A crise ou não do princípio da supremacia do interesse público primário

14/05/2016 às 18:14
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Revisão do conceito de interesse público primário.

INTRODUÇÃO

Trata-se de estudo sobre a existência ou não da crise do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e a da própria ideia de interesse público. Para a abordagem destes temas tão controvertidos, capazes de dividir opiniões na doutrina nacional e estrangeira, é preciso destacar, primeiramente, breve estudo dos princípios fundamentais do Direito Administrativo, com ênfase no conceito clássico e contemporâneo, para, em ato contínuo, abordar os princípios pilares, do qual se inclui o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

Após verificar os pontos primordiais do Direito Administrativo, necessário se torna abordar as duas temáticas que estão sendo questionadas, quais sejam, o interesse público e o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Diante disso, já no segundo capítulo, estuda-se o interesse público, principalmente, com a nova ideia de interesse público comunitário ou global.

Passa-se a entender o interesse público como o bem comum, sendo possível classificá-lo em primário e secundário, bem como surge a nova classificação de interesse público global, ainda controvertida, tendo em consideração que se discute se todos os Estados – membros teriam as mesmas preocupações primárias para se concluir por um denominador comum e, desta feita, falar-se naturalmente em interesse público global e até em Direito Administrativo global, apesar de estarmos tratando, na União Europeia, do Direito Administrativo globalizado.

Em um terceiro momento, passa-se a analisar a extensão e consequências do princípio da supremacia do interesse público, destacadamente, diante do questionamento do próprio conceito de interesse público e, ainda, das constantes mudanças referentes à globalização e à transnacionalidade dos ramos jurídicos.

Por derradeiro, enfrenta-se a questão da crise dos institutos administrativos, jurídicos e, principalmente, do interesse público primário e do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Passa-se a delimitar, verdadeiramente, se deve prosperar ou não a extinção do princípio a supremacia, bem como até que ponto o interesse público poderá prevalecer sobre os direitos fundamentais e, destacadamente, se haverá situação de considerarmos a existência de interesse público global na ótica do Direito Administrativo comunitário.

O objetivo deste estudo é fornecer o panorama em que a crise do Direito Administrativo vem sendo situada, culminando com a análise da aplicabilidade ainda existente do interesse público para fins de formar posição sobre sua continuidade ou não no seio jurídico.

1. O Direito Administrativo e seus princípios fundamentais

O Direito Administrativo surgiu como ramo jurídico associado aos aspectos fundamentais do Estado em geral, tratando dos preceitos que norteiam a estrutura e o funcionamento da Administração Pública.

No caso, do ordenamento jurídico brasileiro, português e espanhol, houve considerável influência do Direito Francês, reflexos que se percebem até os dias atuais, registrando-se que também houve o desenvolvimento do Direito Administrativo nos ordenamentos anglo-saxônicos (sistema do common law).

ANTUNES (2012; p. 30) traz definição completa do conceito de Direito Administrativo, fundamental para a narrativa dos argumentos a seguir:

O direito administrativo será então o conjunto de normas e princípios jurídicos vinculantes de direito público que regulam a atividade de toda e qualquer entidade, independentemente da sua natureza jurídica, que se proponha realizar fins de interesse público sob a direção ou o controlo de uma pessoa coletiva pública.

Registra-se que o Brasil teve grande influência europeia, não somente pela colonização portuguesa, mas, destacadamente, porque os primórdios deste ramo jurídico ocorreu tardiamente, sendo indicado, nos manuais brasileiros, como ponto de partida para a elaboração deste Direito o ano de 1851 quando foi criada a disciplina de Direito Administrativo na Faculdade de Direito de Recife, com a primeira obra escrita somente seis anos depois, também em Recife, de autoria de Vicente Pereira do Rego que deixou evidenciado em toda a obra estar sob a influência do Direito Administrativo da França.

Acerca dos seus objetos de estudo, pode-se citar: organização, meios de ação, forma e relações jurídicas do Estado com os indivíduos, mediante a divisão de órgãos, distribuição de competências entre estes, poderes conferidos às autoridades administrativas, direitos e deveres dos servidores públicos, gestão de execução de bens públicos, serviços públicos, execução de atividades relevantes para a população etc. Em suma, a atuação da Administração Pública é inserida na função típica do Poder Executivo e nas funções atípicas dos outros poderes ou funções estatais.

Tratar de Direito Administrativo e se debruçar sobre a evolução dos princípios que o norteia exige a análise, mesmo que sucinta, da evolução do Estado para que se possa posicionar este ramo jurídico e as mudanças de tendências e mentalidades.

No Brasil, temos o Direito Administrativo como disciplina jurídica da Administração Pública, entendida como conjunto de órgãos que, juntos, propiciam a execução das tarefas do Estado, principalmente, dos serviços públicos e, ainda, que se fundamenta em dois princípios clássicos e ainda vigentes: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e o da indisponibilidade do interesse público, balizas trazidas pela doutrina brasileira majoritária, do qual citam-se precedentes em Celso Antonio Bandeira de Melo, Helly Lopes Meireles, Maria Sylvia Zannela de Pietro, entre outros.

Em um primeiro momento, existiu o Estado Absolutista que não conferia, praticamente, poderes aos indivíduos, tratando-os como súditos, e, em contrapartida, o Estado estaria acima e fora do Direito.

Aponta-se que, nas primeiras décadas do século XIX, o Direito Administrativo nasceu, destacando-se a origem na França, com leis de cunho administrativo, a partir de 1800, em que houve a sistematização da administração francesa, com base na hierarquia e na centralização. O nascimento deste Estado, foi em meio ao Estado de Polícia, como produto do liberalismo, que foi seu primeiro modelo de organização política.

Com a evolução das ideias e o advento de Revoluções, houve mudança da concepção arbitrária e absoluta do Estado para o Estado de Direito, surgindo como garantia dos indivíduos contra o arbítrio, em que o Estado e os governantes tiveram que se submeter ao direito, principalmente com a sujeição do poder público à lei e ao direito (princípio da legalidade), declaração e garantia dos direitos fundamentais, vedação aos Tribunais de exceção e, por derradeiro, a criação e execução do direito como ordenamento jurídico cujos fins seriam a justiça e a paz social. Existiu, desde a segunda metade do século XIX, a vinculação do Direito Administrativo com o Estado de Direito, em relação às concepções políticas existentes.

Observa-se que o princípio da Tripartição ou Separação de Poderes teve notável influência na criação e desenvolvimento do Direito Administrativo, à medida que atribuiu funções específicas e delimitadas ao Poder Executivo, e, posteriormente, desenvolveu a ideia de Administração Pública, objeto direto do Direito Administrativo.

Nos séculos XIX e XX, o Estado além da função de delimitar o campo de atividades dos indivíduos e conter a liberdade, prestigiando-a, passou-se a ter uma terceira função, qual seja, a intervenção na ordem econômica e social das sociedades, convertendo inúmeras relações privadas na preocupação do Estado, tais como os direitos sociais (trabalhistas e previdenciários, por exemplo). Neste sentido, a Administração Pública passou a ser prestacional.

Há, ainda, considerável associação do Direito Administrativo ao Direito Constitucional, tendo em vista os princípios fundamentais que norteiam a atuação do Estado em relação ao indivíduo, tal como ocorre em Brasil e Portugal, quando as respectivas Constituições tratam da matéria administrativa. Isso se justifica porque, a partir do século XXI, o Estado teve suas atividades permeadas pela valorização dos direitos e garantias individuais, surgindo a ideia do Neoconstitucionalismo1.

Antes disso, o Estado se mostrava preocupado em vivenciar uma democracia mais completa, com a ideia de que o valor da democracia dependia do modo pela qual as decisões eram tomadas e executadas, estendendo-se, no que tange à execução, para o objeto de estudo do Direito Administrativo. Nisso, passou-se a romper a concepção de que o indivíduo seria mero súdito do Estado, levando-o a ser parte integrante da própria estrutura administrativa. Neste sentido, anote-se a posição de MEDAUAR (2008; p.26-27):

Verificou-se que havia, com frequência, grande distanciamento entre as concepções políticas de democracia vigentes num país e a maneira com que ocorriam as atuações da Administração: perante esta, o indivíduo continuava a ser considerado como súdito, não como cidadão dotado de direitos. Passou a haver, então, uma pregação doutrinária em favor da democracia administrativa, que pode ser incluída na chamada democracia de funcionamento ou operacional. Em vários ordenamentos estrangeiros e também no brasileiro muitas normas e medidas vêm sendo implementadas para que a democracia administrativa se efetive. Isso porque o caráter democrático de um Estado, declarado na Constituição, deve influir sobre o modo de atuação da Administração, para repercutir de maneira plena em todos os setores estatais.

Atualmente, observa-se, em Portugal (art. 9 da Constituição Portuguesa vigente) e Brasil (art. 6 da Constituição brasileira vigente), a propagação incorporada, inclusive, em nível constitucional, da ideia de Estado Social, como tentativa de aproximar o Estado dos indivíduos e ultrapassar os insucessos do Estado Liberal e do Estado de Direito puro, muitas vezes, distante das principais necessidades da sociedade ou dos indivíduos em massa, levando, assim, à própria mudança da concepção de direito público e de interesse público no âmbito social.

