Controvérsias do pedido de impeachment

30/05/2016 às 13:09
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Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o processo de Impeachment é instaurado com fundamento em denúncia de crime de responsabilidade contra o chefe do Poder Executivo. Vejamos, a seguir, as características desse instituto e o quais as polêmicas que circulam em torno desse procedimento.

Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o processo de Impeachment é instaurado com fundamento em denúncia de crime de responsabilidade contra o chefe do Poder Executivo. Em linhas gerais, o impeachment ou impedimento é aplicado para afastar o chefe de Estado do seu cargo. Os crimes de responsabilidade encontram respaldo constitucional nos artigos 85 e 86 da Lei Maior e também na Lei 1079/1950.

O art. 86 da Constituição dispõe a respeito do processamento para apuração dos crimes de responsabilidade. Expressamente o texto constitucional determina que, após “admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados será ele submetido a julgamento”. Dessa forma, entende-se que a função da Câmara dos Deputados é realizar juízo de admissibilidade quanto à denúncia. O mesmo artigo prossegue e, já em seu final, preceitua que o Senado Federal será responsável pelo julgamento dos crimes supramencionados.

Nota-se a partir do texto constitucional que estamos diante de um processo político de fatos jurídicos. Contudo, esse processo não pode ser transformado em um procedimento de exceção e contrariar os princípios constitucionais do devido processo legal. Nesse sentido leciona o Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Paulo Brossard que “o fato de ser o impeachment processo político não significa que ele deva ou possa marchar à margem da lei”.

Para o surgimento desse processo político se faz necessária a denúncia por crime de responsabilidade. Estabelece a Carta Magna, em seu art. 85, como crimes de responsabilidade as condutas que atentam contra a Constituição Federal, contra a existência da União, o livre exercício dos poderes do Estado, o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, a segurança interna do país, a probidade na administração, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Tal dispositivo constitucional, porém, não esgota as condutas que podem ser enquadras dentro dessa infração; outras atitudes podem ser definidas como crime de responsabilidade, desde que haja previsão na Lei 1079/1950.

A natureza jurídica desse “crime”, doutrinariamente, é controversa, em virtude da sua denominação. Algumas correntes defendem que essa espécie infracional diz respeito a crimes funcionais. Outros defendem que os crimes de responsabilidade são infrações político-administrativas regidas pelo Direito Administrativo Sancionador.

Majoritariamente, a doutrina compreende o crime de responsabilidade como uma infração administrativa, visto que, claramente, o art. 86 da Constituição diferencia o julgamento nos crimes comuns do julgamento nos crimes de responsabilidade. Ademais, mesmo o Chefe do Executivo sendo condenado pela infração administrativa, pode ele ser absolvido por eventual crime funcional, assim não restando dúvidas quanto à natureza jurídica de ambas às infrações.

Juarez Tavares e Geraldo Prado consideram que a “ruptura do quadro gerado pela vontade popular, deva também observar rigorosas limitações”. Assim, o crime de responsabilidade possui natureza de infração à ordem pública. O entendimento desses renomados juristas admite a autonomia do Direito Administrativo através do Poder Sancionador, que confere eficácia às normas administrativas. No entanto, o exercício desse poder encontra certas limitações nas garantias individuais de cada cidadão, devendo aplicar-se os mesmos critérios e princípios do Direito Penal, como: lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos; submissão ao princípio da legalidade; exigência dos requisitos de imputação objetiva e subjetiva.

Nas palavras de Rafael Munhoz de Mello, tais princípios não se tratam “de princípios de direito penal, mas sim de princípios que regem toda manifestação do poder punitivo estatal, seja administrativa ou penal”, isto é, tanto o Direito Administrativo quanto o Direito Penal, por seu caráter punitivo, devem se submeter ao devido processo legal e assegurar as garantias básicas ao acusado/denunciado.

Em decorrência do princípio da legalidade, não se admite que o crime de responsabilidade seja interpretado de forma analógica pelo agente sancionador. É necessário que a norma incriminadora, em virtude do seu caráter taxativo, seja clara e bem definida, tornando-a inconfundível com outra. Assim, embora o art. 85 da Constituição seja apenas exemplificativo, a Lei 1079/1950 individualizou todas as condutas descritas que podem ser imputadas como crimes de responsabilidade. Desse modo, se a conduta praticada não estiver no rol da Lei, não podemos falar que houve infração, pois, agindo assim, estaríamos contrariando o princípio da legalidade.

