autor deste artigo quando era Advogado da União na Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. Portanto, todos os dados fáticos foram retirados do processo administrativo em trâmite naquele ministério.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, visando eventual desapropriação por motivo de interesse social para fins de reforma agrária, de lote rural denominado Fazenda Sol Nascente, com área total de 1.334,00 ha, localizado no município de Guajará Mirim-RO, adquirido pela Sra. Zuleica Yoshiko Morimoto, por meio de Contrato Preliminar de Compra e Venda expedido pela autarquia agrária em programa de regularização fundiária.

De início, ressalta-se que o imóvel é objeto de disputas sociais e judiciais por mais de 30 anos. Antes de adentrarmos aos aspectos jurídicos interessantíssimos do caso, vamos fazer um pequeno relato sobre todos os acontecimentos nos últimos 30 anos.

O imóvel rural descrito foi adquirido por Zuleica Yoshiko Morimoto por meio do CPCV nº 232.2.02/0.537, em 25/01/1982, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Alta Floresta D’Oeste, no livro 2P, sob a matrícula nº 3.167.

Frise-se que outros três lotes rurais confrontantes foram também objeto de alienação a membros da família Morimoto, e seus instrumentos translativos de domínio devidamente registrados em cartório:

  1. Missako Morimoto, Fazenda Castilho, TD nº 232.2.02/4.1999, processo administrativo 54300.001162/98-14;
  2. Ruth Morimoto, Fazenda Sol Nascente, TD nº 232.2.02/4.201, processo administrativo nº 54300.001161/98-51;
  3. Mokoto Kondo Morimoto, Fazenda Santo Antônio, TD nº 232.2.02/4.200, processo administrativo nº 54300.001163/98-87.

Mais de dez anos após a expedição dos referidos títulos, no ano de 1998, o INCRA demonstrou interesse em desapropriar os lotes rurais, para fins de reforma agrária, e a situação foi agravada com a invasão dos imóveis por famílias componentes do Movimento Sem Terra (MST), formando o acampamento Tche Guevara.

Daí o conflito instaurado:

i) apesar dos imóveis haverem sido declarados improdutivos por duas vistorias realizadas em 26/08/1998 e 03/05/1999, o procedimento de desapropriação encontrou óbices na Portaria nº 88, de 6 de outubro de 1999, do Ministro de Estado Extraordinário de Política Fundiária, a qual vedava a obtenção de terras para a reforma agrária em áreas de florestas primárias, categoria na qual se encaixava a fazenda da interessada; além disso, o próprio fato de terem sido ocupados por integrantes do MST impediu a realização de vistoria nos lotes, inviabilizando a expropriação (Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, art. 4º, § 6º);

ii) muitos anos se passaram, sem que se alcançasse uma solução administrativa para o impasse, e durante este período as famílias do acampamento Tche Guevara, atualmente estimadas em 172, ergueram suas casas, cultivaram suas lavouras e estabeleceram seu modus vivendi;

iii) os beneficiários dos títulos de propriedade não se mantiveram inertes diante da invasão; a interessada Zuleica Yoshiko Morimoto propôs Ação de Reintegração de Posse (nº 017.02.002903-5, com trâmite na Vara Cível de Alta Floresta D’Oeste) que foi julgada procedente por sentença, no ano de 1999. A dificuldade para se cumprir a ordem judicial era tanta, em virtude da falta de estrutura, de efetivo policial, de local para reassentar as famílias, que foram tomadas medidas extremas para sua viabilização fática, como expedição de mandados de prisão por descumprimento da decisão judicial contra a Comandante Geral da PMRO e o Comandante do 4º BPM, bem como pleito de intervenção no Estado de Rondônia.

Como é perceptível, a ameaça de retirada destas famílias gerou grande impacto nas estruturas de Poder no Estado de Rondônia, e nos municípios envolvidos. Afinal, não havia lugar compatível para o reassentamento da população; teriam de ser destruídas as construções e benfeitorias levantadas; além disso, a produção agrícola, fruto de seu trabalho, era largamente comercializada na cidade e na vizinhança, representando 20% do PIB do Município de Alto Alegre dos Parecis. Reuniões começaram a ser realizadas, com a presença dos envolvidos e colaboradores, com a intenção de buscar uma solução que, na medida do possível, conjugasse os interesses tuteláveis no conflito.

Enquanto se analisava a possibilidade fático-jurídica de realização da desapropriação da Fazenda Sol Nascente, ou ainda a possível utilização de um instrumento negocial outro, que fosse compatível com a fixação do assentamento das famílias integrantes do MST, percebeu-se que havia uma questão prejudicial a ser analisada, antes de tomada qualquer decisão voltada a solucionar o sobredito impasse: a dominialidade do imóvel rural pertencente a Zuleica Yoshiko Morimoto.

Isso porque o lote rural foi alienado através de um acordo resolúvel, materializado através de um Contrato Preliminar de Compromisso de Compra e Venda, que nada mais é do que um ajuste contratual celebrado com a Administração, impondo-se, em consequência, o cumprimento de suas cláusulas, sob pena de resolução. O implemento da condição resolutiva, que rompe de pleno direito a avença bilateral, logo que verificada a inadimplência absoluta de qualquer de suas cláusulas, opera retroativamente, e implica em reversão do bem ao patrimônio da União e cancelamento de eventual registro imobiliário, independentemente de interpelação judicial.

Deste raciocínio derivam duas possíveis situações: i) o beneficiário cumpriu todas as obrigações contratuais, sendo merecedor da liberação das cláusulas contidas no CPCV; nesta hipótese, havendo interesse do INCRA em manter o assentamento no local em que se encontra, deverá providenciar a aquisição da propriedade, da forma que entender conveniente, respeitados os ditames normativos; ii) o beneficiário descumpriu qualquer das obrigações contratuais, implementou-se a condição resolutiva, resolveu-se o negócio jurídico de pleno direito, e em consequência, o bem deve ser revertido ao patrimônio da União. Neste caso, não há falar-se em desapropriação ou celebração de qualquer outro instrumento translativo de domínio, e sim em reversão do lote rural, indenizando-se as benfeitorias na forma da lei e do contrato.

