Reino Unido fora da UE. Temos também que nos separar...

27/06/2016 às 07:33
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“Entre 2006 e 2012, 3,3 milhões de famílias subiram um degrau, das classes D e E para a classe C, segundo Tendências Consultoria Integrada – Estadão; teviram acesso a produtos e serviços que antes não cabiam no seu bolso, como plano de saúde, ensino...

Síntese:

 

(1) A quase totalidade dos europeus (tanto quanto os brasileiros nesse momento de crises duradouras) está profundamente descontente e iracunda com o rebaixamento da sua qualidade de vida;

 

(2) Uma série de fatores explica a decadência da qualidade de vida das pessoas e, dentre eles, sem sobra de dúvida, está a kleptocracia (roubalheira do dinheiro público);

 

(3) Países nessa situação de crise econômica, corrupção e desesperança são fecundos para a festa e prosperidade dos demagogos e populistas;

 

(4) O Brexit (saída do Reino Unido da UE em 2016) é a queda invertida do Muro de Berlim, de 1989;

 

(5) Platão estava parcialmente certo (votamos muitas vezes com a emoção);

 

(6) No novo paradigma (político e econômico) é abissal a distância dos vencedores frente aos perdedores;

 

(7) É nitroglicerina pura (no eleitorado) a combinação de rebaixamento da qualidade de vida, desemprego ou sub-salário, descenso no status social, a queda dos serviços públicos aos necessitados, crise econômica, corrupção, indignação, desesperança, empoderamento da população pelas redes sociais e retóricas populistas xamânicas (que prometem o paraíso na Terra). Não há União nem governo que resiste a tudo isso;

 

(8) Temos que nos separar urgentemente dos kleptocratas, aprofundando o movimento iniciado pela Lava Jato; para isso a sociedade civil tem que se mobilizar (ou nosso futuro será o previsível, não o esperançoso).

  

Veja mais detalhes:

 

A quase totalidade dos europeus (tanto quanto os brasileiros nesse momento de crises duradouras) está profundamente descontente e iracunda com o rebaixamento da sua qualidade de vida. Como é fácil notar, isso também é precisamente o que está ocorrendo com 3,1 milhões de famílias brasileiras:

 

“Entre 2006 e 2012, 3,3 milhões de famílias subiram um degrau, das classes D e E para a classe C, segundo Tendências Consultoria Integrada – Estadão; teviram acesso a produtos e serviços que antes não cabiam no seu bolso, como plano de saúde, ensino superior e carro zero. Agora, afetadas pelo aumento do desemprego e da inflação, essas famílias começam a fazer o caminho de volta. De 2015 a 2017, 3,1 milhões de famílias da classe C, ou cerca de 10 milhões de pessoas, devem cair e engordar a classe D/E, aponta o estudo. “A mobilidade que houve em sete anos (de 2006 a 2012) deve ser praticamente anulada em três (de 2015 a 2017). Estamos vivendo, infelizmente, o advento da ex-nova classe C”, diz o economista Adriano Pitoli, sócio da consultoria e responsável pelo estudo” (Estadão).

 

Uma série de fatores explica a decadência da qualidade de vida das pessoas e, dentre eles, sem sobra de dúvida, está a kleptocracia (promiscuidade entre agentes públicos e privados para gerar enriquecimento corrupto ou politicamente favorecido a alguns privilegiados). No Brasil essa kleptocracia, finalmente, está sendo investigada, processada e condenada pela Lava Jato (com fechamento de várias empresas, perda de milhares de postos de trabalho, falências de empresários etc.). A corrupção, assim como o enriquecimento favorecido direcionado a poucos (aos bem relacionados e posicionados dentro do Estado), concentra o dinheiro público nas mãos de poucas pessoas, prejudicando a criação de infraestrutura, escolas, hospitais, planos de crescimento da empregabilidade, assistência ao desempregado etc. Assim funcionam as kleptocracias, que são responsáveis (em grande medida) pelo subdesenvolvimento do país.

