PRINCÍPIO DA DEFINITIVIDADE
Em que pese estar a definitividade citada como princípio, boa parte dos doutrinadores a considera como uma característica dos atos jurisdicionais, [38] que se revestem da possibilidade de a sentença judicial tornar-se imutável a partir da ocorrência do fenômeno da coisa julgada.
Entenda-se coisa julgada, nas palavras de Cintra, Grinover e Dinamarco, como sendo a "imutabilidade dos efeitos de uma sentença, em virtude da qual nem as partes podem repropor a mesma demanda em juízo ou comporta-se de modo diferente daquele preceituado, nem os juízes podem voltar a decidir a respeito, nem o próprio legislador pode emitir preceitos que contrariem, para as partes, o que já ficou definitivamente julgado". [39]
De fato, encerrado o desenvolvimento legal de um processo, a manifestação judicial consubstanciada na sentença adquire um caráter de imutabilidade, não cabendo revisão por qualquer outro poder, ao contrário, por exemplo, das decisões administrativas que, quanto à sua legalidade, são sempre passíveis de revisão pelo Poder Judiciário. [40]
Cintra, Grinover e Dinamarco lecionam, com bastante clareza, que, "no Estado de Direito só os atos jurisdicionais podem chegar a esse ponto de imutabilidade, não sucedendo o mesmo com os administrativos ou legislativos. Em outras palavras, um conflito interindividual só se considera solucionado para sempre, sem que se possa volta a discuti-lo, depois que tiver sido apreciado e julgado pelos órgãos jurisdicionais: a última palavra cabe ao Poder Judiciário". [41]
Por assim ser, Tourinho Filho alerta que há entendimento no sentido de que o Senado Federal, mesmo face à competência que lhe foi atribuída pelo artigo 52, incisos I e II, da Constituição Federal de 1988, não exerce função jurisdicional, posto que suas decisões não têm o caráter da definitividade. [42]
PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
O princípio do juiz natural ou juiz constitucional, também chamado de princípio do juiz competente, no direito espanhol, e princípio do juiz legal, no direito alemão, originou-se, historicamente, no ordenamento anglo-saxão, desdobrando-se, a posteriori, nos constitucionalismos norte-americano e francês. Entre nós, o referido princípio inseriu-se deste o início das Constituições.
Trata-se de princípio que garante ao cidadão o direito de não ser subtraído de seu Juiz Constitucional ou Natural, aquele pré-constituído por lei para exercer validamente a função jurisdicional.
Assegura expressamente a Constituição Federal que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (artigo 5°, inciso LIII) e que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" (artigo 5°, inciso XXXVII). Outrossim, determina a Lei Maior que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito" (artigo 5°, XXXV).
Dentro deste contexto, buscam os dispositivos constitucionais impedir que pessoas estranhas ao organismo judiciário exerçam funções que lhe são específicas (salvo, é claro, quando houver autorização da própria Constituição Federal nesse sentido, p.ex., Senado – artigo 52, incisos I e II) e proscrever os tribunais de exceção, aqueles criados post factum. Assim, nenhum órgão, por mais importante que seja, se não tiver o poder de julgar assentado na Constituição Federal não poderá exercer a jurisdição. Tem-se, salienta a doutrina, a mais alta expressão dos princípios fundamentais da administração da justiça.
Fernandes Scarance afirma que a dúplice garantia assegurada pelo cogitado princípio – proibição de tribunais extraordinários e de subtração da causa ao tribunal competente, desdobra-se em três regras de proteção: "a) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal; b) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja". [43]
Acentua Vicente Greco Filho que "não se admite a escolha de magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente; quando ocorre determinado fato, as regras de competência já apontam o juízo adequado, utilizando-se, até, o sistema aleatório de sorteio para que não haja interferência na escolha". [44]
É bem verdade que há casos especialíssimos de deslocação da competência, como no caso previsto no artigo 424 do CPP (desaforamento no procedimento do tribunal do júri), entretanto, entende-se que, por estarem determinados pelo interesse público e da própria justiça, não ferem o princípio do juiz natural, pois o intuito é a busca do julgamento justo.