A denúncia por crime de responsabilidade, ora em questão, apresentada pelos respeitados e admirados juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaina Paschoal, possui como base o pedido para imputação de crime de responsabilidade contra a Presidente da República pelas chamadas “pedaladas fiscais”. A peça acusatória fundamenta-se no Art. 39 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que expressamente dispõe: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”, apontando, também, o Art. 10 da Lei 1079/1950, em seu incisos 6, 7, 8 e 9, que tratam sobre as operações de crédito.

Pela leitura do pedido de impeachment, os autores consideram as pedaladas fiscais como operações de crédito. A controvérsia, nesse ponto, perfaz-se em questões hermenêuticas, pois as operações de crédito possuem regulamento próprio que descreve as suas formas individualizadas. Mas, quanto ao pedido de impedimento atual, estamos diante de uma operação de crédito ou de um mero inadimplemento contratual?

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Analisando a semântica das operações de crédito, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu art. 29, III, combinado com o § 1º desse mesmo artigo, define a operação de crédito como “todo compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros, bem como a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas pelo ente da Federação”. No mesmo sentido, o inadimplemento contratual, em linhas gerais, é definido pela doutrina brasileira como ação ou feito de inadimplir, isto é, descumprir uma obrigação/contrato ou qualquer uma de suas condições.

Por óbvio, parece lógico que, diante das chamadas pedaladas fiscais, estamos perante um inadimplemento contratual, identificado no atraso dos repasses a bancos públicos responsáveis pelo sistema de distribuição dos benefícios sociais do governo.

Ademais, conforme o texto constitucional, o objeto que enseja o crime de responsabilidade é a Lei Orçamentária e não a Lei de Responsabilidade Fiscal. Realizar operações de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle constitui descumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como já mencionado, pela natureza jurídica do crime de responsabilidade e pelos princípios constitucionais penais que a infração traz consigo, não há como se estender a aplicação taxativa pelo descumprimento da Lei Orçamentária para o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Inegavelmente, controvérsias existem em relação ao pedido atual de impeachment, não há unanimidade a favor nem contra o impedimento. Defender a legalidade não significa tomar posições partidárias, estamos, sim, perante um processo político, mas com o objeto jurídico. Por consequência a legalidade material e processual deve ser observada, pois a impopularidade de um governo não deve se sobrepor aos aspectos legais, dado que encontramo-nos diante de um Estado de Direito e não de um Estado ilimitado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em abril de 2016.

BRASIL. Lei 1.079 de 10 de abril de 1950. Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L1079.htm>. Acesso em abril de 2016.

BRASIL. Lei complementar n º 101 de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm>. Acesso em abril de 2016.

BRASIL. O que é Lei Orçamentária anual (LOA). Disponível: <http://www.orcamentofederal.gov.br/perguntasfrequentes/o-que-e-lei-orcamentaria-anual-loa>. Acesso em abril de 2016.

BROSSARD, Paulo. O Impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 146.

CONJUR. Pedaladas hermenêuticas no pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/ricardo-lodi-pedaladas-hermeneuticas-pedido-impeachment>. Acesso em abril de 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O princípio da legalidade e algumas de suas consequências para o direito administrativo sancionador. In Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Nº 1 – jan/jun. 2003.

MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p.115-116.

MERCADO POPULAR. O que é pedalada fiscal. Um manual para não economistas. Disponível: <http://mercadopopular.org/2015/10/o-que-e-pedalada-fiscal-um-manual-para-nao-economistas/>. Acesso em abril de 2016.

TAVARES, Juarez; PRADO, Geraldo. O Processo de Impeachment no Direito Brasileiro. In. O Direito Penal e o Processo Penal no Estado de Direito: análise de casos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, pp. 40 e ss.

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Sobre o autor
Leonardo Martins Felix

Advogado, Sócio-Fundador do Almeida, Barbosa & Felix Advocacia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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