Percebe-se, então, que a análise conclusiva desta questão específica irá nortear a tomada de providências pela União no que pertine a este imóvel, para que seja pacificado o destino das centenas de famílias que vivem há quase uma década no local, sem descuidar do cumprimento dos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade, ínsitos a qualquer atuação do ente público.

A partir do momento em que este assunto foi trazido à baila, e considerado prejudicial à tomada de qualquer decisão referente à regularização da situação dos membros do acampamento Tche Guevara, passou-se a opinar acerca do cumprimento ou descumprimento das cláusulas contratuais.

Não houve, no entanto, consenso quanto ao tema. As opiniões jurídicas exaradas por órgãos diferenciados, pertencentes à estrutura orgânica do INCRA, divergiam no que tange a um item em específico: o fato do pagamento das parcelas haver sido realizado a destempo.

As três primeiras parcelas foram pagas com alguns dias de atraso; no, entanto, as duas últimas, que deveriam ter sido quitadas nos anos de 1986 e 1987, somente o foram em 18 de maio de 1999.

De acordo com alguns dos opinativos, o fato do pagamento ter sido realizado com atraso não implicaria na resolução do ajuste e consequente reversão dos bens ao patrimônio da União.

Por outro lado, outros entenderam que a quitação a destempo do valor ajustado ocasionaria a resolução do contrato, e em função disso, deveria se buscar reaver o bem, junto ao Poder Judiciário. Far-se-á, desse modo, para melhor compreensão da controvérsia, listagem das manifestações sobre o tema, em ordem cronológica:

Informação PJR/Nº 123/00 – A Procuradoria Geral do INCRA entendeu não haver mais falar-se em desapropriação, e sim em reversão dos bens, face ao inadimplemento das prestações; ressalte-se que, neste momento, a autarquia ainda não estava ciente de que as duas últimas parcelas haviam sido pagas, ainda que a destempo;

Informação/PJA/Nº 199/2003 – A Coordenação Geral Agrária adotou o entendimento de que desde o primeiro pagamento realizado em atraso ativou-se a cláusula de resilição, não havendo falar-se em purgação da mora, porque assim não foi expressamente ajustado; em consequência, determinou o retorno dos autos à SR-17 para que fossem tomadas providencias judiciais voltadas à reversão do imóvel à União;

Informação/PJA/Nº 04/2004 – Novamente enviado o presente processo ao Órgão Jurídico Central, reafirmou-se a determinação de buscar a resolução contratual, sem a oitiva do aludido Conselho, por tratar-se de questão eminentemente Jurídica;

DESPACHO/AGU/PGF/PFE/INCRA/RO/J/Nº 760/2009 – Sugeriu que a questão fosse revista sob a ótica da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, que prevê o prazo de 3 (três) anos para que os inadimplentes regularizem sua situação dominial. Desta feita, aduziu que a propriedade consolidou-se nas mãos do particular, e deveria ser reconhecida a regularidade da aquisição do imóvel, para que a autarquia agrária possa tomar a melhor decisão no que tange à ocupação das famílias do MST;

PARECER/CGF/MFDH/PFE INCRA Nº 08/2010 – A Coordenação Geral de Assistência Jurídica à Regularização Fundiária na Amazônia Legal, por derradeiro, voltou a defender a resolução de pleno direito do ajuste firmado, face ao pagamento em atraso das prestações, que careceriam de qualquer utilidade; defendeu ainda que não há de se aplicar o instituto da mora, por falta de previsão contratual de sua possível purgação; e arremata alegando que o art. 19 da Lei nº 11.952, de 2009, não poderia ser aplicado aos casos em que a União queira afetar um imóvel a um interesse social, no caso, de instituir assentamentos de reforma agrária, com fulcro no art. 4º, I, do mesmo diploma legal. Concluiu, então, pelo prosseguimento da Ação Ordinária de Resolução Contratual já proposta, com vistas a obter judicialmente a retomada da terra.

Pelo que se pode inferir da retrospectiva acima elaborada, apesar da divergência de opiniões relativamente às consequências contratuais do pagamento extemporâneo, prevaleceu o entendimento pela resolução do ajuste de pleno direito; tanto assim o é que se determinou a provocação do Poder Judiciário, por duas vezes, com o objetivo de reaver o bem imóvel.

Inicialmente, foi proposta Ação Ordinária de Reintegração de Posse c/c Cancelamento de Registro em face da interessada Zuleica Morimoto, em 21 de junho de 2004. Este processo foi extinto sem resolução do mérito, mediante pedido de desistência da ação formulado pelo INCRA; segundo informações constantes dos autos, a desistência foi requerida por dois motivos: i) já estavam em andamento negociações extrajudiciais com objetivo de solucionar o conflito, e uma das exigências dos supostos proprietários para continuar participando das reuniões era que não mais se discutisse o domínio dos imóveis; ii) porque a via possessória havia sido erroneamente utilizada (o correto seria ajuizar ação ordinária de resolução contratual), e certamente a sentença não lhes favoreceria.

Não obstante tenha se requerido a desistência do processo, as manifestações jurídicas exaradas continuaram a apontar a necessidade da autarquia fundiária buscar, em juízo, a reversão do imóvel rural, motivo pelo qual foi novamente intentada ação judicial, em 03 de abril de 2006, mas desta feita, o pleito foi a “ação reivindicatória com pedido de tutela jurisdicional antecipada”, distribuída à 2º Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia. Este processo foi julgado improcedente por sentença, e atualmente tramita no TRF 1ª Região, que ainda não julgou o recurso de apelação proposto pela Autarquia agrária.

A despeito de tudo o quanto dito, inclusive das ações judiciais que ainda estão em curso, continuaram a ser realizadas reuniões, na presença dos proprietários das Fazendas ou mandatários da família Morimoto, de representantes do INCRA, do Ministério Público, do Poder Executivo (Governador e Prefeito), de membros do Congresso Nacional, e do Poder Judiciário. Em comum acordo, se decidiu por requerer a suspensão do andamento das ações judiciais propostas, com a esperança de ver solucionada a contenda administrativamente.

Antes, porém, que se passe à análise propriamente dita do caso, é crucial que se esclareça o seguinte: embora a avaliação global da conjuntura fática relatada envolva as quatro fazendas contíguas, registradas em nome dos membros da família Morimoto, neste opinativo somente será analisada a liberação de condição resolutiva do contrato subscrito por Zuleica Morimoto, referente ao imóvel rural denominado Fazenda Sol Nascente, objeto de tantas disputas sociais e judiciais.