Grinover, Scarance e Gomes Filho, além de outros doutrinadores, defendem que com a garantia do juiz natural assegura-se a imparcialidade do órgão jurisdicional, não como atributo do juiz, mas como pressuposto de existência da própria atividade jurisdicional. Por isso, afirmam que sem o juiz natural não há jurisdição, pois a relação jurídica não pode nascer. [45]
Os mesmos estudiosos asseveram que além de o julgamento da causa ser de incumbência do juiz natural, é mister que perante este também seja instaurado e desenvolvido o processo, não sendo possível o aproveitamento dos atos instrutórios realizados por juiz constitucionalmente incompetente. [46] Neste diapasão, os artigos 108, §1°, e 567 do CPP devem ser relidos a fim de se adequarem à garantia do juiz natural, restringindo-se sua aplicação apenas aos casos de incompetência infraconstitucional. Em se tratando de juiz constitucionalmente incompetente, não pode haver aproveitamento dos atos, não-decisórios e decisórios, uma vez que o artigo 5°, inciso LIII, da Lei Maior refere-se à garantia de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (grifei).
De igual forma, também carece de releitura o artigo 564, I, do CPP, que dispõe ser caso de nulidade os atos praticados por juiz incompetente. Como já mencionado, a garantia do juiz natural é um pressuposto de existência da atividade jurisdicional. Sob este prisma, os atos praticados por juiz constitucionalmente incompetente são inexistentes e não nulos. Em decorrência disso, o processo e a sentença, eventualmente prolatada, são juridicamente inexistentes.
Questão interessante é saber se o réu, submetido a julgamento por juiz constitucionalmente incompetente, estaria sujeito a nova persecução penal sobre os mesmos fatos, uma vez considerando-se que a sentença prolatada seria inexistente e, como tal, não estaria tecnicamente suscetível à formação da coisa julgada.
Grinover, Scarance e Gomes Filho entendem que "o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis, fazendo prevalecer o dogma do ne bis in idem, impedindo nova persecução penal a respeito do fato em tela". [47] Esclarecem os insignes estudiosos que, não obstante o princípio do ne bis in idem estar tecnicamente ligado ao fenômeno da coisa julgada e que juridicamente inexistente a sentença esta não poderia transitar em julgado, no terreno da persecução penal estão em jogos valores preciosos do indivíduo, como sua vida, sua liberdade, sua dignidade, e que, nesse particular, o ne bis in idem assume dimensão autônoma, impedindo nova persecução penal do réu pelos mesmos fatos já julgados. Observam os autores que a garantia do juiz natural é erigida em favor do réu e não em detrimento aos direitos deste.
Acerca dos chamados tribunais ou juízos de exceção, assim considerados aqueles criados após o fato a ser julgado, a proibição dos mesmos não abrange o impedimento da criação de justiça ou vara especializada, pois, nestes casos, não há criação de órgãos, mas simples atribuição de órgãos já inseridos na estrutura judiciária, fixada na Constituição Federal, para julgamento de matérias específicas, objetivando a melhoria na aplicação da norma substancial.
Cintra, Grinover e Dinamarco salientam a necessidade de se distinguir tribunais de exceção de justiças especiais, como a Militar, a Eleitoral e a Trabalhista, lembrando que estas são instituídas pela Lei Maior, com anterioridade à prática dos fatos a serem por elas apreciados e, portanto, não constituem ofensa ao princípio do juiz natural. [48]
Inclui-se na proibição dos tribunais de exceção os foros privilegiados, criados como favor pessoal, mas exclui-se as hipóteses de competência por prerrogativa de função, onde é levada em conta a função exercida pelo réu e não a sua pessoa, inexistindo, neste caso, favorecimento ou discriminação.
Notas
1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 25ª ed., 2003. p. 47.
2 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 131.
3 Idem. p. 133.
4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol 2. p. 49.
5 Ibidem.
6 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 131.
7 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 3ª ed., 2002. p. 10.
8 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. p. 166.
9 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. pp. 134-5.
10 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 165.
11 Idem. pp. 165-6.
12 Idem. pp. 166-7.
13 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 137.
14 Idem. p. 139.
15 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol 2. p. 59.
16 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
17 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 138.
18 Ibidem.
19 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
20 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v.I, p. 456.
21 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 139.
22 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol 2. p 60.
23 Idem. p. 61.
24 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
25 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 134.
26 Idem. p. 135.
27 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol. 1. p. 48.
28 Idem. Vol 2. p. 59.
29 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
30 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol. 1. p. 50.
31 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
32 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001. p. 222.
33 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol. 1. p. 50.
34 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
35 Idem. p. 452.
36 Ainda nesse sentido: RT 461/306 e 507/525.
37 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. pp. 222-3.
38 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 165; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 136.
39 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 136.
40 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 165.
41 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. 136.
42 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol. 2. p. 51.
43 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit.
44 GRECO FILHO, Vicente. Op. Cit.
45 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001.
46 Idem.
47 Idem.
48 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit.