4. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL
O trancamento do inquérito constitui forma de extinção anômala do procedimento policial, sempre que a abertura ou a continuidade das investigações for ilegal. Tem por característica fundamental a nota da excepcionalidade (STJ, RHC 36364/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Rogério Cruz, DJe 06/06/2014).
Trata-se de ato que depende de decisão judicial e poderá ser determinado ex officio pelo juiz ou requerido pela defesa ou pelo Ministério Público.
Essa forma de extinção do inquérito policial não foi disciplinada expressamente pelo Código de Processo Penal, tendo sua sistematização ficado a cargo da doutrina e da jurisprudência.
O STF já decidiu que o trancamento do inquérito policial é excepcional e somente pode ocorrer nas hipóteses de atipicidade da conduta, ausência de justa causa e presença de causa de extinção da punibilidade:
“PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CRIMES DE ESTELIONATO, CONSTRANGIMENTO ILEGAL, FALSIDADE IDEOLÓGICA E FRAUDE PROCESSUAL. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. INVIABILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal firmou entendimento no sentido de que a extinção da ação penal em curso (bem como do antecedente inquérito policial) de forma prematura, pela via do habeas corpus , só é possível em situações excepcionais, nas quais seja patente (a) a atipicidade da conduta; (b) a ausência de indícios mínimos de autoria; e (c) a presença de causa extintiva da punibilidade, o que não se verifica no caso dos autos. Precedentes” (STF, HC 132170 AgR/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 02/03/2016).
Com base na doutrina e na jurisprudência, é possível identificar as seguintes causas de trancamento do inquérito policial:
(a) a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas (STF, HC 119172/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 01/04/2014);
(a) atipicidade manifesta da conduta (STF, HC 119172/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 01/04/2014);
(c) a presença manifesta de causa extintiva da punibilidade (STF, HC 119172/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 01/04/2014);
(d) quando emergir dos autos, de forma inequívoca, a inocência do investigado (STJ, RHC 38471/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 16/ 05/ 2014
(e) instauração de inquérito policial com base exclusivamente em “denúncia anônima” (rectius: delação apócrifa), salvo se existentes averiguações preliminares[17] ou se o escrito anônimo tiver sido subscrito pelo próprio acusado ou constituir o corpo de delito.
(f) duplicidade de procedimentos investigativos para apuração do mesmo fato (inadmissibilidade de bis in idem);
(g) ausência de representação da vítima nos crimes de ação penal pública condicionada à representação do ofendido (CPP, art. 5º, §4º);
(h) ausência requisição do Ministro da Justiça em caso de ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça;
(i) ausência requerimento da vítima nos crimes de ação penal privada (CPP, art. 5º, §5º);
(f) ausência de constituição definitiva do crédito tributário, nos crimes materiais contra a ordem tributária (art. 1º, I a IV, da Lei n.º 8.137/90), apropriação indébita previdenciária (CP, art. 168-A) e sonegação de contribuição previdenciária (CP, art. 337-A). Nesses crimes, o STF, excepcionalmente, tem dispensado a exigência de lançamento definitivo quando houver necessidade para a viabilização das investigações[18] e na hipótese de empresas de fachada[19]. O Supremo entende ser desnecessária a constituição definitiva do crédito tributário para a abertura das investigações quanto ao crime de descaminho, por se tratar de delito formal[20];
(g) ausência manifesta de condição objetiva de punibilidade;
(i) presença manifesta de escusa absolutória;
O inquérito policial pode ser trancado via HC ou mandado de segurança, a depender da espécie de sanção penal cominada abstratamente ao delito[21]. O que não é possível no pleito de trancamento, é o aprofundado exame de fatos e provas, sendo que nessa fase vigora o princípio in dubio pro societate.
Ademais, conforme se viu, a impossibilidade de arquivamento de ofício do inquérito não impede a concessão de HC ex officio pela autoridade judicial para fins de trancamento da investigação criminal nos casos de ilegalidade ou abuso de poder, conforme entendeu o STF (HC 106124/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 11.09.2013).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O inquérito policial é um procedimento temporário, sendo inconcebível a existência de uma investigação ad æternum. Sendo o inquérito policial um procedimento temporário, o seu desenvolvimento procedimental caminha para a extinção. É preciso extremar as três causas de extinção do inquérito policial (conclusão das investigações, arquivamento e trancamento) e todas as suas nuances.
O Código de Processo penal disciplinou apenas duas das causas de extinção do inquérito policial – a conclusão das investigações, embora sucintamente – e o arquivamento, tendo sido omisso quanto à disciplina jurídica do trancamento do procedimento policial. Contudo, doutrina e jurisprudência e a doutrina têm contribuído para a sistematização da matéria.
Em razão da relevância do trancamento do inquérito policial, como importante causa de extinção do procedimento policial, entendemos que o legislador deveria discipliná-lo de forma específica e sistemática no próprio CPP.