Isto porque, para averiguação do cumprimento das obrigações contratuais, devem ser analisadas as situações de fato que sucederam à emissão de cada título, individualizadamente. O comportamento de cada beneficiário no que concerne às cláusulas ajustadas irá determinar se o respectivo negócio jurídico resolveu-se de pleno direito, ou não.

É imperioso que se esclareçam quais, dentre as várias questões jurídicas componentes deste mosaico processual, serão objeto da cognição deste órgão de assessoramento, ou seja, qual a delimitação argumentativa horizontal da presente manifestação.

Neste artigo jurídico, será desvencilhada somente a questão relativa à liberação de condição resolutiva; ou seja, formar-se-á posicionamento conclusivo acerca da dominialidade do bem imóvel, e consequentemente acerca da verossimilhança da pretensão de reversão do lote rural ao patrimônio da União.

Não serão enfrentadas questões referentes às ocupações das áreas por integrantes do MST, possibilidade jurídica de realização de desapropriação ou de qualquer outro negócio jurídico translativo de propriedade; também não serão sugeridas opções legalmente viáveis para solução do conflito instaurado.

Reafirma-se ainda, por cautela, que no presente artigo, somente será avaliado o cumprimento das obrigações contratuais pela Sra. Zuleica Yoshiko Morimoto; as conclusões ao final alcançadas não se estendem aos demais membros da família Morimoto, beneficiários de lotes rurais contíguos.

Para que se possa opinar acerca da liberação de condição resolutiva, é necessário que se verifique o cumprimento, pela Sra. Zuleica Yoshiko Morimoto, das cláusulas constantes do Contrato Preliminar de Compra e Venda, com o objetivo de verificar se implementou, ou não, a resolução do ajuste. São elas:

a) pagamento do preço (cláusula terceira);

b) quais elementos técnicos devem ser avaliados para atender aos princípios preconizados no Estatuto da Terra (cláusula sexta).

C) Situação em que se encontra a ação judicial movida pelo INCRA e se a decisão administrativa deve aguardar a conclusão da ação judicial.

A) O pagamento do preço.

A cláusula primeira do título de domínio emitido em favor da interessada prevê o pagamento do preço ajustado em cinco parcelas iguais anuais, com vencimento da primeira em 25/01/1983. Assim, percebe-se que as mesmas deveriam ter sido quitadas até o ano de 1987.

As primeiras três primeiras parcelas foram pagas com alguns dias de atraso; no entanto, as duas últimas, que deveriam ter sido quitadas nos anos de 1986 e 1987, somente o foram em 19 de maio de 1999, pagamento este aceito pela autarquia agrária, sem ressalvas.

Questionou-se então, diante desta circunstância, se o atraso na realização do pagamento ajustado caracterizaria inadimplemento contratual capaz de resolver o negócio jurídico por implemento de condição resolutiva.

Diversos entendimentos jurídicos foram emitidos, no âmbito da estrutura escalonada do INCRA, mas o tratamento conferido à matéria não foi uníssono, conforme relatado detalhadamente linhas atrás.

No entanto, predominou o entendimento de que o pagamento extemporâneo ocasionaria a resolução de pleno direito do ajuste, e consequentemente faria surgir a pretensão de reversão do bem ao patrimônio da União; tanto assim o é que duas ações judiciais foram propostas com esta finalidade: i) ação de reintegração de posse, extinta sem resolução do mérito por solicitação do demandante (INCRA); ii) e ação de resolução de negócio jurídico cumulada com imissão na posse, cujos pedidos já foram julgados improcedentes por sentença e ainda pendente de julgamento do recurso de apelação.

Observe-se que a discussão acerca do implemento de condição resolutiva gira em torno da repercussão jurídica do pagamento extemporâneo, ou seja, do descumprimento da cláusula relativa à prestação de dar dinheiro; não se refutou o adimplemento das demais obrigações, quais sejam, alienação do imóvel ou desvirtuamento de sua destinação.

Portanto, é deveras salutar que se firme posicionamento concreto acerca desta questão prejudicial, pois o posicionamento adotado irá indicar a dominialidade do bem e, por conseguinte, nortear a postura a ser assumida pela Administração Pública na busca de uma solução que contemple os interesses das dezenas de famílias componentes do assentamento Tche Guevara. E a competência para fazê-lo, hodiernamente, pertence ao MDA.

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Dito isso, pede-se vênia para discordar do entendimento predominante da autarquia fundiária, que concluiu pela resolução do negócio jurídico de pleno direito em virtude do pagamento em atraso das parcelas.

Entende-se que a quitação em atraso do valor ajustado significará, em regra, inadimplemento relativo, e não absoluto, das obrigações contratuais, e por isso deve reger-se pelos efeitos da mora, e não da teoria da inexecução contratual.

Observe-se o teor dos artigos 389, 394 e 395, do Código Civil:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Da leitura dos dispositivos transcritos, é possível inferir serem previstas pelo ordenamento jurídico duas hipóteses diferentes de inadimplemento: i) o devedor não cumpre a obrigação; ii) o devedor deixa de cumpri-la pelo modo e tempo devidos.

É o que se denomina, respectivamente, de inadimplemento absoluto e inadimplemento relativo, ou mora1: neste último caso, a obrigação deixa de ser cumprida no lugar, tempo e modo devidos, mas apesar disso, a sua execução continua possível e útil ao credor. No inadimplemento absoluto, a inexecução é certa, e por conta disso, não será disciplinado pela teoria da mora (que permite a efetivação posterior da obrigação), e sim pela teoria da inexecução contratual.

Nos casos em que há atraso no cumprimento da prestação, hipótese em que ela não é efetivada no tempo devido, só haverá resolução da obrigação se o seu objeto não for mais útil ao credor; porque se ainda o for, deve o mesmo aceitar o pagamento, aplicando-se os efeitos da mora para compensar os prejuízos e a desvalorização monetária.

Por outro lado, tratando-se de inadimplemento absoluto, em que não é mais possível executar a prestação ou esta se tornou inútil ao credor, o negócio resolve-se em perdas e danos. Veja o parágrafo único do art. 395, do Código civil: “Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos”.

