1 INTRODUÇÃO
A prática de eutanásia tem sido alvo de severas discussões no âmbito do Direito Penal. A sua disseminação pelo mundo, sobretudo em face dos problemas médicos e bioéticos em que implica, tem mobilizado grandes debates acerca da sua licitude.
Derivada dos radicais gregos eu (belo, bom) e thanatos (morte), significando a ação médica de proporcionar uma morte doce e pacífica quando não restam esperanças de vida para o doente, a palavra eutanásia não foi cunhada por Francis Bacon no século XVII, como se pensou durante um bom tempo. Em verdade, ela aparece já, muito antes de Bacon, no livro A Vida dos Doze Césares, do escritor romano Suetônio (69-141 d.C.) que, ao tratar da biografia do segundo césar, Otávio César Augusto, refere-se a sua morte nos seguintes termos:
A morte que o destino lhe concedeu foi suave, tal qual sempre desejara: pois, todas as vezes que ouvia dizer que alguém morrera logo e sem padecimentos, almejava para si e para os seu (sic) igual “eutanásia” (conforme a palavra que costumava empregar). Não deu, antes de entregar a alma, senão um único sinal de perturbação mental, em virtude de um susto subitâneo; queixava-se que estava sendo arrebatado por quarenta rapazes. (SUETÔNIO, 198-?, p. 97)
Otávio César Augusto, segundo o registro de Suetônio, já utilizava a palavra eutanásia para se referir a uma morte “sem padecimento”, por ele desejada e alcançada, pois morreu apresentando “um único sinal de perturbação”, que foi a visão dos quarenta rapazes que o vinham conduzir para os labirintos da morte...
Somente com o transcurso do tempo, consagrou-se “o uso do termo para indicar a morte provocada, antecipada, por compaixão, diante do sofrimento daquele que se encontra irremediavelmente enfermo e fadado a um fim lento e doloroso” (VILLAS-BÔAS, 2005, p. 78).
Muito em função desse amplo emprego dado à palavra eutanásia, à qual também se associa a tradicional ideia de boa morte (MINAHIM, 2005, p. 178), surge uma grande dificuldade para sua abordagem, haja vista que o seu significado polissêmico gera diferentes compreensões (BINCAZ, 2001, p. 5-6). Tais divergências são consequência direta da interdisciplinaridade do tema, permitindo reflexões de natureza filosófica, médica, jurídica e religiosa. Na visão de Maria Auxiliadora Minahim, esse diálogo, embora útil e necessário, “contribuiu para os múltiplos sentidos dados à expressão, de forma que não constitui tarefa tranquila atribuir-se, ao termo eutanásia, um significado unívoco.”[1]
2 DISTANÁSIA, ORTOTANÁSIA E MISTANÁSIA
Antes de tratar das classificações possíveis para o fenômeno da eutanásia, se faz necessário apresentar outros termos que a ela são associados e que, em verdade, encerram manifestações diferentes.
O primeiro termo a ser considerado, a distanásia, vem a ser:
[...] a tentativa de retardar a morte o máximo possível, empregando, para isso, todos os meios médicos disponíveis, ordinários e extraordinários ao alcance, proporcionais ou não, mesmo que isso signifique causar dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte é iminente e inevitável. (BARROSO; MARTEL, 2010, p. 179)
Trata-se de um prolongamento artificial da vida do paciente cuja enfermidade, conforme as perspectivas científicas, não apresenta possibilidade de cura e de melhora, vislumbrando-se sua morte iminente. Segundo Pessini, “nesta conduta não se prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer”[2]. Aumenta-se o tempo de agonia do paciente, mesmo que disso lhe resulte mais dor. Villas-Bôas (2005) vai mais longe, ao afirmar que a distanásia corresponde a um “encarniçamento terapêutico”, face aos maus tratos gerados, sem que disso resulte qualquer benefício.
