5 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A prática de eutanásia não encontra expressa criminalização no Brasil. Maria Auxiliadora Minahim (2005) noticia a existência de quatro tentativas de reforma legislativa para tratar do assunto, em 1984, 1994, 1998 e 1999. Contudo, todas elas foram infrutíferas, esbarrando ou na burocracia legislativa, ou na natural dificuldade de enfrentamento do assunto, pela pressão de diversos segmentos sociais e políticos.
Na atual sistemática do CPB, quem mata outrem, ainda que a pedido, comete o crime de homicídio (art. 121), não havendo maiores considerações no que respeita ao consentimento de quem morre. A única hipótese que poderá configurar homicídio privilegiado (art. 121, §1º) é o motivo de relevante valor moral, dentro do qual se pode enquadrar a eutanásia.
Considera-se a piedade ou a compaixão com a situação de sofrimento alheia como motivo de relevante valor moral, que é sempre voltado para as razões de um indivíduo considerado em si. Assim, aquele que mata a outrem atendendo a seu pedido, por piedade ou compaixão diante de sua doença incurável e que lhe proporciona sofrimento insuportável, pratica homicídio privilegiado.
Entretanto, o ajustamento da eutanásia ao homicídio privilegiado não se coaduna com o princípio da taxatividade. É, em verdade, um enquadramento que merece ser revisto, reformulado, como se proporá no último capítulo deste livro.
O Anteprojeto de Código Penal apresentado ao Congresso Nacional em 2012 e assinado por juristas como Gilson Dipp e Luiz Flávio Gomes, apresenta uma proposta de tipificação da eutanásia em seu artigo 122, com a seguinte redação:
Eutanásia
Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:
Pena – prisão, de dois a quatro anos.
§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
Exclusão de ilicitude
§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.[6]
Os elementos que definem a proposta de tipificação da eutanásia não fogem ao que se encontra em legislações estrangeiras. Pune-se a forma direta, presentes a doença grave e o sofrimento insuportável, privilegiando-se o consentimento da vítima ao se requerer a presença do seu pedido. A pena aplicada é consideravelmente menor do que a atual previsão do homicídio privilegiado, cujo mínimo pode chegar a 04 (quatro) anos e o máximo, a 13 (treze) anos e 04 (quatro) meses de prisão.
Quanto ao sujeito ativo do crime, não há previsão de que somente o médico possa praticá-lo. Fala-se em “matar”, sem a especificação de qualidade especial para o agente. Trata-se de crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de quaisquer condições.
Digna de transcrição é a justificativa dos autores do Anteprojeto para os termos da criminalização proposta, retirada da sua Exposição de Motivos:
Não se discrepou, portanto, da solução encontrada na maior parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais: reconhecer que é crime, mas merecedor de sanção distinta e mais branda do que a reservada ao homicídio. Inovação de maior espectro é permitir o perdão judicial, em face do parentesco e dos laços de afeição entre autor e vítima. Saberá a prudência judicial sindicar quando a pena, nestes casos, a exemplo do que pode ocorrer no homicídio culposo, é mesmo necessária.[7]
Assim, optou-se pela criminalização, mas não sem a abertura de uma “janela” para deixar impune o agente: a hipótese de perdão judicial do parágrafo único. Trata-se da possibilidade de deixar de aplicar a pena avaliando-se “as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima”.
A leitura atenta da disposição do parágrafo primeiro revela que não é somente quando presente a relação de parentesco ou a afeição estreita entre vítima e agente que o perdão tem lugar. Abre-se margem ao livre alvedrio do juiz na análise da situação específica e sua conveniência, haja vista que prevê a avaliação das circunstâncias do caso concreto, bem como da afeição e do parentesco.
A expressão “bem como” significa “e também”, “além de”, “da mesma forma que”. Em verdade, a proposta cria duas possibilidades de perdão judicial: a existência de parentesco ou afeto estreito com a vítima e qualquer outra circunstância, cuja relevância será aferida pelo juiz no caso concreto. Ao que parece, este detalhe não foi devidamente observado pelos autores do Anteprojeto, que parecem sugerir haver perdão judicial apenas na primeira situação.