Com o Estado Social, passamos a verificar uma generalização dos instrumentos e das ações públicas de segurança e bem - estar social, tendo o Estado atuação profunda nos setores sociais e econômicos da coletividade, passando a integrar o rol de funções estatais, com o aumento de inter-relações.2

À medida que se foram ampliando as funções do Estado, aumentaram as atividades da Administração e hoje temos, praticamente, na maioria dos países da União Europeia e no Brasil, dimensões gigantescas e o Direito Administrativo se tornou fator condicionante de grande parte das relações sociais e econômicas dos indivíduos, aumentando a complexidade das atribuições. Há quem afirme que a União Europeia foi uma criação fundamental do Direito Administrativo, sendo este ramo jurídico está sujeito ao bloco normativo que compõe a ordem interna e internacional.

O Estado, desta feita, precisou estabelecer novos mecanismos para que este auxílio e aproximação à coletividade fosse mantido, sendo criados novos axiomas, como princípio da proporcionalidade e da razoabilidade nas escolhas públicas, nova flexibilização do mérito administrativo, e, ainda, novos institutos como as parcerias público – privadas e o instituto da arbitragem e mediação nos atos administrativos, com previsão expressa no Brasil, na Lei de Licitações.

Ao mesmo tempo, como consequência negativa deste Estado, passou-se a observar, nos dois países mencionados e até na União Europeia, como um todo, um peso na atividade da Administração e nos institutos do Direito Administrativo, com o aumento das despesas públicas, sobrecarregando os orçamentos. Com este peso, passou-se novamente a questionar a ideia do interesse público e a flexibilização dos princípios pilares do Direito Administrativo e isso porque o modo pelo qual se configuram as relações entre o Estado e a sociedade repercute neste ramo jurídico.

Destaca-se, no entanto, que existem princípios do Direito Administrativo que persistiram até os dias hodiernos, apesar da evolução do Estado, sofrendo ou não amplitude no decorrer dos séculos, ainda sobre a influência francesa que, à época, expandiu-se na Europa continental, do qual abrangeu Portugal e Espanha3.

Pode-se mencionar, a título de exemplos, os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Acrescentou a jurisprudência, em nível brasileiro com destaque para o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, também sob a influência alemã e norte-americana.

Destaco a definição de princípios extraída de MEDAUAR (2008, p. 120):

Em direito, princípios são fórmulas nas quais estão contidos os pensamentos diretores do ordenamento, de uma disciplina legal ou de um instituto jurídico (Karl Larens, Derecho justo, 1985, p. 14). Consistem em “enunciações normativas de valor genérico que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico para a sua aplicação e integração e para a elaboração de normas (Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1974, p. 339). Constituem as bases nas quais assentam institutos e normas jurídicas.

Para que possa existir conexão de ideias com temática do trabalho, mister analisar de forma sucinta os princípios pilares do Direito Administrativo, que estão previstos na Constituição brasileira vigente de 1988 (art. 37), na Constituição Portuguesa de 1976 (art. 207) e ainda no Código de Direito Administrativo português, no sentido de elucidar a problemática trazida, senão vejamos:

a) Princípio da legalidade: tem-se hoje, após superados os exageros da legalidade formal, como o princípio em que consiste na ideia de que as condutas das atividades da Administração Pública devem ser alijadas tanto à concepção formal de ser advinda do Poder Legislativo, mas também em conformidade com os preceitos constitucionais que norteiam todo o ordenamento jurídico. Hoje, entende-se que a Administração deve nortear seu comportamento pelas normas que compõem o ordenamento e não somente, à lei, tendo o dever de respeitar todo o ordenamento4. Ficaram ultrapassadas as ideias clássicas deste princípio que se limitavam a dizer que o princípio da legalidade seria dizer que a Administração poderia realizar atos não contrários à lei e fazer somente o que a lei permite. Tais axiomas clássicos paralisam a atividade administrativa, daí porque precisou ser relido na concepção contemporânea, pela existência do poder discricionário e do mérito administrativo, pois se tais axiomas ainda prevalecessem, seria preciso que houvesse um comando específico para cada ato ou medida editados pela Administração realizar atividade. Isso engessaria a atividade administrativa, com efeitos negativos no desenvolvimento do Estado, criando insatisfação popular. Além disso, o princípio da igualdade não pode ser usado fora do princípio da legalidade e os direitos consentidos pelo ordenamento jurídico precisam estar em conformidade com o princípio da segurança jurídica. Ainda há que registrar o seguinte: hoje não é correto falar somente em princípio da legalidade, mas sim em princípio da juridicidade.

b)Impessoalidade: denota a concepção de imparcialidade da Administração Pública, aproximando-se da isonomia no tratamento dos administrados, evitando favorecimentos indevidos entre os indivíduos, salvo quando a lei excepciona motivado por um interesse maior que pode vir a ser denominado interesse público. E, além disso, denota que a Administração deve buscar o interesse da coletividade acima de barganhas políticas ou individuais dos governantes, nem praticar atos no interesse próprio ou de terceiros, impedindo-se a ingerência de fatores pessoais, subjetivos, antipatias, represálias e nepotismos, tudo em prol de se atender ao interesse público sem questionamentos privatísticos. Neste aspecto, é imperioso destacar este princípio para fins de se analisar a amplitude do princípio da supremacia do interesse público.

c)Moralidade Administrativa: referido princípio tem amplitude cada vez mais frequente diante das denúncias de corrupção tanto no Brasil como em Portugal. Busca-se, com este princípio, alcance mais significativo que a moralidade do senso comum, caminhando-se para uma postura do administrador como “bom administrador”5 em que a moralidade deve estar atrelada à honestidade, justiça e comunhão com o interesse público.

d)Eficiência: temos a ideia de ação, produção de resultados de modo rápido e preciso, para garantir a satisfação do bem comum (necessidades da população) de forma mais rápido possível. A crítica que se faz em relação a este princípio é a aplicação equivocada no sentido de que alguns sacrificam o princípio da legalidade sob a nomenclatura da eficiência, transmudando-se em abuso de poder ou desvio de finalidade, o que não pode ser permitido. Na verdade, os princípios devem se conciliar e não se excluírem, sendo esta a finalidade da técnica de ponderação de interesses entre princípios. No Brasil esta prática vem ocorrendo com certa frequência. Eficiência deve ser vista como otimização de tempo para a produção dos melhores resultados. Referido princípio vem sendo utilizado nas Reformas Administrativas em todo o mundo, principalmente, com o questionamento, com este princípio, do que vem a ser relevante ou não para a Administração Público, discutindo-se a seara do alcance do conceito de interesse público.

e) Publicidade: inerente à ideia de democracia em que todas as condutas do administrador devem ser visíveis e manifestas para que se possa ter um controle da legalidade e dos outros princípios nas condutas e manifestações dos governantes e administradores em um país. Está ligada intimamente à ideia de transparência, invertendo-se a regra anterior do segredo e do oculto. A extensão deste princípio, no âmbito brasileiro, pode ser citado como o Habeas data e o direito de obter certidões de órgãos públicos de seu interesse particular ou geral, bem como de ter acesso às contas públicas e aos julgados dos Tribunais de Contas. O sigilo de informações só se limita no caso de excepcional interesse público (mais uma vez a noção de interesse público) entendida esta como imprescindíveis para a segurança da sociedade e do Estado, que são conceitos vagos.

f) Indisponibilidade do interesse público: para tais fins, é vedado ao administrador deixar de tomar providências ou retardá-las, no sentido de que são relevantes para atingir o interesse público. Ao mesmo tempo, tratando-se de interesse público, não se pode “deixar para depois” ou “abandonar à própria sorte”, sendo mister que o administrador cumpra suas obrigações, pois é um interesse geral do qual não pode dispor.

Observa-se que, mais uma vez, nota-se a ingerência da necessidade de releitura do interesse público para fins de que todos os princípios da Administração Pública passem por uma atualização necessária na visão atual do Estado Democrático de Direito. Não se pode olvidar que ainda temos o princípio democrático, principalmente, na ótica do processo administrativo, em nível de Brasil e de União Europeia, em que se contempla várias limitações com a participação administrativa, passando o procedimento administrativo a ser uma espécie de “corredor aberto” para a ingerência de pessoas, abrindo mais espaço para as impugnações administrativas e também ao contencioso, em nível de União Europeia.

Há, inegavelmente, outros princípios, mas apenas houve a inclusão dos mencionados para fins de verificar a relação com a ideia de interesse público.

Destaque-se que existe efeito irradiante da transnacionalidade no âmbito do Direito Administrativo europeu, com a rediscussão e releitura de todos os princípios, embora não se possa falar propriamente em um Direito Administrativo global pela inexistência completa de uma Constituição global e com interesses públicos predominantemente globais.

Por derradeiro, para fins exemplificativos, temos o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado em que se observa a necessidade primária de proteger e propiciar o bem comum, entendido como o necessário para a vida na sociedade de forma digna.

E, para tais fins, este princípio denota que sejam instituídas algumas prerrogativas e decisões da Administração Pública que podem ter conotação arbitrária. Este princípio permitiria que a Administração pudesse realizar a ponderação de interesses, na sua visão, para conciliar os interesses.

O maior questionamento hodierno – assunto a ser aprofundando no último capítulo – reside na justificativa de manter este princípio ou flexibilizá-lo diante das últimas transformações sociais, políticas e econômicas e, principalmente, com os gastos públicos que vem levando alguns países à bancarrota. Para aprofundamento melhor da temática, passemos à noção do conceito de interesse público, a seguir.

2. A noção de interesse público primário e secundário

Anteriormente, após a visão geral do Direito Administrativo e com as primeiras noções dos princípios da Administração Pública, torna-se importante compreender o que seja interesse público, lembrando-se que interesse está sempre relacionado à ideia de valor. Também, deve-se destacar que há duas espécies de interesse público: o primário e o secundário e que tais conceitos não são utilizados exclusivamente no âmbito do Direito Administrativo, mas em outros ramos, dos quais destaca-se, a título de exemplo, o Direito Constitucional e da Seguridade Social.

Interesse público está atrelado à ideia de bem comum, da coletividade, como sendo aqueles interesses e direitos acima dos interesses individualmente considerados para a consecução de um objetivo mais amplo e significativo: propiciar as condições necessárias de satisfação, vivência e convivência do maior número de pessoas numa sociedade, considerando-se os aspectos naquele tempo e espaço.

Nota-se que não se poderia compreender o interesse público como um sentido próprio e especial, não sendo, como poderia parecer ao leigo, mero somatório dos interesses individuais de uma coletividade.

Diante disso, o Estado cria e seleciona, de acordo com as características do meio social, os interesses protegidos e em face da relevância para o próprio Estado, são estabelecidos, classicamente, em interesses privados e públicos. É o Estado que se torna responsável pelas “escolhas públicas” tendo como objetivo definir quais sejam os interesses primordiais para se atingir no sentido de que a sociedade receba a devida contraprestação diante da tributação a qual se sujeita pela teoria do consentimento.

Referidos interesses primários devem necessariamente passar pelo crivo de um Estado legitimado que tenha autoridade reconhecida para fins de classificar e atualizar os interesses públicos, sob pena de ter uma vivência baseada na arbitrariedade e na insegurança jurídica, com o descrédito do próprio Estado.

Quando faz as escolhas do interesse público, o Estado está buscando manter uma situação de segurança e equilíbrio da sociedade para harmonizar as diversas vontades que coexistem, com grupos, algumas vezes, antagônicos, produzindo, ao fim, uma composição de conflitos de interesses pela complexidade e pluralidade de pensamentos e sentimentos nos diversos grupos sociais que compõem a sociedade.

A busca por esta harmonia social gera constantes conflitos no Estado diante da pluralidade de interesses, principalmente, diante de um Estado Democrático que tem como fundamento o pluralismo de ideias e ideologias.

Assim, o Estado fica com a importante missão de definir o que é público, e, ainda, fazer as opções políticas necessárias, valendo-se da subordinação dos interesses individuais que devem ser relativizados quando em confronto com os interesses relacionados diretamente ao bem comum. Diga-se, ainda, que a legitimidade está na Constituição.

No entanto, esta classificação clássica teve que ser adaptada às novas necessidades sociais, sendo reclassificados como os direitos coletivos e difusos (interesses transindividuais), pelos interesses além da individualidade que representavam.

Por isso, diz-se que o conceito de interesse público e bem comum não são estáticos, mas dinâmicos, pois a interpretação evolutiva prova tal evidência constantemente, com a alteração de prioridades do próprio Estado, tal como ocorreu do Estado Liberal ao Estado Social.

Pode-se dizer que interesses individuais ou privatísticos (ou particulares)6 seriam aqueles que diriam respeito diretamente a cada pessoa, física ou jurídica (e até os entes despersonalizados), singularmente considerada. Não se verifica uma situação além ou pós a que se apresenta o interesse da pessoa, nem considera este direito ou interesse enquanto impacto na coletividade. Exemplo clássico é a aquisição da propriedade. Além disso, os indivíduos podem ter interesses individuais antagônicos aos metaindividuais.

Em contrapartida, temos os interesses públicos com suas subcategorias de importância prática.

Interesse público, paralelamente, relaciona-se com o Estado e seus elementos constitutivos. Isso porque o Estado funciona como um administrador de interesses gerais da sociedade definidos no texto constitucional.

O interesse público, inerente ao Estado, é posto sob a responsabilidade deste e como finalidade de sua ação. É o interesse geral da sociedade também denominado de bem comum que, ao seu turno, inspira a ação política do Estado considerando os regimes políticos de povos civilizados.

Na visão clássica, o interesse público é algo superior e diferenciado dos demais interesses existentes no seio da sociedade. Hoje, como veremos, temos a situação de aproximação da concepção de interesse público tal qual se vê no direito anglo-saxônicos, principalmente, pelas novas mentalidades do Estado Neoliberal, com o corte nos orçamentos públicos.

Na verdade, o interesse público não pertence ao Estado, mas ao grupo social a qual organiza. Neste ponto, acentua MOREIRA NETO (2005; p. 08):

A convivência numa sociedade civilizada seria impossível sem um mínimo de segurança de que um certo núcleo fundamental de interesses individuais será respeitado e protegido. Ao Estado, como organização juspolítica da sociedade, cabe declarar quais são esses interesses, que devem ser por ele assegurados, uma vez, para o desempenho dessa missão, tornou-se, historicamente, o centro da mais significativa concentração de poder, vindo a constituir-se como um Poder Público e, por isso, passando a atuar como fonte de direitos.

Continua MOREIRA NETO (2005; p. 10 e 11) ao tratar da importância das escolhas públicas em consonância com a realidade social:

Assim, no sentido instrumental,o Direito é uma elaborada técnica social, milenarmente desenvolvida, voltada à manutenção da máxima organização política estável, que hoje é o Estado, de modo a garantir a satisfação dos interesses dos membros da sociedade, que esta lhe comete proteger, bem com os interesses públicos, que a sociedade define por órgãos e processos próprios. (…) A harmonia social é uma situação de equilíbrio instável. Os conflitos de interesses são inevitáveis e devem ser considerados sob todos os seus aspectos. Existirão sempre conflitos, em quaisquer modalidades de relações, mas nem todas repercutirão negativamente, pois muitas divergências têm potencial criativo e aperfeiçoador. Sobrevirão, porém, inevitavelmente, conflitos que perturbem a harmonia social e que introduzam um potencial destrutivo e corruptor, sendo esses os que deverão ser evitados e, se manifestados, solucionados.

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Além disso, as noções de interesse público passam pelo crivo dos princípios da proporcionalidade e da indisponibilidade do interesse público, considerando-se os conflitos sociais existentes.

Destaca-se o primeiro, pois atribuem o sentido de coerência lógica e sistêmica das decisões e medidas administrativa (adequação entre meios e fins). Isso porque a noção de interesse público, quando feita de forma desequilibrada, pode levar ao arbítrio e à injustiça social, objetivos que devem ser obstaculizados pelo Estado Democrático.

Como dito, os interesses públicos podem ser classificados em primários e secundários. No primeiro caso, temos interesses diretamente relacionados à sociedade (ex: direito à saúde e à educação) e os secundários, embora também refiram-se ao Estado, possuem uma conotação singular, qual seja, referem-se ao Estado enquanto pessoa de direitos obrigações. Neste último caso, temos como exemplo clássico: pagamento de indenizações que o Estado faz ao particular.

Importante frisar que existe distinção da visão de interesse público do direito anglo – saxônico do direito europeu continental, pois, no primeiro caso, é considerado interesse público como algo intrinsecamente relacionado aos interesses individuais, sendo próximo ao que resultaria da soma dos interesses individuais.

No segundo caso, conforme já analisado anteriormente, o interesse público está acima dos interesses individuais e, por isso, é protegido e perseguido pelo Estado e constitui um fundamento de um regime jurídico próprio.

Há a visão humanista do Direito Administrativo que verifica o interesse público como os advindos dos direitos da pessoa, com a realização dos direitos invioláveis do homem, naquilo que se pode chamar de “patamar civilizatório mínimo”.7

E, sobretudo, porque as visões que se possuem de interesse público podem ser usados na regulação dos serviços públicos, pela correspondência direta, tais como os serviços públicos de saúde e educação diretamente relacionados aos interesses primários de natureza social.

Esta visão humanista propiciará até mesmo a ideia de justiça social, no que se refere a uma concepção justa e solidária dos interesses públicos, aproximando-se, cada vez mais, do bem comum, na atuação de percepção geral e superior aos interesses privados.

Quando o Estado se aproxima e concretiza a noção de interesse público primário, mais forte torna o princípio da supremacia, pois trará o contentamento popular numa relação direta da tributação e fiscalidade do Estado com a entrega da prestação social devida, mesmo que sempre existam grupos divergentes e interesses antagônicos.

O interesse público primário possui, entre outros, o seguinte elemento em seu cerne, qual seja, os princípios fundamentais que regem a atividade administrativa como a proporcionalidade, boa-fé, justiça, legalidade, igualdade e imparcialidade que são fundamentos e limites da atividade administrativa.

FEDERICO (1999; p. 34-35)8 sintetiza acerca desta visão humanista do interesse público:

O interesse público é, então, modificado na sua natureza de interesse próprio do Estado ou mesmo da coletividade, mas geralmente concebido como uma entidade impessoal e objetiva, externa aos direitos dos cidadãos (rectius das pessoas); não mais constitui uma superestrutura burocrática e supra-individual, passando sim a ser síntese e realização equilibrada dos valores das pessoas associadas na unidade dos seus direitos e dos seus deveres, como titulares de um status personae paritários.

