A favor da escravidão e contra a Lava Jato. Essa gente carcomida tem que ir embora

04/07/2016 às 10:46
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Os decrépitos e carcomidos kleptocratas têm que dar lugar para novas lideranças não corrompidas. Em qualquer país do mundo não é pouco o que a Lava Jato está fazendo: transformou em prisioneiras justamente as elites que aprisionavam escravos até há...

Os decrépitos e carcomidos kleptocratas têm que dar lugar para novas lideranças não corrompidas. Em qualquer país do mundo não é pouco o que a Lava Jato está fazendo: transformou em prisioneiras justamente as elites que aprisionavam escravos até há poucas décadas atrás. A cultura do extrativismo (do saqueamento) e da corrupção é indiscutivelmente parte do problema, não parte da solução. O que se lamenta é a lentidão das mudanças de mentalidade, mas elas já estão acontecendo, tanto institucionalmente como coletivamente.

O sistema de governo kleptocrata construído para privilegiar o enriquecimento (criminoso ou favorecido) dos donos do poder (elites/oligarquias dominantes) à custa do dinheiro público ou do conluio público-privado começou oficialmente em 1822 (antes disso vigorou a kleptocracia colonial portuguesa). Desde essa data, as roubalheiras e as fortunas dos poucos privilegiados com acesso ao Estado (digamos, 1%) nunca cessaram (os prejudicados, claro, são sempre os 99% restantes). Essa realidade tem que ser modificada radicalmente. Aliás, já está sendo (pela intervenção da Justiça).

Um grupo seleto e nefasto, já por quase 200 anos, concebeu uma identidade simbiótica absoluta entre a política, a economia e a corrupção (a política e a economia privilegiada e cartelizada é corrupção, a corrupção e o enriquecimento politicamente favorecido são a política e a referida economia de laços, de amizades, de compadres). Trata-se de um modelo de sociedade exaurido, mas que ainda não foi sepultado em virtude da tolerância social e até mesmo da legitimidade democrática (em alguns períodos) da maioria da população (Clarín), não por acaso, porcamente escolarizada.

A sociedade civil, de qualquer modo, não está inerte: as jornadas de junho/13 e outras manifestações coletivas são exemplos marcantes. O encarceramento e o empobrecimento do antigo aprisionador de escravos têm forte simbologia (e isso pode contribuir para a mudança cultural). As próprias elites/oligarquias já estão (ao menos discursivamente) reconhecendo a necessidade imperiosa de uma nova postura (sem os devidos freios, toda sociedade perece).

No princípio do século XIX, uma elite (política e econômica) com homogeneidade ideológica e de treinamento, sobretudo em virtude da mesma socialização (coimbrã), deliberou fazer do Brasil uma monarquia centralizada, preservando-se a unidade da ex-colônia para manter o regime escravagista e evitar a revolta africana (conhecida como “haitianismo”), que descambaria em guerra civil. A fragmentação do país naturalmente fortaleceria as iniciativas abolicionistas e a “desordem”. O “mercado” dominado por poucos exigia o monopólio dos portos, o domínio do setor produtivo, o controle das exportações e, particularmente, a continuidade da exploração do escravagismo (ver J. Murilo de Carvalho, A construção da ordem, p. 18-21).

Assim nasceu a carcomida e corrompida kleptocracia brasileira que, quase 200 anos depois, está pretendendo aniquilar as apurações e ações da Lava Jato e congêneres. A rebelião começou com os políticos criticando a Lava Jato (veja o áudio de Sérgio Machado). Em seguida os empresários, o mundo das finanças e os investidores engrossaram as críticas contra a aperação (particularmente contra Janot, quando solicitou a prisão de Sarney, Jucá e Renan) (ver Folha). As elites contrariadas em seus interesses (nunca “patrióticos”) querem as reformas econômicas e a Lava Jato é um fator de instabilidade. Querem a sinalização do “fim da Lava Jato para ajudar a economia brasileira” (isso é o que disse o ministro da Casa Civil do novo governo) (Folha). As duas coisas não são incompatíveis. A Lava Jato deve seguir seu curso, enquanto a economia deve se reinventar, dentro dos limites e das regras novas impostas pela Justiça.

A condescendência, antes com a escravidão e, agora, com a corrupção é inequívoca. Faz de conta que não existem problemas graves de corrupção. O mais importante são os “projetos na economia” (o progresso da “nação”, a prosperidade do “país”, a “ordem social”). Isso é realmente relevante, mas não pode servir de cobertura para o esquecimento da Lava Jato. É admirável o “comprometimento cívico” das carcomidas elites parasitárias com o futuro dos brasileiros.

É incrível como alguns grupos alcançam os cimos do poder, da riqueza, da inteligência, do talento, e, estando nos pináculos da dominação, são precipitados para o abismo da luxúria, da loucura, da degenerescência e da devassidão moral, perdendo a noção de limites (porque tudo lhes parece permitido) (ver Bomfim, A América Latina, p. 330).

Se isso nem sempre explica os ciclos de vida das civilizações, denota, ao menos, sinais inequívocos de decadência, que reclama troca, substituição, mutação. Se chega ao fastígio da grandeza, para depois se esgotarem, se aniquilarem, se degeneraram inclusive intelectualmente. Essa é a hora da substituição das lideranças (ou a nação mergulha nas profundezas da discórdia, do caos e do colapso). Enquanto não defenestradas e substituídas por novas lideranças não parasitas, nada de muito relevante acontecerá além da Lava Jato.