Em sentido contrário, na ortotanásia “trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia” (BARROSO; MARTEL, 2010, p. 179). Deixa-se que a vida siga seu curso normal, encontrando a morte ao seu tempo certo. Como bem assinalado por Villas-Bôas (2005, p. 73):
A ortotanásia tem seu nome proveniente dos radicais gregos: orthos (reto, correto) e thanatos (morte). Indica, então, a morte a seu tempo, a morte no tempo correto, nem antes nem depois da hora [...] Diz-se que não há encurtamento do período vital, uma vez que este já se encontra em inevitável esgotamento. Tampouco se recorrem a medidas que, sem terem o condão de reverter o quadro terminal, apenas resultariam em prolongar o processo de sofrer e morrer para o paciente e sua família.
No que respeita à ortotanásia, tem-se entendido que somente o médico pode provocá-la. Não se constituindo em abreviação da vida, mas sim no seu não prolongamento por meios artificiais, aceita-se a ideia de que o paciente não é obrigado a suportar um tratamento contra a sua vontade, o que desoneraria o médico do dever de impor as medidas tratativas a qualquer custo. A hipótese de ortotanásia ainda é criminalizada no Brasil, nada obstante as controvérsias e os embates jurídicos que tem suscitado.
Na mistanásia ou eutanásia social, fala-se de uma “morte miserável, transcendendo o contexto médico-hospitalar para atingir aqueles que nem sequer chegam a ter um atendimento médico adequado, por carência social, por falta de condições e de oportunidades econômicas e políticas” (VILLAS-BÔAS, 2005, p. 75). No seu âmbito também podem ser incluídas novas categorias, tais como a morte por erro médico, por má prática e por falta de assistência do Estado (MINAHIM, 2005, p. 185)[3].
3 ALGUMAS CLASSIFICAÇÕES
Apresentados esses três conceitos diferenciais, convém estabelecer um conceito de eutanásia. Costuma-se apresentá-la em diversas feições, conforme classificações que são feitas segundo os seguintes critérios: participação de terceiros (autônoma e heterônoma), motivação do autor (libertadora ou terapêutica, eugênica ou selecionadora e econômica), intervenção do sujeito ativo (direta e indireta), conduta do agente (ativa e passiva) e a vontade do doente (voluntária ou involuntária) (MINAHIM, 2005, p. 184-185; VILLAS-BÔAS, 2005, p. 86-87). De todas elas, porém, prepondera o destaque dado a esta última classificação, que leva em conta o consentimento da vítima, bem como a que realça a participação de terceiros no desfecho.
No que toca à participação de terceiros, a eutanásia pode ser autônoma, quando dispensa a atuação de uma terceira pessoa, e heterônoma, quando terceira pessoa intervém, causando a morte. Nesta última modalidade é que atua o Direito Penal, com sua força criminalizadora (MINAHIM, 2005, p. 185).
Quanto à vontade do doente, fala-se em eutanásia voluntária e involuntária, a primeira significando o consentimento da vítima, “em gozo pleno de sua capacidade” (VILLAS-BÔAS, 2005, p. 83), e a segunda expressando a ausência desse consentimento, ou seja, sua realização é decidida por outra pessoa que não o interessado.
Assim, o consentimento do doente e o comportamento positivo do agente se mostram presentes na definição de eutanásia apresentada por Barroso e Martel (2010, p. 178), para quem:
Compreende-se que a eutanásia é ação médica intencional de apressar ou provocar a morte – com exclusiva finalidade benevolente – de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos.
Os autores consideram a eutanásia como uma ação médica intencional e benevolente, ou seja, somente poderia ser praticada por pessoa regularmente habilitada para o exercício da medicina. Trata-se da chamada eutanásia ativa. Além disso, a ação tem que ser intencional, causada com a intenção de levar à morte do paciente. A motivação benevolente é a que visa libertar o paciente do sofrimento que o abate, do mal causado pela enfermidade.