 

Países nessa situação de crise econômica, corrupção e desesperança são fecundos para a festa e prosperidade dos demagogos e populistas. Hobbes inventou o Estado Moderno. Stuart Mill agregou-lhe a liberdade individual. Beatrice Webb criou o bem-estar para a maioria, hoje sob contestação. A síntese de tudo isso (4º modelo de Estado) ainda não foi inventada (ver Micklethwait e Wooldridge, A quarta revolução). Daí nossos desencontros. E. Morin acha que ainda estamos da Idade do Ferro (século XII a. C.) em termos planetários (Hacia dónde va el mundo?, p. 51). Enquanto não descoberto o justo modelo de sociedade, de economia e de Estado, reinam os demagogos, que sabem explorar a emotividade e a ira da população, que sabem jogar a indignação contra a temperança, a retórica xamânica (sobrenatural) sobre a retórica do ou da realista que busca solução razoável para os problemas (ver Víctor Lapuente, El retorno de los chamanes, p. 22). Os populistas demagogos (que são fortes perante a população) são fontes de imensa insegurança tanto para o Mercado como para o País.

 

O Reino Unido votou pela separação da União Europeia - UE (52% contra 48%) porque seus habitantes (majoritariamente) estão descrentes, desiludidos com a situação política e econômica vigentes. Sabemos que onde falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. São incalculáveis os benefícios (tem seu lado positivo) assim como os danos sociais atuais gerados pela política e pelo mercado.

 

Como um todo, o planeta melhorou muito (Andrew Carnegie: “Os pobres usufruem daquilo que antes os ricos não podiam ter”). A Europa, particularmente, melhorou extraordinariamente nos 30 anos gloriosos do Estado de Bem-Estar Social – Welfare State -, de 1945-1975 – criado para combater o comunismo.  Mas ninguém quer perder (ou rebaixar) a qualidade de vida.

 

O Brexit (saída do Reino Unido da UE em 2016) é a queda invertida do Muro de Berlim, de 1989. A vitória da democracia liberal (do chamado livre mercado) incrementou a globalização (desde 1989). A vitória do Brexit (2016) faz movimento contrário (afastamento do modelo de negócios da UE). É o fim da narrativa do “fim da história” de Francis Fukuyama. O mundo prossegue. E o Reino Unido deu o alarme (daí a reação de algumas lideranças de que algo deve ser modificado na UE).

 

A advertência de Platão (A República), bem compreendida, poderá nos ajudar. Seu medo era de que “as massas fossem movidas antes pela emoção do que pela razão, antes pelos interesses imediatistas do que pela sabedoria duradoura”. O Reino Unido votou pela emoção (que foi explorada ex abundantia pelos políticos xenófobos populistas). Quanto aos interesses imediatistas, isso é coisa da natureza humana (todos somos assim). Tanto as massas (de todas as classes sociais) como as elites e oligarquias são assim.

 

A UE quer fazer negócios, promover o bem-estar das empresas, das finanças, dos investidores, dos mercados, a livre circulação das pessoas e dos consumidores (muito bem: está cuidando dos seus interesses imediatistas). O povo quer alimentação, proteção à família, moradia, trabalho com salário digno, educação, aposentadoria, segurança e alguns prazeres (incluindo o de consumir). Esses são seus interesses imediatistas. O centro da discórdia, no fundo, é muito mais prosaico do que se possa imaginar. Todo mundo tem seus interesses imediatistas (que foram escalonados por Maslow, subindo desde as necessidades fisiológicas até à autorrealização). Na hora dos interesses imediatistas poucos são os que querem saber de “sabedoria duradoura”.

 

Desde os anos 80 quatro mudanças radicais aconteceram e sacudiram o mundo: (1) alterações profundas nas relações econômicas (novo modelo econômico, privatizante, que desencadeou o começo do fim do Estado de Bem-Estar Social, que havia sido desenvolvido por Beatrice Webb no princípio do século XX), (2) globalização das comunicações e do mercado (sobretudo no mundo ocidental), (3) revolução tecnológica digital e (4) fortalecimento, internacionalização e hegemonia do poder financeiro.

 

Tudo isso gerou, dentre outras, duas consequências: (a) a precarização e a instabilidade no mercado de trabalho (desemprego, subemprego, sub-salários etc.); (b) uma aceleração imensa na concentração da riqueza mundial (com intensificação das desigualdades) – (ver Stiglitz, La gran brecha; Piketti, O Capital etc.), agravada pela evasão de impostos e alocação da riqueza em paraísos fiscais (o que reduz a capacidade financeira dos Estados).

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No novo paradigma (político e econômico) é abissal a distância dos vencedores frente aos perdedores. O Reino Unido deu esse recado. O assunto está tão preocupante, que Stiglitz narra no livro citado que os ganhadores estão temendo a Síndrome da Maria Antonieta guilhotinada.

 

É nitroglicerina pura (no eleitorado) a combinação de: (1) rebaixamento da qualidade de vida + (2) desemprego ou sub-salário (com a excedência da mão-de-obra, livre circulação e migração dos trabalhadores na Europa, empresas que saem para buscar mão-de-obra barata em outros países ou continentes, difusão dos robôs etc.)  + (3) descenso no status social + (4) a queda dos serviços públicos aos necessitados + (5) crise econômica + (6) corrupção (pouca no Reino Unido, mas existe) + (7) austeridade econômica (austericídio) + (8) indignação + (9) desesperança + (10) empoderamento da população pelas redes sociais + (11) retóricas populistas xamânicas (que prometem o paraíso na Terra). 

 

Não há União nem governo que resista a tudo isso quando todos ou muitos desses fatores acontecem concomitantemente. Tudo isso explica o “não” da população majoritária do Reino Unido (ainda que as consequências sejam mais nefastas que benéficas, aparentemente). Foi uma resposta irada (mais emoção, que razão, diria Platão). Mas é justamente essa ira que está presente agora na cabeça dos brasileiros (sobretudo depois das revelações da Lava Jato). Daí o questionamento: a quem ou ao que diremos nós brasileiros “não”? Desde logo, penso que devemos nos separar de todos aqueles que estão fazendo fortunas com o modelo kleptocrata de sociedade (que enriquece alguns com o dinheiro público, que é de todos, seja por meio da corrupção, seja por meio dos privilégios politicamente favorecidos). A Lava Jato não pode parar e a sociedade civil tem que se mobilizar (para exigir uma reforma política profunda, por exemplo), ou pagará mais caro ainda o efeito da sua inércia.

 

Enquanto o digamos 1% dos kleptocratas estão discutindo – com o dinheiro público no bolso - qual será o modelo do seu próximo avião, para qual paraíso fiscal é mais seguro mandar o dinheiro surrupiado no Brasil, qual isenção fiscal exigir do Estado, quanto de renúncia fiscal irão conseguir este ano, como estancar a Lava Jato, que medidas devem ser tomadas para se assegurar o sigilo bancário, qual Ilha fiscal não oferece riscos para guardar o dinheiro pilhado, em qual país será adquirida a próxima cobertura, qual helicóptero será comprado, quais políticos serão “financiados” etc., o cidadão corrente está preocupado com vaga na escola pública para seu filho, a transferência do filho da escola privada para a pública, o que fazer quando alguém na família fica doente, como será a aposentadoria, quanto de instabilidade existe no seu emprego, como conseguir uma moradia, como conviver com a insuportável insegurança pública, como viver com menos alimentos do que o de costume etc.

 

A diferença de preocupações é nítida nos dois grupos (basta olhar a escala de Maslow): enquanto alguns pensam apenas nas variáveis inferiores da fisiologia (alimentos, por exemplo) e da segurança (moradia, segurança pública, saúde, educação etc.), outros cuidam das relações de amizade, do reconhecimento e da autorrealização. Nos países kleptocratas o dinheiro público arrecadado sobra para o 1% (oligarquias e elites) e faz muita falta para as carências mais básicas do país e dos 99%. A questão, então, é perguntar: em que tipo de sociedade nós queremos viver?

 

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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