A questão acerca da utilidade da prestação para o credor deve ser analisada no caso concreto, mas ainda assim, balizada por critérios objetivos. Como bem asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, não basta uma diminuição do interesse, fundamental é a completa perda da necessidade e utilidade da coisa em face do descumprimento; afinal, o adimplemento da obrigação é direito subjetivo do devedor2.

De fato, pode acontecer que a prestação seja de tal ordem que somente se cumprida no prazo convencionado interesse ao credor; mas, como bem frisa Maria Helena Diniz, a prova da superveniente inutilidade da prestação deve ser produzida pelo credor, a menos que se tenha convencionado expressamente um termo certo e essencial, caso em que a mora se equiparará ao inadimplemento absoluto3.

No presente caso, trata-se de uma dívida de valor – pagamento do preço ajustado para aquisição de lote rural; e segundo a opinião da doutrina majoritária, a exemplo de Sílvio de Salvo Venosa4, Maria Helena Diniz5, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald6, a obrigação de pagar será sempre útil ao credor, acompanhado dos acréscimos devidos pela desvalorização da moeda e outros ônus derivados da mora. Isso porque não há perecimento ou deterioração das obrigações de dar dinheiro e também porque o atraso na prestação gera uma atualização em moeda, sem qualquer alteração no perfil originário do débito.

É possível concluir, portanto, que se o beneficiário do título não houver efetivado o pagamento do preço previsto na data estipulada no mencionado documento, é possível que seja purgada a mora, desde que ofereça o devedor a prestação, mais a importância dos prejuízos (art. 401 do Código Civil); feito isso, a obrigação é reconduzida à normalidade, liberando o inadimplente de suas faltas7.

Corroborando com tal entendimento, a Lei nº 11.952, de 2009 dispõe, em seu art. 19, que em caso de inadimplemento do contrato firmado com o INCRA até 10 de fevereiro de 2009, o ocupante terá o prazo de 3 (três) anos, contados da mencionada data, para adimplir o contrato no que foi descumprido ou renegociá-lo, sob pena de ser retomada a área ocupada. Ou seja, o aludido diploma legal, ao estabelecer uma espécie de moratória aos inadimplentes, acaba por expressar a utilidade, para o credor, da prestação ainda não paga.

Ora, se a Lei nº 11.952, de 2009 claramente permite a renegociação de dívida, com o objetivo de evitar o desfazimento do ajuste, é certo que o pagamento realizado em atraso e aceito pelo credor não é capaz de desencadear a resolução dos títulos expedidos.

Atente-se somente que o mencionado diploma legal estabelece um prazo de 3 (três) anos para que as dívidas sejam renegociadas; após este lapso temporal, não quitado o preço, deve ser rescindindo o título, pois não há mais utilidade no recebimento da prestação por vontade legal.

In casu, a quitação das prestações pela beneficiária ocorreu em atraso, mas por tratar-se de dívida de valor, ainda útil ao credor e por ele aceita sem ressalvas, aplica-se o regramento jurídico do inadimplemento relativo, não havendo falar-se em resolução do contrato firmado entre as partes face à purgação da mora. Ressalte-se que sobre o valor das últimas parcelas incidiu certamente correção monetária e provavelmente juros legais.

Com efeito, é bom frisar que o instituto jurídico da mora é previsto em lei, e como tema pertencente à Teoria Geral das Obrigações, deve ser aplicado aos negócios jurídicos, nos casos de inadimplemento relativo, independentemente de previsão contratual expressa.

Como é cediço, as partes possuem liberdade na celebração de ajustes, com vistas à composição de seus interesses, de modo que o ordenamento jurídico faculta a celebração de contratos típicos ou atípicos. Mas no exercício desta autonomia de vontade, devem as partes detalhar as suas obrigações e demais repercussões dos comportamentos parciais, (com respeito às normas cogentes), pois em sua falta, aplicar-se-ão, subsidiariamente as disposições legais gerais que regem o tema, conforme dispõe o art. 425 do Código Civil8.

Tanto assim o é que o art. 406 do aludido diploma legal prevê critérios para aplicação de juros moratórios, ainda quando não convencionados9; e o art. 492, que trata do contrato de compra e venda, ao qual se assemelha o ajuste objeto de análise, prevê critérios de distribuição de riscos em função dos efeitos da mora10.

Veja que a análise acerca da aplicação dos institutos da mora (inadimplemento relativo) ou do regramento da inexecução contratual (inadimplemento absoluto), deve ser realizada em função das especificidades de cada caso concreto. No presente processo, entende-se tratar de inadimplemento relativo, pelos motivos já delineados, e principalmente por haver a autarquia aceitado o pagamento em atraso, o que demonstra claramente a sua utilidade e, por conseguinte, a efetivação da purga da mora.

Admitir que após o recebimento da prestação pecuniária em atraso, sem qualquer ressalva, o INCRA venha a buscar o desfazimento do negócio com fundamento neste mesmo atraso, seria, sem sombra de dúvida, um comportamento contraditório, representativo de quebra da expectativa de confiança e violador da cláusula geral da boa-fé objetiva (venire contra factum proprium), que impõe deveres anexos a todo aquele que firma um contrato.

Nesse sentido, traz-se à colação julgado do Superior Tribunal de Justiça, que esclarece a definição das figuras parcelares da boa-fé objetiva e afirma a sua aplicação aos atos e contratos celebrados pela Administração Pública:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. CURSO DE FORMAÇÃO. MATRÍCULA POR FORÇA DE LIMINAR.

MÉRITO JULGADO IMPROCEDENTE. MANUTENÇÃO NA ACADEMIA, INGRESSO E PROMOÇÃO NA CARREIRA POR ATOS DA ADMINISTRAÇÃO POSTERIORES À CASSAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL. TRANSCURSO DE MAIS DE CINCO ANOS. ANULAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA E BOA-FÉ OBJETIVA VULNERADOS. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CONSTATAÇÃO DE QUE O CANDIDATO PREENCHIA O REQUISITO CUJA SUPOSTA AUSÊNCIA IMPEDIRA SUA ADMISSÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. ATENDIMENTO AOS PRESSUPOSTOS LEGAIS E CONSTITUCIONAIS PARA INGRESSO E EXERCÍCIO DO CARGO DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR.

1. Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), impedem que a Administração, após praticar atos em determinado sentido, que criaram uma aparência de estabilidade das relações jurídicas, venha adotar atos na direção contrária, com a vulneração de direito que, em razão da anterior conduta administrativa e do longo período de tempo transcorrido, já se acreditava incorporado ao patrimônio dos administrados.

(...)

5. Os atos de admissão e promoção do Recorrente praticados pela Administração, bem como o longo tempo em que eles vigoraram, indicavam, dentro da perspectiva da boa-fé, que o seu ingresso na carreira militar já havia se incorporado, definitivamente, ao seu patrimônio jurídico, pelo que sua anulação, com base em fato anterior à prática dos atos anulados (cassação da liminar), feriram os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, tendo sido infringida a cláusula venire contra factum proprium ou da vedação ao comportamento contraditório.

6. Hipótese concreta que não cuida da aplicação da teoria do fato consumado para convalidar ato ilegal, o que é rechaçado por esta Corte, mas de fazê-la incidir, juntamente com os princípios da segurança jurídica e boa-fé, para tornar sem efeito atos praticados com ofensa aos princípios constitucionais da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

7. Recurso ordinário provido para conceder a segurança e anular o ato que cassou a promoção do Recorrente à patente de 1º Tenente, bem como o ato que determinou sua exclusão dos quadros da Polícia Militar, determinando seu imediato retorno à função ocupada, com todos os consectários jurídico-financeiros dele decorrentes.

(RMS 20.572/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 15/12/2009)

Fixado este ponto, analisar-se-á outro fundamento lançado no Parecer/CGF/PFE INCRA Nº 08/2010 para justificar a resolução do título. Ele apregoa, em apertada síntese, que o art. 19 da Lei nº 11.952, de 200911, que permite aos inadimplentes regularizar a sua situação junto ao Poder Público em até 03 (três) anos, não deve ser aplicado ao caso, porque o art. 4º, I12, da Lei dispõe não serem passíveis de regularização fundiária ocupações que recaiam sobre áreas reservadas a outras finalidades de utilidade pública ou interesse social; e neste processo haveria interesse social de assentar as famílias componentes ao MST no local.

Ora, o art. 4º, I da Lei nº 11.952, de 2009, não pode ser utilizado como argumento para a não expedição de certidão de liberação de condição resolutiva ou para justificar a não aplicação do art. 19 do mencionado diploma, por um motivo óbvio: a Lei nº 11.952, que estatuiu tais hipóteses impeditivas à realização de regularização fundiária foi editado no ano de 2009, e o Contrato Preliminar de Compra e Venda in casu foi emitido em 1983. Ora, não há como exigir que, à época, se observassem comandos que não haviam ainda sido previstos.

Ademais, não é possível desfazer os efeitos do contrato celebrado em função das novas imposições legais, negando a liberação de condição resolutiva, pois isso significaria conferir efeitos retroativos à lei, que não pode violar ato jurídico perfeito, como dispõe o art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal.

Por este motivo, os ajustes celebrados antes deste marco legal devem ser analisados de acordo com as formalidades exigidas à época, e liberadas as condições resolutivas desde que cumpridas as cláusulas neles previstas. Nestes casos, o domínio do imóvel consolidar-se-á nas mãos do beneficiário, e havendo interesse posterior da Administração de assenhorear-se da área, deve fazer uso de métodos de intervenção na propriedade privada, legalmente previstos, como a desapropriação, ou ainda celebrar novo contrato, a exemplo da compra e venda, permuta, dentre outros.

Pondera-se ainda que, se em 1983 o INCRA optou por alienar o lote e regularizar a ocupação da interessada, presume-se que era esta a destinação que o mencionado ente público quis conferir a área, como expressão de sua vontade.

E mais. O artigo 4º, I, faz referência a um momento anterior à titulação, e traz circunstâncias de fato que, se verificadas em concreto – como o interesse da União na área para fins de interesse social - é capaz de impedir o início do procedimento de regularização das ocupações; mas sua aplicação somente se torna exigível a partir da edição da lei; o art. 19, como já visto, trata expressamente dos títulos expedidos antes da inovação legislativa.

Portanto, o artigo 4º, I, da Lei nº 11.952, de 2009, não impede a aplicação do art. 19. Isso porque este último incide especificamente sobre os títulos expedidos antes da edição da lei, enquanto o primeiro prevê requisitos não exigíveis aos ajustes pretéritos. E isso não é tudo. A “moratória” prevista no art. 19 do mencionado diploma, instituiu verdadeiro direito subjetivo à regularização de situações de inadimplência contratual, e se nestes casos o espírito da lei buscou evitar a resolução dos ajustes, com ainda mais razão devem se entender hígidos os ajustes em que houve a quitação em atraso.

Diante do exposto, tratando-se o presente caso de título expedido antes da vigência da Lei nº 11.952, de 2009, e tendo em vista que a prestação foi paga, ainda que a destempo, e aceita pelo credor, por ainda lhe ser útil (art. 19 da Lei), não há falar-se em resolução do ajuste por motivo de pagamento extemporâneo.

Esta mesma conclusão foi alcançada pela sentença prolatada pelo MM Juízo da 2º Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia, em 05 de setembro de 2008, no bojo de Ação Ordinária de Resolução de Negócio Jurídico cumulada com pleito de imissão na posse, proposta pelo INCRA em desfavor de Zuleica Yoshiko Morimoto.

Conforme se extrai do inteiro teor do mencionado decisum, o contrato celebrado entre o INCRA e a Sra. Zuleica não se resolveu em virtude do pagamento extemporâneo das parcelas do ajuste, pois a mencionada autarquia aceitou a prestação efetivada a destempo pelo devedor, sem qualquer questionamento que fizesse supor o desinteresse em recebê-la. O INCRA interpôs recurso de apelação, que ainda não foi julgado pelo TRF 1ª Região.

B) Elementos técnicos que devem ser avaliados para atender aos princípios preconizados no Estatuto da Terra

A cláusula sexta do CPCV em análise prevê a necessidade de preservação da destinação da área, atendidos os princípios preconizados no Estatuto da Terra. Assim, o contrato preliminar apenas submete, de forma genérica, a destinação da área aos princípios preconizados no Estatuto da Terra.