Com a evolução do Estado Liberal, há uma tendência de que o interesse público na União Europeia está se aproximando da concepção do direito anglo – saxão, com consequências diretas nos serviços públicos.

Ainda há que manifestar novas distinções entre interesses públicos primários e secundários9. Os primeiros seriam os fins e objetivos fundamentais de um Estado Democrático, aproximando-se das ideias de Direito Constitucional e das funções estatais (saúde, ordenamento do território, transporte e saneamento básico) e os secundários entrariam na ótica do exercício da função administrativa. Essa é a ideia da Escola de Coimbra.

Há, ainda, a subclassificação do interesse público primário amplo e específico. No primeiro caso, temos vários centros de competência, diverso do segundo caso, em que temos só um centro de competência.

No entanto, podemos apontar outra distinção: primário seria aquele defendido pelo legislador, afastando a conotação sociológica, sendo que a definição vem da lei que seleciona as necessidades coletivas. Previamente é definido pelo legislador, mediante o reconhecimento jurídico dessa necessidade coletiva. É o interesse-fim perseguido pela Administração, não competindo a esta definir os seus fins com dois limites: o fim e a competência, ambos definidos pelo legislador.

Os interesses públicos secundários competem às entidades administrativas, mas não constituem o interesse fim da Administração (exemplo: aqueles protagonizados pelas Secretarias). São os meios para se atingir o interesse público primário, bem com os interesses dos particulares que sofrem os impactos das decisões administrativas (exemplo: pagamento das indenizações nas desapropriações). Permite a realização do interesse público primário, visando tornar mais adequado, mais racional a utilização do interesse público primário. É esta a concepção no direito administrativo português.

A doutrina brasileira compreende que os interesses públicos secundários somente podem ser considerados legítimos quando sejam instrumentais para atingir os interesses primários. Na definição dos interesses públicos, o Estado emprega uma noção de subordinação entre os interesses públicos e os privados e é neste tratamento subordinativo, desigual, que vem residindo a crítica acerca do princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre o privado.

Outra crítica está relacionada com a heterogeneidade e a multiplicidade do interesse público em que a teoria clássica não consegue absorver, pois o próprio Estado se desenvolveu em todos os termos, seja econômicos, políticos, sociais, tecnologia da informação etc.

Assim, na concepção clássica e que ainda prevalece, nos dias atuais, apesar da crítica em torno da crise principiológica, vem à tona a ideia de que os interesses públicos prevalecem sobre o interesse privado. Isso porque os interesses gerais seriam, em tese, superiores dos que são individualmente considerados.

O questionamento advindo é no sentido dos conflitos entre dois direitos públicos e, neste caso, o próprio Estado deve procurar priorizar um interesse em detrimento do outro, podendo-se falar até na aplicação da técnica de ponderação, erigindo-se determinado interesse como público, submetendo-o à sua tutela.

E, ainda, pelo fato de que, no Estado contemporâneo, cada vez mais os interesses públicos se tornam heterogêneos e fogem ao monopólio do Estado pela complexidade das relações que se fazem e, ainda, considerando-se que esta completude leva à necessária busca pelo apoio da sociedade. Até mesmo porque hoje a Administração Pública não se comporta exclusivamente por pessoas jurídicas de direito público.

Imperioso destacar que, no âmbito do Direito Administrativo na União Europeia, temos um efeito peculiar que é a transnacionalidade e considerável parte das fontes nacionais na Europa são de origem comunitária, inclusive, os interesses públicos primários em nível comunitário é o que se verifica hoje.

A União Europeia passou a tratar do interesse público com uma noção de fins múltiplos, como fundamento e limite de atuação dos poderes públicos comunitários. O interesse público comunitário possuiria dois pilares: limitação dos poderes estaduais e fonte de legitimação e criação das entidades públicas comunitárias. O interesse público, em sede de União Europeia, se impõe aos Estados -membros. Neste sentido, ANTUNES (2012; p. 126-127):

O interesse público passa a constituir o fundamento e o limite da Administração europeia e de sua atividade, maxime discricionária. O interesse público comunitário confere ainda uma profunda legitimidade à atividade pública comunitária, que repousa não tanto sobre a constituição do poder mas sobre a sua justificação, que se afirmou sobretudo pela mão da jurisprudência comunitária.

Nesta seara, é preciso destacar que o interesse público precisa ser relido na atual conjuntura econômica e social. Há a visão necessária de que nosso Estado, seja em Brasil e em Portugal, bem como outros países da União Europeia, não estão mais suportando os gastos públicos com as despesas sociais, pela abrangência antes oriunda dos interesses públicos e também por uma tendência de que os Estados tendem a gastar mais do que possuem.

É preciso que se destaque a necessidade de triagem dos interesses públicos para fins de evitar o malogro do Estado que já está em crise diante dos problemas econômicos. Em Portugal, nota-se esta situação de forma mais incisiva e, no Brasil, em ascensão econômica, nota-se que esta preocupação está ocorrendo de forma paulatina, principalmente, pelos programas sociais.

Também a doutrina administrativista vem modificando o foco do interesse público, no sentido de que se transforme da visão cujo titular é o Estado para que se compreenda como reflexo do interesse dos cidadãos, principalmente, quando se refere ao cidadão como usuário e consumidor de serviço público.

Registra-se, por derradeiro, que a flexibilização do interesse público que antes alguns eram considerados absolutamente indisponíveis e hoje não o são, podendo harmonizar a satisfação de interesses públicos com interesses individuais, coletivos ou difusos valorizados pelo Direito.

Assim, a própria flexibilização do interesse público leva à polêmica e discussão da crise ou não do princípio da primazia do serviço público sobre o privado, tal qual como será visto a seguir.

A

In

3. A noção do princípio da supremacia do interesse público no âmbito do Direito Administrativo

Considera-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado um dos pilares do Direito Administrativo juntamente com o princípio da indisponibilidade do interesse público, ambos tendo como norte o interesse do bem comum, público, da coletividade. Diante disso, para a compreensão deste princípio, nota-se ser preciso definir o contorno do interesse público, tal como visto no capítulo anterior.

Se vivemos em uma República, temos a concepção de que estamos em um regime político que se define num espaço público, distinto do privado, do qual são identificados e caracterizados certos interesses ditos públicos, que transcendem os direitos individuais.

Passam os membros da sociedade a ter satisfação submetida a decisões, normativas e concretas de agentes públicos atentos a estes interesses. Para tais decisões, a Administração Pública fazia uso do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, do qual MELLO (2003; p.60) definiu:

Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados.

Nas relações privadas há uma ideia de coordenação, diferentemente das relações públicas, em que existe a ideia de subordinação de interesses, em que as partes não são tratadas de forma igual, mas diferente. Além disso, nas relações públicas, segundo a doutrina clássica, o Estado, mesmo sob o pálio da legalidade, ficaria em situação sobreposta ao interesse individual, por ser o gestor do bem público.

MEDAUAR (2008; p. 128-129) acerca do tradicional princípio da supremacia do interesse público sobre o privado aduziu:

Na verdade, é invocado em outros ramos do direito público. A expressão interesse público pode ser associada a bem de toda a coletividade, à percepção geral das exigências da vida na sociedade. Esse princípio vem apresentado tradicionalmente como o fundamento de vários institutos e normas do direito administrativo e, também, de prerrogativas e decisões, por vezes arbitrárias, da Administração Pública. Mas vem sendo matizado pela ideia de que à Administração cabe realizar a ponderação dos interesses presentes numa determinada circunstância, para que não ocorra sacrifício a priori de nenhum interesse; o objetivo desta função está na busca de compatibilidade ou conciliação dos interesses, com a minimização dos sacrifícios.

Referido princípio significa que quando a Administração Pública estiver lidando com dois interesses, em um caso concreto, deve considerar, numa posição de subordinação, que o interesse público escolhido seja considerado como supremo em relação ao interesse privado, pois haveria a concepção pacífica, no Direito Administrativo, que o bem comum deve prevalecer em situações de conflitos. É preciso, ainda, que se verifique que tais interesses são os escolhidos pelo legislador e postos na ordem constitucional.

Quando estamos tratando deste princípio, nota-se que a sua invocação lembra garantir outros axiomas, destacando-se o princípio da segurança jurídica, haja vista que proporcionaria segurança aos membros da sociedade na escolha do interesse mais próximo ao bem comum e, ainda, faria imperar a justiça, advindo, principalmente porque o bem comum escolhido e executado pelo administrador atingiria o maior número de pessoas.

Neste sentido, registra MOREIRA NETO (2005; p. 90):

Nas relações tipicamente públicas, de subordinação de interesses, o quadro se inverte; a lei capta e identifica em determinado interesse geral, define-o como um interesse público e, com isso, prioriza seu atendimento sobre os demais interesses, em certas condições. Portanto, a norma legal, ao enunciar um interesse público específico, comete ao Estado, por qualquer de suas entidades, ou órgãos, ou mesmo a particulares, o encargo finalístico de satisfazê-lo, definindo, em consequência, as competências, as condições de proteção, os direitos e os deveres jurídicos correlatos.

Nota-se que este princípio deve ser visto também na ótica do poder discricionário que está na escolha dos meios e pode assumir várias formas, entre elas, quanto ao controle e ao conteúdo do ato administrativo – mérito administrativo.