Não é uma coincidência a identidade de mentalidade entre os que renegam a Lava Jato hoje e os que parasitavam os índios e os africanos ontem. Todos pertencem ao mesmo clube. A luta declarada pelo fim da escravidão (incluindo a do Brasil) começou logo após a Câmara dos Lordes tê-la proibido na Inglaterra (em 7/7/1807). No ano seguinte a poderosa Marinha inglesa lançou a famigerada “política moralizadora dos mares” (com a mesma paixão com que, antes, defendia o enriquecimento sanguinário gerado pela escravidão humana).

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Nos 80 anos de duração da causa abolicionista (1808-1888), mais de 1,5 milhão de escravos foram “importados”, sendo 700 mil ilegalmente (porque as elites/oligarquias dominantes pouco se lixavam para as leis, que eram apenas para “inglês ver”). Em três séculos, 4,5 milhões de escravos foram trazidos ao Brasil (ver sobre esses dados históricos a síntese de E. Bueno, Brasil – Uma História, p. 233 e ss.).

No descumprimento deslavado da lei a historiadora Hebe Mattos (UFF) vê “um vigoroso processo de desobediência civil por parte da classe senhorial” contra a extinção do tráfico dos negros (ver E. Gaspari, Folha). Na era da escravatura negava-se eficácia à lei, hoje o que se pretende é aniquilar o seu império (ou seja: o Estado de Direito republicano, que coloca todos em pé de igualdade perante a lei).

“Onde isso vai parar?”, indagam os grupos preocupados com a economia “do país”. Que a operação Lava Jato e congêneres vá até onde tenha que ir para nos desvelar o âmago das elites políticas e econômicas de espírito escravagista, antilegalista e extrativista, que em protesto à Lei Áurea até hoje reluta em enfrentar o problema da escravidão, que não terminou. A resposta do crescimento econômico com mau desenvolvimento é insuficiente.

Em 1832, violando a lei de 1831, o paulista José Maria Lisboa adquiriu 760 “peças” na África, a 20 mil-réis por cabeça. Vendeu-as no Brasil por 250 mil-réis cada uma (E. Bueno, Brasil – Uma História). O tráfico era um dos negócios mais rentáveis para as elites políticas e econômicas da época. Por que terminar com ele?  Apesar da crise econômica, em pleno século XXI a corrupção e o capitalismo de laços, bem como o loteamento dos cargos públicos, o aparelhamento do Estado e sua ineficácia fiscalizadora continuam fazendo a fortuna das elites/oligarquias políticas e econômicas governantes. Por que acabar com tudo isso?

E. Bueno prossegue: “a armada britânica escoltou de Portugal ao Brasil a comitiva de D. João VI (que fugiu da terra amada em razão das invasões de Napoleão Bonaparte). Em 1810 ele assinou o 1º tratado comprometendo-se a gradualmente reduzir o mercado escravagista no Brasil, cujo final teve que esperar mais 78 anos. Em 1815, num congresso em Viena, foi assinado o 2º tratado, que paradoxalmente incrementou o comércio aberrante. Em 1826, para reconhecer o Brasil como país independente, novo tratado foi firmado (com o propósito de definitivamente acabar com o tráfico negreiro). Desde 1830 ele se tornou totalmente proibido. O deputado Cunha Matos protestou, porque o Brasil teria sido compelido a assinar um tratado ‘oneroso e degradante sobre os assuntos internos’”.

Apesar da proibição, “o tráfico não parou, nem mesmo depois da edição da 1ª lei brasileira nesse sentido (assinada pelo ministro da Justiça, padre Diogo Feijó). Para burlar a vigência da lei, muitos juízes eram “comprados”, mesmo porque eram também fazendeiros; em 1845 a Inglaterra publicou o famoso Bill Aberdeen, que lhe permitia abordar e inspecionar qualquer navio brasileiro em qualquer oceano; em 1850 editou-se a 2ª lei, sendo ministro da Justiça Eusébio Queiroz; as lutas abolicionistas de José do Patrocínio, André Rebouças, Luís Gama, Joaquim Nabuco, Antonio Bento, Silva Jardim e tantos outros só seriam vitoriosas em 1888; antes disso ainda se editou a Lei do Ventre Livre (1871) assim como a Lei Saraiva-Cotegipe (dos sexagenários)”.

Nada disso impediu que a kleptocracia brasileira, descumprindo tratados e leis, importassem 1,5 milhão de escravos nos 80 anos de 80 pelo abolicionismo. As contas com esse africano (e também indígena) passado, em termos de desenvolvimento inclusivo, ainda não foram acertadas até hoje.

Como bem sublinhou E. Gaspari (Folha): “Na segunda metade do século 19, ninguém defendia a escravidão. Todo mundo aceitava o fim do cativeiro “desde que”. Assim como a escravidão, a corrupção empresarial e política da máquina pública é algo que precisa acabar, “desde que”. Desde que não se aceite a colaboração de pessoas presas, diz Renan Calheiros. Desde que uma pessoa possa recorrer em liberdade aos tribunais de Brasília, diz Romero Jucá. Desde que a Lava Jato tenha dia para acabar, diria o doutor Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil de Michel Temer”. Em suma, desde que alguma vantagem e a absoluta impunidade dos donos do poder sejam asseguradas. Por essas razões é que a Lava Jato não pode parar e isso independe da “sonhada” retomada do crescimento (que as próprias elites contribuíram para se inviabilizar).

Quatro dias antes da Lei Áurea (assinada pela princesa Isabel), um renomado político (Domingos Andrade Figueira) discursava (na Câmara): “Com as finanças já arruinadas, com uma dívida pública que vai crescendo a passos agigantados, com as fontes de produção ameaçadas, é preciso que os representantes da nação sejam mais cautelosos.” (citado por Gaspari). Seu discurso não perdeu atualidade, mas hoje ele estaria pedindo cautela aos aplicadores da lei. Porque a mentalidade dos que defenderam a escravidão é a mesma dos que rejeitam a Lava Jato.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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