O Título I (Disposições preliminares) do Estatuto da Terra é composto de três Capítulos (Princípios e Definições, Acordos e Convênios e Das Terras Públicas e Particulares). Destaca-se o primeiro, por fazer referência aos dois grandes princípios do Direito Agrário: Função social da propriedade (Art. 2º, caput e § 1º, e arts. 12 e 13) e Justiça Social (Art.1º, § 1º).

A doutrina agrária também elenca outros princípios, contudo, os demais são corolários dos dois postulados citados. Apenas a título de introdução geral, menciona-se os mais relevantes13:

Princípio da permanência na terra: tem por finalidade proteger aquele que tornou a terra produtiva com seu trabalho e com o de sua família;

Predominância do interesse público sobre o particular: limitações ao direito de propriedade, estabelecimento de tamanho mínimo (art.4º, II e III do ET, etc.) A utilização da terra se sobrepõe à titulação (usucapião);

Reformulação da estrutura fundiária: (desapropriação, art. 184 da CF/88): liberdade e igualdade do acesso à terra;

Princípio do acesso a propriedade da terra: o Estado deve promover o acesso a propriedade da terra para as pessoas sem terra e sem condições de adquiri-la a título oneroso;

Preservação dos recursos naturais renováveis: preservação dos recursos naturais e conservação da biodiversidade;

Princípio do aumento da produção: necessidade do aumento da produção em face do crescimento populacional, donde o aumento da produção ocorre com a utilização de melhor tecnologia, significando maior produtividade na relação quantitativa/ha;

Princípio das condições de bem-estar e de progresso social e econômico: a falta de condições de bem estar e de progresso social e econômico faz com que os rurícolas abandonem a terra, emigrando para zonas urbanas, em busca de melhores condições de vida, por configurar-se um produtor ineficaz.

Superado o primeiro passo, passar-se-á à análise do Princípio da Função Social da Propriedade e do Princípio da Justiça Social.

O princípio da justiça social no direito agrário reside na consequente aplicação de suas regras, em que toda ideia de sua criação buscou a justiça social no campo através de leis inovadoras que permitissem mudar a estrutura injusta existente e que colocava o homem trabalhador unicamente como mera engrenagem de um sistema, e não como seu fim.

A justiça social traz como escopo ao Estado perseguir uma condição de equilíbrio entre a situação econômica de seus membros, afastando a possibilidade de ocorrer exclusão de parcelas da população da oportunidade de figurarem no processo de desenvolvimento, buscando eliminar desigualdades e desequilíbrios injustos.

Como se observa, esse princípio tem importância maior no tema “Reforma Agrária” e, nas circunstâncias fáticas que ensejam a presente manifestação, apenas essas linhas introdutórias são suficientes. Com relação à função social da propriedade, faz-se necessário tecer maiores comentários.

Ao expor o que seja a chamada função social da propriedade no Direito Agrário, é necessário que se faça uma breve análise da evolução histórica da propriedade, ressaltando que o princípio da função social tem como pressuposto necessário a propriedade e, por isso, faz-se necessário cuidar, simultaneamente, ainda que em breves linhas, do elo existente entre função social e o direito da propriedade no Direito Agrário.

Nos primórdios do direito romano, a propriedade era considerada um direito absoluto, sujeito ao poder ilimitado do proprietário. Com o advento do Estado intervencionista, em substituição ao Estado liberal da Revolução Francesa, passou-se a considerar que também o direito de propriedade deveria conhecer limites, para que atendesse a sua função social.

O primeiro grande defensor da ideia de que a propriedade gerava para o seu titular o dever de empregar esta riqueza no interesse da sociedade foi Leon Duguit. Já em 1914, na sua obra Las Transformaciones Generales Del Derecho Privado desde el Código de Napoleón, Duguit afirmava que a propriedade é uma instituição jurídica que se formou para responder a uma necessidade econômica, como, por outra parte, todas as instituições jurídicas e que evoluciona necessariamente com as necessidades econômicas.

O pensador francês notou que a sociedade moderna se transformava rapidamente e também o conceito jurídico da propriedade deveria acompanhar esta transformação, a fim de assegurar seu relevante papel econômico. Por isso, para ele, a sociedade deixou de ser um direito individual para converter-se em uma função social. Duguit pregava a necessidade de leis (até então inexistentes) que impusessem ao proprietário a obrigação de cultivar o campo, de conservar a casa, de dar à riqueza que tinha em mãos uma utilidade econômica e social. Defendia, igualmente, como legítima a intervenção do legislador para evitar que grandes propriedades imobiliárias se prestassem à especulação, de forma que seus donos deveriam lhe dar uma destinação produtiva.

Assim, o direito de propriedade passou por transformações históricas. Inicialmente, esse direito possuía um caráter absoluto e inviolável, assumindo, posteriormente, uma concepção altruísta, medido pelos interesses coletivos e não mais simplesmente pela ótica do proprietário.

O princípio da função social da propriedade no Brasil foi introduzido no ordenamento jurídico a partir da Emenda Constitucional N. º 10, de novembro de 1964 à Constituição Federal de 1946, alterando, totalmente a opinião com respeito à propriedade até então vigorante, não obstante o fato de que em outros países haver sido aceito bem antes. A consequência imediata desta inovação provida foi a elaboração do “Estatuto da Terra”.

Com o advento da Constituição da República de 1988, a propriedade foi inserida com um direito fundamental do cidadão, devendo ser observada sua função social. Nesse sentido, reza o artigo 5.º, XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social.

O proprietário, como senhor da coisa, pode usá-la, gozá-la e dispô-la, além de poder reavê-la de quem injustamente a detenha (direitos de sequela), desde que o exercício do direito corresponda aos anseios da sociedade, já que os reflexos do bom ou mau uso da propriedade irão, invariavelmente, sobre ela se projetar. Destarte, a propriedade – urbana ou rural – deve ser usada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

O Código Civil é claro ao dispor que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (art. 1228 do CC).

A propriedade deve ser utilizada como instrumento da produção e circulação de riquezas, para moradia ou produção econômica, não podendo servir de instrumento para a destruição de bens ou valores caros a toda a sociedade como é o caso do meio ambiente sadio e equilibrado.