A discricionariedade é escolher a melhor decisão entre as possíveis para atingir o interesse público e, nesta escolha, é preciso se perceber que o administrador, na concepção clássica, deve sempre fazer sobrepor o interesse público em prol de interesses individuais. Na escolha da melhor decisão possível, no âmbito do poder discricionário, há o norte pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

Na verdade, quando se percebe o interesse público que deve se sobrepor, ressalte-se a ideia que norteia até mesmo de cunho utilitarista, à medida que se opera como “pano de fundo” para que seja aquele interesse capaz de ser produtor da maior felicidade para os membros da sociedade.

E é justamente nesta concepção que o administrador faz as escolhas melhores entre as possíveis, sobrepondo o interesse público nesta visão de bem comum necessário para a felicidade de todos, no bem comum. 10 Exemplo disso é o que ocorre, por exemplo, com o direito à propriedade, de natureza individual, em um primeiro momento, mas que, em um contexto, podendo se considerar o interesse social, com o instituto da desapropriação.

Porém, nota-se certa tendência à flexibilização do interesse público, no Brasil e na União Europeia, em que a imperatividade e a indisponibilidade são relativizados, o que anteriormente era impensável. Hoje a imperatividade dos atos administrativos, no Brasil, restringe apenas às hipóteses em que o Estado dela necessita e está intitulado a exercê-la para dar prevalência aos interesses legalmente dispostos como públicos.

Além disso, temos uma nova subdivisão que vem surgindo no interesse público além das já estudadas: direitos públicos de indisponibilidade absoluta e relativa. Nos primeiros casos, temos uma associação direta ao conceito de direitos públicos primários. No segundo, podemos estar diante de direitos públicos secundários, pois, geralmente, são aqueles relacionados a fins patrimoniais ou instrumentais do Estado.

São as mutações que vem sofrendo o Direito Administrativo. Entende-se, hodiernamente, que o princípio da supremacia do interesse público em tese cedeu a outro princípio reformulado chamado de supremacia dos princípios fundamentais constitucionais, garantidores dos direitos das pessoas. Nesta ideia, teríamos as seguintes consequências:

  1. reconhecimento da supremacia dos direitos fundamentais sobre quaisquer prerrogativas dos entes públicos: isso porque, com o Estado Democrático de Direito, e com o Neoconstitucionalismo, houve uma supervalorização dos direitos fundamentais, principalmente, os direitos e garantias individuais. Nota-se que não pode o interesse, sob o rótulo de público, sacrificar indiscriminadamente direitos fundamentais, havendo nestes princípios um freio limitador do princípio da supremacia do interesse público.

  2. reconhecimento dos direitos públicos subjetivos dos administrados: isso porque os administrados, numa ótica de Estado Democrático, não são vistos como súditos e o próprio Estado é limitado pelo ordenamento jurídico, o que leva ao questionamento da supremacia nas relações públicas.

  3. reconhecimento da força vinculante dos pactos de toda ordem, contratuais ou não, celebrados entre o Estado e suas entidades: acerca do interesse público, temos que o Estado, em tese, e tradicionalmente, seria titular do interesse público, mas observa-se uma heterogeneidade das relações públicas, mediante a Administração Indireta e até as parcerias público – privadas, por exemplo. Hoje existe um conjunto de pessoas coletivas, na Administração, de maneira híbrida. Destaca-se a influência disso na União Europeia que cria constantemente novas figuras jurídica, principalmente, no âmbito da contratação pública. Aqui também tem efeito as formas da privatização.

  4. reconhecimento da necessidade de ponderação dos interesses individuais protegidos pela ordem jurídica sempre que conflitantes com interesses públicos disponíveis (patrimoniais e instrumentais): na ponderação de interesses, o Estado, tradicionalmente, deveria privilegiar os interesses públicos. Ocorre que os interesses públicos podem ser primários ou não. No segundo caso, estamos falando dos interesses de disponibilidade relativa que, na colisão de interesses, devem ser considerados, podendo prevalecer se os interesses individuais, neste caso, forem fundamentais.

  5. reconhecimento das garantias processuais administrativas: isso permite o questionamento na seara administrativa do que seja o interesse público e sua extensão. 11 As funções administrativas enquanto processo administrativo tem uma conotação metódica e de proteção jurídica. No primeiro caso, numa tendência de ordenar a atividade administrativa. No segundo caso, mediante a confirmação do direito de participação, do qual citamos o art. 53 do Código de Processo Administrativo Português. Há, ainda, alusão ao princípio democrático.

(6) reconhecimento da presunção de boa-fé dos administrados e do seu direito à confiança legítima nas relações com a Administração: um dos princípios mais importantes é o da segurança jurídica, ocasião em que somente o Estado devidamente legitimado com a correta escolha dos interesses públicos irá aproximar o Estado da sociedade, fortalecendo o princípio da confiança. Aqui temos o princípio democrático e a função de garante do Direito Administrativo, principalmente, no que tange ao processo administrativo que tem a junção de dois princípios fundamentais: o da participação e o democrático. No primeiro caso, teríamos as exteriorizações do direito à informação e, principalmente, ao acesso às informações não procedimentais, ou seja, dados pessoais que dizem respeito à própria Administração.

A alteração da visão clássica deste princípio tem como causas primordiais: a projeção transnacional da Administração Pública e de seus princípios; gastos públicos com a perda da autossuficiência do Estado, a privatização formal da Administração, a globalização do Direito e as formas mistas entre direito público e direito privado, formando entidades híbridas, embora ainda se questione se existe um Direito Administrativo global com interesses públicos globais. São as mutações do Direito Administrativo.

É o aprofundamento destas questões que serão vistas no capítulo a seguir, para fins de esclarecimento se existe ou não crise de um dos maiores dogmas do Direito Administrativo. No âmbito português, temos o impacto do direito comunitário que já possui um interesse público também comunitário, impondo-se aos Estados- membros, sendo certo que o Direito Administrativo da União Europeia traz alterações às funções e natureza das entidades público administrativas, bem como alterações nos principais institutos administrativos.

Já se percebe neste interesse público comunitário um ensaio para o interesse público global e, assim, percebe-se que cada Estado passa a pensar seu interesse público escolhido não mais na ótica territorial, mas além disso.

4. Existe crise ou não do interesse público primário e do princípio da supremacia do interesse público no âmbito do Direito Administrativo?

Conforme já visto anteriormente, surge a problemática se ainda prevalece o clássico princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e a existência ou não do interesse público primário nas relações travadas pela Administração Pública, mesmo com as revoluções sociais e econômicas e as consequências da globalização.

Isso porque deve-se ficar atento que o Direito Administrativo, classicamente, seria um direito orientador de fenômenos sociais.12

Porém, com o avanço das relações sociais, políticas e econômicas, tornou-se importante estabelecer mudanças na forma de pensar e agir no que tange o Direito Administrativo, sendo inevitável as adaptações e, principalmente, de modernizá-lo, diante da inovação tecnológica até a velocidade das relações.

Isso porque o Direito e o ordenamento devem ser reflexos dos fenômenos sociais e é inevitável concluir que o Direito Administrativo hoje está em crise, com suas raízes na globalização, mas também na racionalidade ou na perda da segurança jurídica numa sociedade de risco. Neste sentido, registra-se BOBBIO (1997; p. 41):

Um ordenamento não nasce num deserto; deixando de lado a metáfora, a sociedade civil sobre a qual forma um ordenamento jurídico, como é, por exemplo, o do Estado, não é uma sociedade natural, completamente privada das leis, mas uma sociedade no qual vigem normas de vários gêneros, morais, sociais, religiosas, usuais, consuetudinárias, regras convencionais e assim por diante. O novo ordenamento que surge não elimina nunca completamente as estratificações normativas que o precederam: parte daquelas regras vêm a fazer parte, através de um reconhecimento expresso ou tácito, do novo ordenamento, o qual, deste modo, surge limitado pelos ordenamentos precedentes.

Com as modificações globais, passou-se a questionar se o Estado estaria completamente apto a escolher e aplicar o interesse público; se haveria uma aproximação destas escolhas ao bem comum e se a sociedade estaria satisfeita. Em suma, a própria titularidade do interesse público veio a ser questionada.

A insatisfação social deixa evidenciado que o princípio da segurança jurídica não é alcançado e nem se atinge a felicidade dos membros da sociedade, fragilizando a dupla vocação do Direito no sentido de proporcionar segurança aos membros de uma sociedade e propiciar o sentimento de justiça. Destaca-se a posição de MOREIRA NETO (2005; p. 79):

Por outro lado, a justiça é fruto da consciência moral dos indivíduos, um atributo do espírito humano, qualificando eticamente as instituições e, de modo particular, as instituições jurídicas. Ainda que o homem possa viver sob injustiças, e as tem suportado imemorialmente, será sempre necessário um mínimo de segurança para a existência de uma sociedade para que esta sociedade logre o progresso.

Desta feita, os questionamentos da própria finalidade estatal surgem e, consequentemente, das suas escolhas pelo interesse público. Até que ponto os interesses escolhidos como públicos e essenciais são reflexos da necessidade do grupo? As escolhas públicas são fidedignas das necessidades primárias e emergenciais?13 O interesse público primário corresponde às necessidades elementares do grupo?