A doença há de ser irreversível e incurável, sendo certa a morte do sujeito graças a ela. Além disso, é necessário que se padeçam “intensos sofrimentos físicos e psíquicos”, que devem aparecer cumulativamente com a enfermidade incurável.
Conforme alertam os autores, “do conceito estão excluídas a assim chamada eutanásia passiva, eis que ocasionada por omissão, bem como a indireta, ocasionada por ação desprovida da intenção de provocar a morte”. Pela mesa forma, “não se confunde, tampouco, com o homicídio piedoso, conceito mais amplo que contém o de eutanásia” (BARROSO; MARTEL, 2010, p. 178).
De um modo geral, as legislações têm considerado a prática da eutanásia não apenas por médicos, mas por qualquer pessoa que atue conforme os critérios fixados acima, como se depreenderá dos dados apresentados a seguir.
4 LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA
O primeiro país da América Latina a tratar mais brandamente os casos de eutanásia foi o Uruguai. Já em 1933, o código penal daquele país previu a presença da piedade, por meio de súplicas reiteradas da vítima, como causa de perdão judicial no então chamado “homicídio piedoso” (VILLAS-BÔAS, 2005, p. 155). A Bolívia também admite o perdão judicial, prevendo a possibilidade de substituição por pena alternativa (VILLAS-BÔAS, 2005, p. 157), bem como o código penal da Colômbia, de 1936, também previu causa semelhante, embora a previsão tenha sido posteriormente retirada. Segundo informa Villas-Bôas (2005, p. 156):
[...] somente em maio de 1997, em sentença que ultrapassou cento e cinquenta páginas, a corte colombiana decidiu, por seis votos contra três, a exclusão da penalidade para os médicos que cometessem a “eutanásia piedosa, permitindo ao paciente uma morte digna”. Por “eutanásia piedosa” entendeu-se a hipótese de eutanásia passiva voluntária, então traduzida como a suspensão de meios extraordinários de sustentação da vida, em caso de pacientes cuja terapêutica se revela fútil, com sua anuência. Aproximou-se, portanto, da definição de ortotanásia.
Nos Estados Unidos, as orientações se modificam conforme o estado. Oregon, por exemplo, admite o auxílio a suicídio de pacientes terminais, mas não a eutanásia ativa; a Califórnia reconhece o direito do paciente de recusar tratamento que o mantém vivo; Connecticut, em 1985, passou a aceitar a suspensão de suporte vital.
A legislação portuguesa pune a eutanásia no seu artigo 133º, embora o nomen juris do tipo seja homicídio privilegiado. Eis a dicção do dispositivo legal:
Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.[4]
A hipótese de eutanásia se amolda, em Portugal, ao motivo de relevante valor moral, qual acontece no Brasil. Mata-se com a finalidade de libertar o outro da constrição causada pela doença incurável e seu sofrimento atroz, ou seja, atendendo-se a um interesse de caráter pessoal.
Também é possível amoldá-la à figura prevista no artigo 134º, que trata do homicídio a pedido “sério, instante e expresso”. Seria, no caso, o pedido sério, instante e expresso de quem padece de doença incurável e sofrimento intenso que não se possa suavizar. Este tipo foi analisado no tópico precedente, quando se tratou do homicídio a pedido. Não se pode esquecer, como já frisado, que a eutanásia pode ser considerada uma modalidade de homicídio a pedido, caracterizada pela motivação específica, mas que pensar assim não atende aos critérios de precisão e de taxatividade da lei penal.
A Espanha trata da eutanásia no item 4 do artigo 143 do Código Penal Espanhol, nos seguintes termos:
Artigo 143.
4. O que causar ou cooperar ativamente com atos necessários e diretos para a morte de outro, atendendo pedido expresso, sério e inequívoco deste, nos casos em que a vítima sofra uma enfermidade grave que conduzirá necessariamente a sua morte, ou que produza graves padecimentos permanentes e difíceis de suportar, será castigado com pena inferior as penas previstas nos números 2 e 3 deste artigo, reduzidas de um a dois terços.[5]
O tipo legal incriminador abre espaço para importantes reflexões.
Inicialmente há uma limitação dos casos que devem ser considerados como de eutanásia. O primeiro deles é a presença de “enfermidade grave que conduzirá necessariamente a sua morte”. Trata-se de doença incurável, para a qual a medicina não acena com perspectiva curativa, sendo certo que a pessoa morrerá daquele mal. Pouco importa o tempo de vida que ainda resta ao doente: sendo certo que a enfermidade não possui cura, autoriza-se a morte.
O segundo critério é o grave padecimento permanente e difícil de suportar. Veja-se que não há restrição ao tipo de padecimento, se físico ou psíquico: basta que seja permanente, ou seja, duradouro e irremediável, sem solução de continuidade, e que seja difícil de suportar, que se revele superior às forças do indivíduo. A avaliação quanto à capacidade de suportar é subjetiva, já que cada um sendo um, não é possível estabelecer uma “quantidade de sofrimento” suportável.
Digno de nota é a alternatividade entre os dois critérios acima referidos. A lei espanhola diz: “nos casos em que a vítima sofra uma enfermidade grave que conduzirá necessariamente a sua morte, ou que produza graves padecimentos permanentes e difíceis de suportar”. Foi destacada a conjunção alternativa ou que, no texto, expressa que a eutanásia pode ser praticada em um ou outro caso, quando é frequente condicionar a sua aceitação à presença dos dois critérios: doença incurável e sofrimento insuportável. Desta forma, o legislador espanhol foi inovador, admitindo a necessidade de um só desses motivos, associado aos demais requisitos do tipo, para autorizar a prática.
O terceiro requisito legal é a presença de um pedido expresso, sério e inequívoco. A vontade do que padece tem de estar claramente demonstrada, sem que haja margem para dúvida quanto ao que realmente se deseja – a morte –, bem como o pedido deve emanar de pessoa capaz de compreender o alcance da autorização que presta. Perceba-se que o consentimento do ofendido, aqui, é ponto fulcral da conduta, sem o que pode se enquadrar em outra forma de homicídio.
Em verdade, o número 4 deste artigo foi tratado, pelo legislador espanhol, como uma privilegiada, embora com feições de causa de diminuição de pena, das modalidades dos números 2 e 3 que tratam, respectivamente, das chamadas cooperação com o suicídio e cooperação executiva ao suicídio. Caso o autor pratique quaisquer daquelas condutas em relação a quem se ajuste à hipótese do número 4, serão aplicadas as penas da mera cooperação ou da cooperação executiva, respectivamente, sempre reduzidas de um a dois terços. Trata-se de norma penal em branco de complementação homóloga homovitelina, pois a identificação do comportamento criminoso somente se faz com o recurso a outros dispositivos do próprio Código Penal Espanhol, bem como norma penal incompleta ou imperfeita, já que remete às penas dos referidos tipos para se encontrar a aplicável ao caso.
Atente-se, ainda, que a redução de pena se dá não apenas em função do motivo privilegiador, mas também do consentimento do ofendido. A solicitação para morrer é reflexo deste, constituindo-se em elemento indispensável da definição típica.
Na legislação alemã, como visto no tópico anterior, o artigo 216 trata da hipótese de homicídio a pedido, uma fórmula genérica, que costuma ser aplicada ao aqui considerado como eutanásia desde que, como na legislação portuguesa, a motivação da vítima seja o padecimento insuportável ou a doença incurável.
Na Suíça, “a eutanásia não é beneficiada por norma absolutória, constituindo um tipo de homicídio privilegiado, desde que praticado para abreviar os sofrimentos de um doente agonizante, movido pela caridade, a piedade ou sob efeito de confusão mental” (MINAHIM, 2005, p. 203). O tratamento dado à eutanásia, naquele país, é o mesmo conferido no Brasil.