Superada a análise geral referente à função social, cabe agora analisá-la com relação à propriedade rural. Nos termos do art. 186 da Carta da República, ela é cumprida quando, simultaneamente, segundo critério e graus de exigências estabelecidos em lei, atende aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Para a compreensão do tema, é necessário fazer essa análise com base na posse agrária. A posse agrária é, sem dúvida, instrumento altamente valioso para efetivação dos fins econômicos e sociais da propriedade.

A posse agrária está diretamente ligada ao conceito de trabalho que erige-se em esteio preponderante para solidificação da propriedade no Direito Agrário, trazendo para a realidade de que a terra deve pertencer a quem a trabalhe e a cultive.

A posse agrária demonstra a exploração do imóvel rural como coluna vertebral do direito de propriedade, diante do trabalho produtivo e contínuo do homem sobre a terra.

O Estatuto da Terra, no que concerne à função social da propriedade agrária, aduz que o mais importante, para a definição do instituto, é a utilização da terra, sua exploração econômica, a garantia de subsistência do seu ocupante pelo seu trabalho direto e de sua família para atingir o almejado progresso social e econômico preconizado pela política agrarista em vigor.

Sintetizando-se, a função social da terra, como filosofia ou norma, nada mais é senão o reflexo palpável dos resultados advindos do trabalho do homem sobre a terra. Função social só é atingida, pois, se houver trabalho efetivo, diuturno, contínuo, do proprietário sobre a terra que cultiva.

O Estatuto da Terra não traz elementos técnicos capazes de mensurar se determinado imóvel rural estaria ou não cumprindo sua função social, diferentemente da Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que define, um por um, os pontos caracterizadores do cumprimento da função social. Como o referido diploma legal foi publicado após a assinatura do CPCV, não há como utilizar-se dos critérios técnicos trazidos pela novel legislação superveniente, sob pena de afrontar o ato jurídico perfeito, igualmente elencado como direito fundamental, nos termos do art. 5º, XXXVI da Constituição da República.

Assim, o CPCV, ao trazer na cláusula sexta que a destinação da área deveria respeitar os princípios elencados no Estatuto da Terra, apenas exigiu do promitente comprador a utilização do imóvel rural de forma compatível com a posse agrária, caracterizada, primordialmente, pelo trabalho e cultivo da área. Não havia, até então, elementos técnicos que pudessem ser adotados para comprovar o cumprimento da função social da propriedade rural.

Nessa senda, não há elementos técnicos que possam ser utilizados para verificar o cumprimento dos princípios elencados no Estatuto da Terra, uma vez que o referido diploma legal só elenca, de forma genérica e abstrata, postulados que devem nortear a utilização do imóvel rural. O cumprimento desses cânones deve ser verificado de forma genérica, atendida através da posse agrária do promitente comprador sobre o imóvel.

A vistoria realizada na área, em data anterior à expedição do CPCV, concluiu que o imóvel possuía pastagens, e sua exploração era agropecuária. Entende-se, portanto, que esta é a destinação a ser preservada pela Sra. Zuleica, enquanto vigente a condição resolutiva, em conformidade com o quanto estabelecido no art. 1º, §2º, do Estatuto da Terra.

Deve ser considerado como prazo de vigência da condição resolutiva o período de inalienabilidade determinado no título ou outro lapso temporal mais extenso expressamente estabelecido. Este será considerado o “período de prova”, durante o qual a Administração Pública poderá fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais. Decorrido este prazo, e cumpridas as obrigações previstas no contrato, consolida-se a propriedade em mãos do particular, de pleno direito.

No presente caso, o prazo de inalienabilidade do imóvel é aquele que transcorrer entre a assinatura do Contrato Preliminar de Compra e Venda e a integralização do pagamento do preço (cláusula segunda). Este é, portanto, o período de vigência da condição resolutiva, em que deve ser analisado o cumprimento das obrigações contratuais.

Portanto, deve a beneficiária Zuleica Yoshiko Morimoto ter preservado a destinação agropecuária do seu imóvel até o ano de 1999. Em razão disso, a última vistoria e avaliação do imóvel, realizada em 02 de julho 2009, não serve para avaliar a destinação do imóvel rural com relação aos princípios elencados no Estatuto da Terra, uma vez que o período de prova, naquela data, já havia se exaurido.

Muito embora não constem dos autos informações detalhadas acerca da exploração da Fazenda, principalmente nos primeiros anos que se seguiram à titulação, foi realizada uma vistoria no local, em 03/05/1999.

C) Situação em que se encontra a ação judicial movida pelo INCRA e se a decisão administrativa deve aguardar a conclusão da ação judicial.

O terceiro e último ponto a ser analisado diz respeito ao estágio processual em que se encontra a ação judicial movida pelo INCRA e se a decisão administrativa deve aguardar a conclusão da ação judicial.

Quanto ao trâmite do processo nº 2006.41.00.001837, consta dos autos que a ação judicial já foi julgada em primeiro grau, tendo o juiz proferido sentença que julgou improcedente o pedido da parte autora. Dessa decisão, o INCRA interpôs apelação.

Em consulta realizada no sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, constata-se que a apelação interposta ainda não foi julgada. Portanto, a situação processual é a seguinte: há sentença de primeiro grau favorável à Sra. Zuleica Yoshiko Morimoto, com apelação pendente de julgamento no TRF 1ª Região.

Superado esse ponto, questionamento surge com relação à eventual impossibilidade de ser proferida decisão administrativa enquanto ainda não seja dada solução final no processo judicial.

Essa dúvida surge em razão do disposto no art. 38 da Portaria MDA Nº 80/2010, que dispõe o seguinte, in verbis:

Art. 38. Os processos de liberação de cláusulas, adimplemento ou renegociação cujos objetos sejam áreas em litígio judicial deverão ser suspensos até o trânsito em julgado da demanda.

Interpretando-se o dispositivo, de forma literal e isolada, poder-se-ia chegar à conclusão de que o referido processo administrativo deveria ser suspenso enquanto pendente ação judicial envolvendo os interessados. Contudo, essa não é a melhor solução.

Com efeito, por tratar-se de dispositivo contido em ato infralegal que está abaixo da pirâmide normativa, para sua correta interpretação deve-se cotejá-lo e analisá-lo de forma sistemática com os demais atos normativos de superior hierarquia.

