“Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
(...)
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
(...)
Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo.”[1]
Quarta-feira, 8 de junho de 2016. Noticia-se a prisão do senhor Newton Ishii, conhecido midiaticamente como o “Japonês da Federal”, (diga-se de passagem, todo e qualquer réu/investigado há de ser tratado com respeito). Ganhou notoriedade, virou máscara de carnaval... O agente policial teria sido preso por conta de suposta e ainda averiguável conduta típica de facilitação ao contrabando. Não se tratará do processo movido contra o Policial Federal. Não se acusará ou defenderá o agente, muito embora se presuma a inocência de todo aquele que é investigado, presunção que se mantém mesmo depois do fatídico HC126.292. O objetivo deste ensaio é tão somente alertar para as incongruências, para os níveis de tratamento diferenciados, a demonstrar que a dignidade de uns é mais respeitada que a de tantos outros.
Abre-se a homepage da Folha de S.Paulo: sob o título “’Japonês da Federal’ é preso pela PF por facilitar contrabando”, surge a imagem da condução do senhor José Dirceu à sede da Polícia Federal em Curitiba. Em outra foto, a imagem da prisão do senhor Marcelo Odebrecht. Em outra fotografia, a condução do senhor José Carlos Bumlai. Enfim, uma série de investigados na denominada operação “lava jato”. Contudo, nenhum sinal, nenhum registro da prisão que ocorreu essa manhã, tendo como investigado o outrora condutor dos acusados. Este breve ensaio, por coerência, não se arvora a cobrar sensacionalismo contra o hoje preso por suposto contrabando. Contudo, inexiste razão para um tratamento tão dispare: de um lado a publicidade opressiva nas operações e conduções. Noutro giro, o silêncio eloqüente e permissivo dos outrora algozes.
Aliás, qualquer operador de busca na rede mundial de computadores não aponta qualquer imagem da prisão deste investigado. Assim deveria ser com todos. Digna de nota foi a atuação da polícia suíça, que, para proteger a identidade dos investigados, pôs um lençol para não permitir que a imagem dos investigados — presumidamente inocentes — fosse exposta. [2]
Por que promover verdadeira devassa contra uns, exibindo-os como se troféus fossem, e, paradoxalmente, silenciar (na verdade cumprir a lei, a Constituição) em relação aos mais íntimos, próximos? A Lei de Execução Penal[3] é cristalina ao dispor em seu artigo 41, como direito do preso:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:(...)VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
Demonstra-se, a clara luzes, a escolha definitivamente por um direito penal e, sobretudo, processo penal do inimigo. Assim, com esse novel e inconstitucional tipo de processo, permite-se ao Estado dois caminhos, dois tipos de tratamento do “delinquente”. A marca indelével do proceder contra o inimigo é, na lição de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini:
“O tratamento diferenciado, antigarantista, discriminador e injustificado de determinados autores de crimes, pois, segundo nossa perspectiva, é a característica mais marcante do Direito Penal do Inimigo”.[4]
Trata-se de demonstração cabal das arbitrariedades e inconsistências que marcam os recentes rumos do processo penal brasileiro. Como se o Direito Penal (todos os ritos, todos os movimentos) precisasse do acompanhamento sensacionalista dos holofotes midiáticos. Como se a presunção de inocência o direito à honra e a imagem fossem quimeras do sonhador constituinte. Não o são. Segundo Sergio Cademartori:
“Esses direitos naturais positivados, ora em diante denominados ‘direitos fundamentais’, passam a ser então o alicerce das democracias modernas, já que sem o seu reconhecimento e proteção, aquela se inviabiliza. A legitimidade democrática dos governos contemporâneos passa assim a ser medida pelo respeito e pela implementação desses direitos por meio de mecanismos de legalidade, erigida esta em instrumento privilegiado de concretização dos valores fundamentais que são plasmados por meio daqueles.(...)A emergência e hegemonia dos direitos fundamentais na estrutura político-jurídica dos Estados contemporâneos vêm a estruturar um novo modelo teórico e normativo que se convencionou denominar ‘modelo pós-positivista’ ou ‘neoconstitucionalismo’” [5]
Inconteste o direito fundamental à liberdade de expressão e informação, ambos consagrados na Lei Maior de 1988, que no entanto, não se cuida de direito absoluto. Dessarte, essencial que o processo criminal se caracterize como justo, é dizer, imperioso que o julgamento criminal se concretize com justiça.
Ocorre que, o populismo midiático, expressão cunhada por Luiz Flávio Gomes, impede que se efetive a proposta Constitucional de 1988, consoante adverte:
“O populismo penal (popular, legislativo ou midiático) não escuta a ciência (os cientistas). Não apresentam estatísticas (positivas) da eficácia da lei penal. Age sob a égide obscurantista da fé (não da ciência), ou seja, da crença (enganosa) de que o seu remédio (mais leis) funciona. Explora a (primitiva e atávica) reação emotiva da população frente ao crime e confere às suas leis a finalidade de coesão da sociedade (Durkheim).”[6]
Urge enxergar a justiça, não somente como um ideário jusnaturalista, ou seja, como produto do processo. Evidentemente, percebe-se patente o conflito entre a liberdade de expressão e informação e o direito ao julgamento criminal justo. Nesse sentido, adverte Simone Schreiber:
“A distinção entre a verdade midiática e a verdade processual é de fundamental importância para se compreender a nocividade de determinadas manifestações jornalísticas que se arvoram em desvendar fatos criminosos e pautar a atuação da justiça a partir de sua atuação. A verdade produzida pela imprensa não é mediada pelas garantias do processo, portanto, não pode ser levada em conta pelo juiz quando dita a sentença. A verdade judiciária é construída com distanciamento e através de um processo dialético de contraposição de versões do fato e debate. Esse amadurecimento é essencial ao ato de julgar, contudo, no discurso da imprensa, essa verdade mediada é percebida como resultado do mau funcionamento das instituições, resultado das artimanhas das partes, falhas do sistema e da excessiva permissividade de alguns juízes. O Supremo Tribunal Federal tem se mostrado intransigente com a admissão de provas ilícitas no processo criminal. Do mesmo modo, é preciso impedir que as provas produzidas pela mídia influenciem a convicção dos juízes, e mesmo que sejam indevidamente introduzidas no processo, especialmente nos procedimentos de júri.”[7]
A publicidade serve, primordialmente, como garantia do cidadão acusado. Trata-se de possibilitar a qualquer investigado conhecer a imputação que sobre si recai, afastando possíveis arbitrariedades e ilegítimas discricionariedades do Poder Estatal. Historicamente, a publicidade é desdobramento do sistema acusatório.Assim:
O processo penal moderno, cunhado sob o pensamento político liberal, consagrou a publicidade como garantia do acusado, contrapondo-se ao modelo inquisitorial, em que o segredo na condução do processo viabilizava o cometimento de toda sorte de atrocidades contra aqueles que caíam nas malhas dos tribunais de inquisição.[8]
Neste passo, convém esclarecer que o PLS 236/2012, o projeto de reforma do Código Penal (muito criticado por muitas pessoas, algumas que sequer o leram) prevê uma atenuante para a exposição do réu à publicidade opressiva. Veja o quanto disposto no artigo 81-f, a respeito das atenuantes: “II – ter o agente: f) sofrido violação dos direitos do nome e da imagem pela degradação abusiva dos meios de comunicação social.
Caminha-se, perigosamente, para o abismo do “utilitarismo penal”. A sociedade precisa entender que o Processo Penal não necessita de heróis. Precisa-se de bons juízes, não de juízes bons. Verdadeiramente, se espera um Ministério Público ativo, não ativista. E os direitos fundamentais são dos cidadãos. Não dos cidadãos policiais. Não dos cidadãos compadres. Urge aplicar a Constituição a todos, orientais ou não, aos idólatras, infiéis ou pagãos...
Notas
1 O Alienista. Machado de Assis. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000012.pdf
2http://www.bing.com/images/search?q=policia+suica+lencol&view=detailv2&&id=4F1FB0371D66D00F454F7697C0D38D7189DA4814&selectedIndex=1&ccid=id0v1Xul&simid=608022728526988484&thid=OIP.M89dd2fd57ba579a0eb49c7939242e3edo0&ajaxhist=0.
3 O projeto de Lei do Senado n° 513/2013, que altera a LEP também inibe qualquer forma de sensacionalismo. Pesa dizer que não se tenha qualquer tipo de notícia a respeito de investigações para inibir este tipo de violação, tão comum em programas televisivos....
4 GOMES, Luiz Flávio. Direito penal do inimigo e os inimigos do direito penal. In: EL HIRECHE, Gamil Föppel. Novos desafios do terceiro milênio: estudos em homenagem ao Prof. Fernando Santana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p, p.654.
5 CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e Legitimidade. Uma abordagem garantista. Editora Millennium. P. 25
6 GOMES, Luiz Flávio. A mídia acredita no populismo penal. Disponível em http://www.lfg.com.br - 18 de outubro de 2010.
7 SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais – Uma investigação sobre as consequências e formas de superação da colisão entre a liberdade de expressão e informação e o direito ao julgamento criminal justo, sob a perspectiva da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 410 e 411.
8 SCHREIBER, Simone. Disponível em:http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/381/339Acesso em 08 de junho de 2016.