Toda esta problemática vem sendo discutida, mesmo que retiremos todo o conteúdo sociológico e filosófico da análise desta crise, mas, principalmente porque fatos jurídicos objetivos e concretos surgem neste novo cenário. Neste prisma, registro a anotação de CUNHA (2005; p.65):

A queda do prestígio dos governos deve-se não só aos escândalos, à corrupção, ao nepotismo de que periodicamente alguns dos seus membros são suspeitos e eventualmente culpados, nos vários países, mas também de forma mais discreta mas ainda mais perene, à sua profunda incapacidade na resolução dos problemas, à sua atitude pouco atualizada e de respostas lentas, à promoção da burocracia, ao distanciamento fave aos problemas concretos de cada lugar e de cada pessoa, à tentação periódica em cair no exagero, quer o da mão dura autoritária, quer o da luva de setim laxista. Tudo, em grande medida, resultado da falta de vocação, de estudo, de preparação, numa palavra: de educação ou de cultura. A propagação mediática imoderada de ideologia dos direitos, designadamente de alegados mas realmente quiméricos direitos humanos ou fundamentais (que realmente são prejudiciais à credibilidade e aplicabilidade dos verdadeiros), excitou os ânimos e criou na opinião pública um estado de permanente insatisfação pelo que sempre se não tem da apregoada cornucópia a que todos alegadamente teriam direito.

Isso porque o Estado vem sofrendo a relativização do conceito de soberania e, ainda, temos a crise de autossuficiência do Estado que, para compensar suas fragilidades, vem criando figuras híbridas de direito público e de direito privado para controle das funções administrativas, tal como ocorre com as parcerias público – privadas. O Estado já não é uma pessoa coletiva primária.

O próprio Direito Administrativo, para se manter em atividade, precisa absorver as mudanças com a rapidez que ocorrem. O direito administrativo anda agora à procura de um novo Senhor.

O Estado Neoliberal também vem surgindo a todo vapor, no sentido de afastar as problemáticas orçamentárias do Estado Social, embora se mantenha alheio às preocupações sociais mais dramáticas, como saúde, educação, sistema penitenciário, benefícios previdenciários etc. Com o Estado Neoliberal, passaram a existir com certa frequência as privatizações que representam o afastamento do Estado no monopólio ou exercício de determinadas atividades que já não considera essenciais e passíveis de preocupação imediata do Estado, repassando ao setor privado.

Quando há esta transmissão para o setor privado, o interesse público passa novamente por uma releitura, tendo em vista que o próprio Estado ousou por bem abdicar de determinado setor econômico por não considerar pertinente a sua intervenção. Questiona-se com tais privatizações se haveria a tomada de decisões corretas pelo Estado à medida que serviços públicos seriam repassados à iniciativa privada e o Estado perderia certo controle sobre tais setores.

O interesse público passaria a ser mitigado. E a discussão acerca desses pontos fomenta a crise do Direito Administrativo e dos seus institutos, entre eles, os princípios. A supremacia do interesse público sobre o privado já não pode ser usado da modalidade tradicional, mas deve-se ponderar que ele simplesmente não pode deixar de existir por completo, pois levaria à própria ruína do sistema organizacional e administrativo.

Explica-se melhor. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e a ideia de interesse público devem persistir em nosso ordenamento, porém mediante atualizações no que se refere à sua extensão e sem se desprender dos direitos fundamentais. Além disso, deve ficar muito evidenciada na ponderação dos interesses públicos aquilo que seja primário e secundário e, ao mesmo tempo, o interesse público tido como primário deve espelhar o patamar civilizatório mínimo e a dignidade da pessoa do administrado, a ser encarado enquanto pessoa.

A partir do momento em que o Estado questiona suas funções, privatizando determinados setores, passamos a ter o questionamento da titularidade de um ente que a si próprio fragiliza e é fragilizado, bem como, em paralelo, surge o fortalecimento dos direitos fundamentais.

Neste sentido, destaca-se a posição de ANTUNES (2012; p. 27):

Curiosamente, também no domínio da privatização formal e material do direito administrativo se verifica um fenômeno paradoxal – aumento de organismos administrativos, a maioria deles atípicos, como as fundações públicas de direito privado e as entidade administrativas independentes. O retorno ao mercado e a sua difusão global, a par da multiplicação de direitos, determinaram na doutrina administrativa uma orientação dominante favorável ao mercado e às privatizações, com a inevitável redução no âmbito dos poderes públicos, em particular nos domínios de gestão mas também na utilização de instrumentos privatísticos no exercício de funções administrativas. Este fenômeno foi batizado como fuga do direito administrativo para o direito privado, sendo que seria mais adequado designá-lo por enfatização do direito privado no âmbito da função administrativa.

Esta crise vivida pelo Direito Administrativo afeta o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e a ideia de interesse público primário e secundário, por serem pilares na construção deste ramo jurídico. MOREIRA NETO (2005; p. 15) manifestou-se no seguinte sentido:

Esse ocasional alçamento, de um interesse qualquer, pinçado das relações interindividuais, a interesse mediatamente público, é ditado pela orientação política prevalecente e leva em consideração a inconveniência de abandonar-se o eventual desate dos conflitos a outras soluções, que não as previstas na norma jurídica, protegendo-se, em consequencia, o imediato interesse público. Com isso, pode-se afirmar que as teorias que procuravam encontrar as distinções entre o Direito Público e o Direito Privado ou na titularidade do interesse, ou na existência de supremacia na relação jurídica, não são satisfatórias.

O Direito Administrativo, mesmo sob o pálio do princípio da legalidade, utilizou-se, logo na sua origem. do binômio privilégio – garantias. A especialidade do direito administrativo passava especialmente pela garantia – privilégio da Administração e dos seus funcionários.

No primeiro caso, com referência à posição do Estado nas relações com particulares, em que a isonomia restaria flexibilizada em nome de um interesse maior, denominado bem comum, interesse público, interesse geral etc e, em contrapartida, para fins de evitar arbítrios do Estado mediante a elaboração e execução de atos ilegais e imorais, teríamos controle da atuação estatal, desde que não ofensivas ao interesse público, conferindo aos jurisdicionados as garantias, com certa proteção aos direitos dos particulares.

Estes privilégios se verificam nos prazos processuais mais elastecidos ao ente público, ao poder que se confere ao ato administrativo e, ainda, a posição superior nas contratações públicas, sendo permitido que faça alterações unilaterais nos contratos públicos por meio das cláusulas exorbitantes.

A Administração Pública tem sempre maior margem para discutir previamente seus contratos, sendo que o particular tem que aceitar os efeitos jurídicos destas contratações, diferentemente do que ocorre no Direito Privado, em que existe consenso na formalização das regras do negócio jurídico.

Nesta fase clássica, o ato administrativo revestia-se de imensa fortaleza, prevalecendo sobre os interesses dos particulares. Era o princípio da supremacia. Neste momento, o particular não poderia se opor frontalmente ao ato administrativo, tendo que obedecê-lo até a sua anulação definitiva. E, muitas vezes, o controle deste ato administrativo, em nível judicial, era apenas formal. Isso criava uma certa insegurança ao administrado pela existência de atos administrativos viciados.

Atualmente, no entanto, tanto no Brasil como em nível de União Europeia, nota-se a possibilidade do juiz analisar o mérito administrativo, ou seja, aprofunda-se na sua análise que não se restringe tão somente à forma, mas avança no seu conteúdo.

Tais ponderações eram inadmissíveis nos primórdios do Direito Administrativo, mas que, por exemplo, já foram concebidas no âmbito dos Tribunais superior brasileiros, como o Supremo Tribunal Federal, já seguindo orientação de doutrina brasileira emergente sobre o tema.

Quando se passou a conceber e vivenciar o Estado Social, a Administração Pública passou a ser prestacional, e, diante disso, teve uma readaptação aos anseios da sociedade, em que o princípio da supremacia do interesse público precisou ser sensibilizada a uma conotação de prestação, de “dar ao outro”, de enfatizar a solidariedade do Estado com os menos abastecidos. O interesse público se humaniza e passa a ser maior, atingindo o rol dos direitos fundamentais, não somente no que tange aos direitos e garantias individuais, mas também os direitos sociais.

Para atender a demanda, tivemos os fenômenos da desconcentração e descentralização administrativa e se propaga a ideia de um justo procedimento administrativo, com o avanço da justiça administrativa, como reflexos desta fase social do Estado, com a propagação da ideia democrática, participativa e republicana, com a inclusão do indivíduo na Administração, isso porque o homem passou a ser considerado como pessoa digna, e, ainda, o Estado Democrático precisaria deixar claro os seus reflexos em toda a organização política, destacadamente, no âmbito dos processos judiciais e administrativos. Nesse passo, anota-se a conclusão de ANTUNES (2012; p. 46):

A explosão da democracia procedimental e da colegialidade administrativas são caracteres essenciais do moderno direito administrativo. Uma das suas notas mais características é a perda de unilateralidade (procedimental) do ato administrativo, se excetuarmos a decisão final, e a perda da imperatividade do ato. É no procedimento administrativo que o particular melhor expressa a sua visão do mundo e que a Administração melhor se sujeita ao princípio da legalidade.

Aqui temos o destaque da prestação dos serviços públicos. E na escolha de tais serviços e na destinação dos recursos orçamentários, o Estado seleciona os interesses públicos, racionaliza-os e os devolve à sociedade como serviços. O indivíduo passa a ser visto não como mero usuário, mas principalmente como consumidor, tal como ocorrido no Brasil, no âmbito da legislação referente ao Código de Defesa do Consumidor.

No decorrer das décadas, o próprio instituto do Estado atravessou uma crise em sua essência, seja pelos gastos insustentáveis como na escolha dos interesses, além da relativização do conceito de soberania.

A crise na sua essência atinge as pilastras do Direito Administrativo, pois o Estado já não implica unidade do ordenamento jurídico, abrangendo necessidades e interesses que ultrapassam suas linhas territoriais, tendo visão cosmopolita, como consequência das noções de Estado Democrático de Direito.

Como dito, concorda-se com a corrente doutrinária que defende a permanência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado em nosso ordenamento, com a ressalva de que deva ser considerado os direitos fundamentais dos cidadãos e, ainda, que o interesse público primário seja reflexo imediato das necessidades prementes do grupo social, considerando-se não somente em nível de um território, mas até em nível comunitário.

Note-se, ainda, que não atingimos o nível de um interesse público global à medida que, mesmo no âmbito da União Europeia, muitos Estados-membros não estão na mesma situação econômica e social e o interesse público em determinadas matérias pode ser mais enfático em um do que em outros Estados-membros. Nem todos os Estados-membros possuem a maturidade de seleção do Estado no que tange, por exemplo, a privatizar serviços, anteriormente, públicos. Considerar num mesmo plano todos os Estados -membros poderia levar a uma situação de injustiça, contrariando o princípio da isonomia.

Não se nega a existência de um Direito Administrativo comunitário, mas ainda não se pode supor em um interesse público global.

Porém, é preciso destacar que o Estado deve persistir com seus pressupostos, mesmo que numa conjuntura mais globalizada e que as ingerências externas tenham significada importância. Mas o Estado, mediante o seu poder soberano, deve criar seu ordenamento jurídico ou permitir participar de um ordenamento comunitário, respeitando as necessidades inadiáveis da comunidade, tal como ocorre na identificação dos interesses primários.

Em um mesmo patamar que se diz que os ramos do direito público podem vir a serem privatizados, não é menos certo assentar que a Constituição ainda exerce força vinculante e suprema e que é preciso um Estado forte para ser garantidor dos direitos fundamentais.

Para se valer de tais garantias, o Estado precisa possuir um Direito Administrativo coeso e atento aos fenômenos sociais, e nem sempre se poderá persistir a concepção de supremacia do interesse público sobre o privado.

Isso porque se estivermos diante de um interesse público secundário e um direito privado de ordem fundamental, deve o Estado ponderar e, muitas vezes, aplicar o direito privado. Para muitos, seria a negativa do próprio princípio da supremacia do interesse público e a superação deste interesse.

Há quem defenda que o direito administrativo deve existir em posição secundária e, ainda, que o princípio da supremacia do interesse público deve sucumbir, pois seria afronta direta ao princípio da isonomia e que deve o Estado deve ser tratado no mesmo patamar dos indivíduos, sustentando ser este o viés democrático.

Mas não é esta visão que temos.

Primeiramente, não se pode abolir o pilar do Direito Administrativo construído secularmente, não se podendo ignorar os princípios criados, sem qualquer tentativa de atualização e colocação em um novo plano normativo.

Em segundo, estamos diante da necessidade constitucional e internacional de cada Estado respeitar os direitos fundamentais e humanos, como fruto de construção secular historicamente desencadeada por revoluções em todo o mundo.

Em terceiro plano, temos que diferenciar o interesse público primário do secundário como já visto e entender, definitivamente, que interesse público não é mero somatório de interesses individuais, mas sim a consideração do que seja melhor para a maioria ou unanimidade da sociedade.

Por derradeiro, há que sopesar o fato de que nem sempre o Estado atua em posição de desigualdade com o particular. Em determinados casos, o Estado, ao procurar atuar em contratos privatísticos, não faz uso de sua supremacia, mas se iguala ao contratante. É o caso, por exemplo, quando se firma contrato de locação. Nestes exemplos, não haveria uma relação jurídica de subordinação, mas de coordenação, justamente porque não se está em voga, neste caso, qualquer interesse público primário, mas meramente secundário.

Neste aspecto, não há desaparecimento do princípio da supremacia do interesse público, mas apenas não aplicação em determinadas situações em que o próprio Estado já delimitou não se justificar. E, mesmo assim, a relação não fere o princípio da isonomia.

Nem sempre um interesse público será supremo, destacadamente, se for de natureza secundária. Porém, para atingir as necessidades vitais no seio social, o Estado deve estar munido de parâmetros. O princípio da supremacia do interesse público é este parâmetro e “divisor de águas”. E se o Estado e o Direito Administrativo estão em crise, não será com a abolição dos seus pilares que o problema será solucionado.

Na verdade, deve ser considerada a ideia de que o interesse público, seja primário ou secundário, deve ser visto num prisma transnacional pela complexidade das atuais relações. E com esta ideia, cada Estado deve identificar sua necessidade básica e acrescentar no plano comunitário para a elucidação das questões.

Ao mesmo tempo, deve-se ponderar sempre no âmbito administrativo, falando-se não somente em cega aplicação de que basta ser interesse público para se sobrepor a qualquer reivindicação individual, sem nenhuma análise criteriosa.

Tem-se, de forma definitiva, que se encontrar no interesse público a solução da hermenêutica e da fragilidade do próprio sistema. Deve-se propagar o princípio da supremacia dos interesses primários e fundamentais do cidadão, pois é a serviço deste que o Estado existe e não ao contrário, senão teríamos o malogro do princípio democrático.

A forma de mecanismo para manter em voga o princípio democrático para fins de garantir o princípio da supremacia do interesse público, nos moldes delineados, é obedecer à vontade popular, devidamente cristalizada em normas que garantam a fidelidade política que legitime a atuação do Estado. A legitimação do Estado e de suas escolhas justificam a manutenção do princípio da supremacia, conforme visto, nas condições apresentadas.

A crise dos institutos de Direito Administrativo, seja em nível territorial ou da União Europeia, deve ser encarada como forma de ajustamento ao sistema que se impõe e não crítica a ser recebida e fazer sucumbir todo o ramo jurídico, pois seria um retrocesso social no ordenamento.

Ao mesmo tempo, é mister que tenhamos uma espécie de constitucionalização do conceito de interesse público. Qualquer juízo de prevalência deve ser reconduzido ao sistema constitucional. A Constituição passa a ser um núcleo concreto e real da atividade administrativa14.

Ao pensar desta forma, estamos a proteger o Direito Administrativo, mantendo-o atualizado e revestido de proteção para garantir a existência do Estado e o respeito aos direitos dos administrados, pois são pontos indissolúveis desta nova realidade jurídica e social.

CONCLUSÃO

Interesse público está atrelado à ideia de bem comum, da coletividade, como sendo aqueles interesses e direitos acima dos interesses individualmente considerados para a consecução de um objetivo mais amplo e significativo: propiciar as condições necessárias de satisfação, vivência e convivência do maior número de pessoas numa sociedade, considerando-se os aspectos naquele tempo e espaço.

Na verdade, deve ser considerada a ideia de que o interesse público, seja primário ou secundário, deve ser visto num prisma transnacional pela complexidade das atuais relações. E com esta ideia, cada Estado deve identificar sua necessidade básica e acrescentar no plano comunitário para a elucidação das questões.

Ao mesmo tempo, deve-se ponderar sempre no âmbito administrativo, falando-se não somente em cega aplicação de que basta ser interesse público para se sobrepor a qualquer reivindicação individual, sem nenhuma análise criteriosa.

Tem-se, de forma definitiva, que se encontrar no interesse público a solução da hermenêutica e da fragilidade do próprio sistema. Deve-se propagar o princípio da supremacia dos interesses primários e fundamentais do cidadão, pois é a serviço deste que o Estado existe e não ao contrário, senão teríamos o malogro do princípio democrático.

Entende-se, hodiernamente, que o princípio da supremacia do interesse público em tese cedeu a outro princípio reformulado chamado de supremacia dos princípios fundamentais constitucionais, garantidores dos direitos das pessoas. Nesta ideia, teríamos as seguintes consequências: reconhecimento da supremacia dos direitos fundamentais sobre quaisquer prerrogativas dos entes públicos; reconhecimento dos direitos públicos subjetivos dos administrados; reconhecimento da força vinculante dos pactos de toda ordem, contratuais ou não, celebrados entre o Estado e suas entidades; reconhecimento da necessidade de ponderação dos interesses individuais protegidos pela ordem jurídica sempre que conflitantes com interesses públicos disponíveis (patrimoniais e instrumentais); reconhecimento das garantias processuais administrativas: isso permite o questionamento na seara administrativa do que seja o interesse público e sua extensão; reconhecimento da presunção de boa-fé dos administrados e do seu direito à confiança legítima nas relações com a Administração.

A alteração da visão clássica deste princípio tem como causas primordiais: a projeção transnacional da Administração Pública e de seus princípios; gastos públicos com a perda da autossuficiência do Estado, a privatização formal da Administração, a globalização do Direito e as formas mistas entre direito público e direito privado, formando entidades híbridas, embora ainda se questione se existe um Direito Administrativo global com interesses públicos globais. São as mutações do Direito Administrativo.

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MOREIRA NETO, Curso de Direito Administrativo. Parte introdutória, parte geral e parte especial. 14 a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006

1Neoconstitucionalismo: o Brasil começou tardio com esta novel concepção, em que o princípio da dignidade da pessoa humana e a valorização do indivíduo frente ao Estado se tornou uma marca predominante, com a valorização do poder de uma Constituição em um Estado que se fortalece quando passa a proporcionar a efetivação plena dos direitos e garantias individuais. A matriz da dignidade da pessoa humana passou a ter um viés significativo em todos os ramos jurídicos, existindo, destacadamente, no Brasil, o fenômeno da despatrimonialização do direito privado, com uma concepção mais ligada ao interesse público, sob o nome de “função social” ou “interesse social”. Prioriza-se o indivíduo e a Constituição e, ainda, apregoa que todos os ramos jurídicos devem ser relidos à luz do texto constitucional que, por sua vez, deve estar aberta aos novos princípios e necessidades da sociedade, com o constante uso da interpretação evolutiva. O Direito Administrativo sofreu impacto direto do Neoconstitucionalismo, principalmente, porque se passou a questionar a ideia de interesse público e até que ponto a supremacia do interesse público sobre o privado poderia persistir no Neoconstitucionalismo, haja vista que as ideias sobre esta temática passaram a ser questionadas, aprofundando-se a temática no último capítulo. Há quem afirme, ainda, que o Direito Administrativo é um Direito Constitucional concretizado.

2Nesta ideia, passamos a ter a propagação dos direitos sociais que sofrem evolução até os dias atuais, tendo em vista que sempre exigem atualização e maior extensão, como ocorre, por exemplo, no Brasil, com a tramitação de emenda constitucional para incluir o direito à felicidade no rol dos direitos sociais. Registra-se, ainda, que esta ideia de Estado Social teve e ainda tem notável destaque, além do Direito Administrativo, no âmbito do Direito do Trabalho e da Seguridade Social, em que o Estado procura preencher os “vazios” do Liberalismo, propiciando ou tentando se aproximar de um estado de melhor qualidade de vida aos indivíduos, tendo como valor – motriz o princípio da dignidade da pessoa humana.

3Como já mencionado no início do capítulo, paralelo à influência francesa, tivemos o direito administrativo no sistema anglo-saxônico, vigente nos EUA e na comunidade britânica. A grande diferença é que para os países do common law os princípios norteadores da atividade administrativa seriam os mesmos que regem as atividades dos particulares. Cito, como fonte desta diferença, a obra de Odete Medauar in Direito Administrativo Moderno, constante na bibliografia deste trabalho.

4Noberto Bobbio diz que o ordenamento jurídico é um complexo de normas. Para ele, as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em contexto de normas com relações particulares entre si, no que costuma ser chamado de ordenamento. Os princípios seriam normas também neste sentido. O Direito não seria norma, mas um complexo de normas coordenadas, formando o ordenamento. E, assim, uma norma jurídica não pode ser entendida como algo só, mas ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo. Noberto Bobbio ainda deixou claro que há uma convergência do Estado com o Direito, de modo que cada vez mais, o Direito se tornou estatal e o Estado se tornou jurídico.

5Hely Lopes Meirelles criou a ideia do “bom administrador” no seu manual. Segundo ele, ao legal deve se juntar o justo e o honesto, conveniente ao interesse geral, ao interesse público. Mais uma vez temos a referência ao interesse público, objeto do nosso trabalho. Odete Medauar diz, ainda, em seu manual, fls. 125 que este princípio é de difícil tradução verbal porque é impossível enquadrar em um ou dois vocábulos a ampla gama de condutas e práticas desvirtuadoras das finalidades da Administração.

6Há também a atual classificação de direitos individuais homogêneos que são aqueles também de cunho individual, considerando a pessoa sozinha enquanto fonte de direitos e obrigações, mas que tais direitos se repetem ou se reproduzem, sendo comuns se consideramos determinado grupo, relacionados a uma mesma relação fática, em que se pode optar pela reivindicação deste direito de forma individual ou coletiva. Muito comum nas relações de consumo em que as pessoas podem ajuizar ações próprias e individuais ou se unirem e ajuizarem as ações coletivas, em que são autoras solidariamente.

7Patamar civilizatório mínimo é expressão utilizada costumeiramente nos julgados dos Tribunais Trabalhistas e no Tribunal Superior do Trabalho, advindo do manual doutrinário de um dos Ministros, Maurício Godinho Delgado, que significa o conjunto dos direitos sociais mínimos e necessários para que um indivíduo, no seio de uma sociedade, possa vivenciar uma concreta aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana. Utilizei a expressão porque, a meu ver, é extremamente feliz e comunga com a ideia que estamos tratando de que o Estado deve buscar no interesse público, seja na criação ou na seleção deste, tudo aquilo que seja imprescindível para se atingir o bem comum, fazendo uso dos direitos fundamentais presentes tanto na Constituição brasileira como portuguesa, até porque o núcleo central das duas ordens constitucionais seja a dignidade da pessoa humana.

8A tradução de Andrea Federico foi feita pelo doutrinador Alexandre Santos de Aragão, às fls. 509, do livro que consta na bibliografia ao final deste trabalho.

9Estamos nos referindo às anotações de aulas ministradas pelo Professor Luís Filipe Colaço Antunes na Universidade do Porto na data de 22.07.2013. As ideias expostas pelo Ilustre Professor são as descritas nesta página e na seguinte.

10O utilitarismo é uma teoria política que se iniciou com John Raws, em 1971, em que seria o ato moralmente correto é aquele que produz a melhor e maior felicidade para todos os membros da sociedade. A moralidade seria a maximização da felicidade humana. Para o utilitarismo, as pessoas têm igual importância , os interesses de cada pessoa devem receber igual peso e os atos moralmente corretos é que maximizarão a utilidade.

11Nota-se que no âmbito do direito português, existe a dualidade de jurisdição, com a presença dos Tribunais Administrativos. Isso também revela a influência francesa. Porém, o Brasil, não tem esta dualidade de jurisdição, aproximando-se do sistema inglês, de jurisdição una. Aliás, no Direito Administrativo brasileiro, de forma majoritária, defende-se que sequer existe a coisa julgada administrativa, mas somente aquela conseguida em processo judicial. Existem recursos administrativos brasileiros, como reflexo do poder hierárquico, mas não há praticamente Tribunais Administrativos, podendo o administrado ajuizar ações diretamente junto ao Poder Judiciário. Aliás, destaque-se que na União Europeia, a dualidade de jurisdição é a regra.

12A partir deste capítulo, teremos a utilização de expressões extraídas do livro do Ilustre Professor da disciplina, referente à Parte I intitulada Metamorfoses do Direito Administrativo, referente à obra: A Ciência Jurídica Administrativa, da editora Almedina, ano 2012, Luís Filipe Colaço Antunes. Para diferenciar as expressões do Professor com as desta obra, todas estão em itálico e sublinhadas – referentes às passagens do livro mencionado referente às páginas 25 a 197.

13No Brasil, em 2013, observou-se movimentos populares questionando a destinação das verbas públicas e o cumprimento administrativo e constitucional dos interesses públicos primários. Houve questionamento das verbas orçamentárias destinadas à realização do evento da Copa do Mundo 2014, enquanto milhões de pessoas ainda estavam sem o mínimo existencial, sem o gozo do patamar civilizatório mínimo. Tanto os setores de saúde e educação no Brasil são em nível atrasado, sem a devida prestação suficiente, ensejando a situação de penúria e sofrimento constante nos hospitais públicos, principalmente nas cidades mais afastadas dos grandes centros urbanos. A educação também está em nível desejável, ainda com grande contingente de analfabetos. Tais discussões recaem justamente nos interesses escolhidos pelo Estado e na destinação dos recursos advindos, primordialmente, das tributações. O STF analisou a questão também no ano de 2013, manifestando-se pela constitucionalidade do direito à reunião e à reivindicação popular pelas manifestações, principalmente, quando a insatisfação com o Estado é generalizada.

14Estas ideias foram compiladas da obra de Gustavo Binenbojm, constante nas referências bibliográficas, do qual seguimos a orientação, no sentido também defendido por Celso Antonio Bandeira de Mello e Marçal Justen Filho, sob a ótica de que deve persistir ainda o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, desde que pelo prisma da constitucionalização. Até porque defendemos a ideia de que o Estado Democrático de Direito é um Estado de Ponderação como medida otimizadora dos princípios, bens e interesses considerados no prisma de uma Constituição. Isso também vale para União Europeia, pois os Estados-membros persistem com suas ordens constitucionais internas, tal como Portugal que ainda está em vigor a Constituição da República de 1976. Em entendimento oposto, temos Humbero Bergmann Ávila que defende o fim do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, com o argumento, exposto na sua obra “Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado” afirmando que os dois interesses – público e privado – estão instituídos e protegidos da mesma forma na Constituição brasileira de 1988 e não podem ser separados na análise da atividade estatal e de seus fins, sendo que os elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado.

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Sobre o autor
Maria Rafaela de Castro

Juíza do Trabalho da 7a Região. Trabalhou como Juíza no TRT da 14a Região e como promotora de Justiça no Ministério Público do Estado de Rondônia. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Porto, em Portugal. Professora de Cursos Preparatórios.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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