A Lei nº 11.952/2009 é silente quanto ao tema. Assim, o dispositivo da Portaria deve ser interpretado, sistematicamente, com os Decretos que regulam a lei de regularização fundiária. Aqui, merece destaque o Decreto nº 6.992/2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das áreas rurais situadas em terras da União no âmbito da Amazônia Legal. O art. 23 desse ato infralegal dispõe, in litteris:

Art. 23. Na ocorrência de ação judicial, que verse sobre os contratos referidos no art. 22, caput, a regularização estará condicionada à prévia transação judicial entre as partes, desde que não contrarie o interesse público, devendo cada parte arcar com seus honorários e custas processuais.

O art. 22 do Decreto, citado pelo artigo acima transcrito, disciplina situações envolvendo contratos firmados com o INCRA até 10 de fevereiro de 2009, ou seja, os mesmos instrumentos contratuais regulamentados pela Portaria MDA Nº 80/2010 e dos quais o CPCV em análise se encaixa.

Assim, conclui-se que tanto o art. 23 do Decreto nº 6.992/2009 quanto o art. 38 da Portaria MDA nº 80/2010 tratam do mesmo assunto. Tendo em vista que o Decreto é instrumento normativo de hierarquia superior em relação à Portaria, deve-se analisar o art. 38 da Portaria MDA nº 80/2010 sistematicamente com o art. 23 do Decreto nº 6.992/2009, realizando um controle de legalidade.

Nesse ponto, o art. 23 do Decreto não determina a suspensão do procedimento administrativo, mas sim que a regularização dependa da solução do processo judicial. Não há necessidade de suspender-se os autos administrativos pelo simples fato de existir ação judicial.

O artigo do Decreto subordina à prévia transação judicial entre as partes apenas a regularização, não abrangendo outras situações como a liberação de cláusulas contratuais de Contratos Preliminares de Compra e Venda.

Além do mais, ganha relevo nesse debate a interpretação teleológica. Ela é um método de interpretação legal que tem por critério a finalidade da norma. De acordo com esse método hermenêutico, ao se interpretar um dispositivo legal, deve-se levar em conta as exigências econômicas e sociais que ele buscou atender e conformá-lo aos princípios da justiça e do bem comum. Está expresso no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

O objetivo da norma insculpida no art. 38 da Portaria MDA nº 80/2010 é evitar decisões contraditórias na seara administrativa e na seara judicial. No caso concreto, esse risco é sobremaneira minimizado, tendo em vista que as conclusões desta manifestação jurídica coincidem, em grande parte, com a sentença de primeiro grau proferida na 2ª Vara Federal de Rondônia, decisão essa ainda válida e eficaz na ação judicial.

Portanto, através de uma interpretação sistemática, na qual se coteja o art. 38 da Portaria MDA nº 80/2010 com o art. 23 do Decreto nº 6.992/2009, chega-se à conclusão de que não há necessidade de suspensão obrigatória do procedimento administrativo antes de decisão judicial transitada em julgado no processo judicial em curso para processos administrativos de liberação de cláusulas resolutivas contidas em Contratos Preliminares de Compra e Venda firmados entre particulares e o INCRA até 10 de fevereiro de 2009.

Além do mais, no caso em análise, ganha relevo a interpretação teleológica, que corrobora a conclusão de que o presente processo administrativo não deve ser suspenso em razão da inexistência de decisão judicial com trânsito em julgado, pelas razões já expostas.

Diante do exposto, conclui-se, com relação ao caso da FAZENDA SOL NASCENTE, nos termos da fundamentação, que:

a) O pagamento extemporâneo realizado pelo promitente comprador e aceito pela autarquia agrária configura purgação da mora contratual e adimplemento da cláusula estipulada no CPCV;

b) A destinação do imóvel nos termos dos princípios elencados no Estatuto da Terra, conforme determina o CPCV, não pode ser mensurada por meio de critérios técnicos como o Grau de Utilização da Terra e Grau de Eficiência – GUT/GE previstos na Lei nº 8.629/93, em razão da previsão genérica e abstrata desses postulados na Lei nº 4.504/64;

c) A utilização da propriedade rural deve ser compatível com a posse agrária exercida pelo promitente comprador, caracterizada, primordialmente, pelo trabalho e atividades agropecuárias; e

d) O art. 38 da Portaria MDA nº 80/2010 deve ser interpretado de forma sistemática com o art. 23 do Decreto nº 6.992/2009, razão pela qual os processos administrativos de liberação de cláusulas, adimplemento ou renegociação cujos objetos sejam áreas em litígio judicial não devem, de forma obrigatória e automática, ser suspensos até o trânsito em julgado da demanda judicial.


 

1 Neste sentido:VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Volume II. São Paulo: Ed. Atlas, 2006, p. 303; GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume II. São Paulo: Saraiva, 2005, p.303; DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro. Vol. São Paulo: Saraiva, 2004, p.375.

2 CHAVES, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.353/354.

3 DINIZ, Direito Civil Brasileiro. Vol. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 384.

4 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Volume II. São Paulo: Ed. Atlas, 2006, p. 303.

5 DINIZ, Direito Civil Brasileiro. Vol. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 394.

6 CHAVES, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.354.

7 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: ed. Saraiva, 2003, p.325.

8 Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

9 Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

10 § 2º Correrão também por conta do comprador os riscos das referidas coisas, se estiver em mora de as receber, quando postas à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados.

11 Art. 4o  Não serão passíveis de alienação ou concessão de direito real de uso, nos termos desta Lei, as ocupações que recaiam sobre áreas:

I - reservadas à administração militar federal e a outras finalidades de utilidade pública ou de interesse social a cargo da União;

12 Art. 19.  No caso de inadimplemento de contrato firmado com o INCRA até 10 de fevereiro de 2009, ou de não observância de requisito imposto em termo de concessão de uso ou de licença de ocupação, o ocupante terá prazo de 3 (três) anos, contados a partir de 11 de fevereiro de 2009, para adimplir o contrato no que foi descumprido ou renegociá-lo, sob pena de ser retomada a área ocupada, conforme regulamento.

13 MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. Goiânia: AB Editora, 2001, pag. 39.

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Sobre o autor
Marcelo Santos Correa

Procurador da República na Procuradoria da República em Caxias/MA.<br><br>Ex Juiz Federal do TRF5; Ex Juiz Federal do TRF4; Ex Advogado da União em Brasília.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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