Quanto à exclusão de ilicitude prevista no parágrafo segundo, a Exposição de Motivos apresenta a seguinte justificativa:
Ortotanásia não é eutanásia. Prática médica aceita pelo Conselho Federal de Medicina, a ortotanásia não implica na prática de atos executórios de matar alguém, mas no reconhecimento de que a morte, a velha senhora, já iniciou curso irrevogável. Convém citar a Resolução 1.805/2006, daquele Conselho: “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”. Refrear artificialmente o falecimento, nestes casos, é retirar da pessoa o direito de escolher o local e o modo como pretende se despedir da vida e dos seus. Não há espaço para o Direito Penal, nesta situação. Impede-o a dignidade da pessoa humana, aqui num sentido despido da vulgarização que se dá a este essencial conceito. Morrer dignamente é uma escolha constitucionalmente válida. A proposta da Comissão é torná-la também legalmente válida.[8]
O parágrafo segundo prevê a exclusão de ilicitude nos casos de ortotanásia. Visa àquelas situações em que se reconhece a presença de doença grave e irreversível, cujo tratamento apenas teria o efeito de prolongar a vida do paciente. Constitui a atitude de deixar a morte chegar “no tempo certo”, com a suspensão dos meios artificiais tendentes a promover o seu retardamento.
A excludente somente se aplicaria quando a doença incurável e irreversível fosse assim atestada por dois médicos. A opinião de pelo menos dois garantiria maior segurança em relação ao diagnóstico, o que não afastaria a possibilidade de o paciente requerer outras opiniões.
Além disso, deve estar presente o consentimento do paciente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão. Tal consentimento deverá ser expresso, claro e devidamente consciente, alcançando a plena compreensão das consequências da doença e dos efeitos irremediáveis da suspensão do seu tratamento.
Conforme justificam os autores do Anteprojeto, não haveria, em sua opinião, execução da morte, mas tão somente o reconhecimento de que essa “velha senhora” teria iniciado seu curso irrevogável. Justifica-se, ainda, com base no direito de “morrer dignamente”, constitucionalmente garantido, embora sem um maior detalhamento do que seria dignidade “num sentido despido da vulgarização que se dá a este essencial conceito”.
Tal previsão do Anteprojeto, conquanto se proponha inovadora, se revela polêmica e sem uma fundamentação sólida e inatacável. Primeiramente, por não se ajustar plenamente à cultura social e legal do país. O tema não foi suficientemente discutido nos diversos segmentos sociais, o que contribui para a confusão de conceitos e, consequentemente, para sua rejeição. Ademais, a legitimação da ortotanásia com base na dignidade da pessoa humana foi feita de forma frágil e sofrível na Exposição de Motivos, não oferecendo um adequado lastro dogmático, doutrinário e axiológico.
Outra crítica pode ser lançada em face da justificativa apresentada: o fato de ter se baseado em uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM). Toma-se uma recomendação de classe, um mero ato administrativo, como se tivesse força descriminalizante da prática pelo fato de recomendar aos médicos o respeito à vontade dos pacientes. Ainda que se considere válido o respeito à autonomia individual neste caso, o argumento mais adequado não é o fato de ser recomendado em uma resolução do CFM, cuja força normativa não é a mesma de uma lei, mas sim em atenção à vontade do paciente.
No que tange à resolução nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, seu objetivo é dar um mínimo de suporte jurídico à conduta médica diante da recusa dos pacientes ao tratamento na fase final de enfermidades graves e incuráveis. Em função disso, propôs uma disciplina da ortotanásia. Trata-se de um instrumento normativo de natureza deontológica. O objetivo da Resolução, conforme texto de sua ementa, é garantir que:
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.[9]{C}
Sem fazer qualquer menção à eutanásia, a Resolução, como dito, tratou da limitação de tratamento e dos cuidados paliativos[10] de enfermos terminais, sem dispensar a devida autorização do próprio doente ou, na sua impossibilidade, de quem pudesse decidir por ele.
No entanto, das suas previsões ficam algumas dúvidas, que permanecem insolúveis: que se deve entender por “procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente”? A administração de alimentação e soro devem ser considerados cuidados paliativos ou procedimentos que prolongam a vida? Tais questionamentos vão ao encontro do cuidado que se deve ter com os mais vulneráveis, que tendem a ficar cada vez mais expostos a interpretações que levam em conta fatores econômicos, como escassez de recursos e falta de leitos nas UTI’s.
Ainda no âmbito da deontologia médica, o Conselho Federal de Medicina publicou, em 09 de agosto de 2012, a Resolução nº 1.995, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes[11]. Tais diretivas são definidas como o “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”[12]. Trata-se de garantir que a autonomia de sua vontade seja respeitada, ainda que no momento da tomada de decisão, encontre-se incapacitado de manifestá-la.
Com base em sua normatização, mais uma vez privilegia-se a possibilidade de aceitação da ortotanásia, já justificada pela resolução anterior.