Notas
[1] Por Paulo Henrique da Silva Aguiar. Promotor de Justiça do Estado de Alagoas (2º colocado no concurso). Ex-Defensor Público do Estado de Alagoas (1º colocado no concurso). Foi aprovado também nos concursos de Delegado de Polícia do Estado do Rio Grande do Norte e Analista Judiciário – Área Judiciária do TRT da 19ª Região. Ex-estagiário da Justiça Federal e do Ministério Público Federal em Alagoas.
[2]O art. 21, XV, c, do RISTF contém previsão que, caso interpretada literalmente, poderia implicar a possibilidade de arquivamento de inquérito ex officio pelo ministro relator (“Art. 21. São atribuições do relator: ... XV – determinar a instauração de inquérito a pedido do Procurador-Geral da República, da autoridade policial ou do ofendido, bem como o seu arquivamento, quando o requerer o Procurador-Geral da República, ou quando verificar: ... c) que o fato narrado evidentemente não constitui crime”). Contudo, O STF entendeu pela impossibilidade de arquivamento ex officio do inquérito policial, por ser incompatível com o princípio acusatório, visto que a promoção de arquivamento depende da provocação do titular da futura ação penal (STF, Inq 2913 AgR/MT, Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 21.06.2012, Informativo n.º 656, março de 2012).
[3] “Inviável, em nosso sistema normativo, o arquivamento ‘ex officio’, por iniciativa do Poder Judiciário, de peças informativas e/ou de inquéritos policiais, pois, tratando-se de delitos perseguíveis mediante ação penal pública, a proposta de arquivamento só pode emanar, legítima e exclusivamente, do próprio Ministério Público. Precedentes. - Essa prerrogativa do ‘Parquet’, contudo, não impede que o magistrado, se eventualmente vislumbrar ausente a tipicidade penal dos fatos investigados, reconheça caracterizada situação de injusto constrangimento, tornando-se conseqüentemente lícita a concessão ‘ex officio’ de ordem de “habeas corpus” em favor daquele submetido a ilegal coação por parte do Estado (CPP, art. 654, § 2º)” (grifos nossos) (STF, HC 106124/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 11.09.2013).
[4] CPP – “Art. 28 Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.
[5] Conforme veremos no capítulo sobre recursos, o reexame necessário não possui natureza jurídica de recurso, mas sim de condição de eficácia da sentença.
[6] RHC 95141, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 23.10.2009.
[7] REsp 1305897/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 18/09/2012
[8] HC 40332/CE, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 20/03/2006.
[9] “À luz de copiosa jurisprudência do STF, no caso de inquérito para apuração de conduta típica em que a competência originária seja da Corte, o pedido de arquivamento pelo procurador-geral da República não pode ser recusado” (STF, Inq 2028/BA, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 28/04/2004).
[10] RHC 95141, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 23.10.2009.
[11] REsp 1305897/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 18/09/2012.
[12] “DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ARQUIVAMENTO DO FEITO. RECONHECIMENTO DE ATIPICIDADE DO FATO. DECISÃO PROFERIDA POR JUÍZO ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR POR FATO ANALISADO NA JUSTIÇA COMUM. IMPOSSIBILIDADE: CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL PERANTE O JUÍZO COMPETENTE. IMPOSSIBILIDADE. COISA JULGADA. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. [...] 2. A decisão de arquivamento do inquérito policial no âmbito da Justiça Comum, em virtude de promoção ministerial no sentido da atipicidade do fato e da incidência de causa excludente de ilicitude, impossibilita a instauração de ação penal perante a Justiça Especializada, uma vez que o Estado-Juiz já se manifestou sobre o fato, dando-o por atípico (precedentes). Ainda que se trate de decisão proferida por juízo absolutamente incompetente, deve-se reconhecer a prevalência dos princípios do favor rei, favor libertatis e ne bis in idem, de modo a preservar a segurança jurídica que o ordenamento jurídico demanda. Precedentes” (HC 173397/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 11/04/2011)
[13] Nesse sentido: LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niteroi: Impetus, 2013.
[14] Coisa julgada secundum eventum litis é aquela que somente se produz com relação a um dos possíveis resultados da demanda, procedente ou improcedente. A propósito, cf. DIDIER, Fredie Ett Ali, vol. 2, p. 422.
[15] Coisa julgada pro et contra é aquela que se forma independentemente do resultado do processo, pouco importando se de procedência ou improcedência. cf. DIDIER, Fredie Ett Ali, vol. 2, p. 422.
[16] STF, Súmula 693: “Não cabe habeas corpus contra decisão condenatória à pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada”.
[17] O STF, com fundamentação na vedação ao anonimato (CF, art. 5º, IV) entendeu não ser possível a instauração de inquérito policial com base unicamente em “denúncia anônima” (rectius: delação apócrifa), salvo o documento tiver sido produzido pelo próprio investigado ou constituir o corpo de delito (HC 106664 MC/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23.05.2011, Informativo n.º 629).
[18] STF, HC 95.443, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJE de 19-2-2010.
[19] STF, HC 95.086, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE de 28-8-2009.
[20] STF, referência
[21] STF, Súmula 693: “Não cabe habeas corpus contra decisão condenatória à pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada”.