Os direitos humanos são um conjunto de direitos essenciais para que o indivíduo possa usufruir de valores como liberdade, igualdade e dignidade. São direitos indispensáveis à vida humana digna, não havendo um rol predeterminado dos mesmos, uma vez que os direitos humanos não são estáticos, devendo acompanhar o dinamismo social.
Hodiernamente, enxergam-se os direitos humanos sob um prisma eminentemente internacional, mas a proteção deles convive, no plano mundial, com dois sistemas: um regional e outro global. Por representarem valores essenciais, os direitos humanos não estão previstos apenas em tratados internacionais ou normas ordinárias; fazem parte também do corpo das Constituições.
De acordo com o professor Antonio Celso Alves Pereira[i],
“a atenção hoje voltada para os direitos humanos no plano internacional é um dos fatores que mais tem contribuído para ampliar o processo de universalização e de democratização do Direito”.
Neste cenário, ocorrem as aprovações de textos legais que visam justamente proteger os direitos humanos e, no continente americano foi adotada uma série de instrumentos internacionais que terminaram por constituir a base de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos: o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, gerado no âmbito da Organização dos Estados Americanos e que teve início formal com a aprovação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem em 1948.
Dito sistema, formado por dois órgãos – a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos - reconhece e define os direitos adotados nestes instrumentos e funda obrigações tendentes a sua promoção e proteção.
Em 1948, foram aprovadas a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. A Declaração Americana é anterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos e previu expressamente a universalidade dos direitos humanos, ao exprimir que estes não derivam do fato do indivíduo ser nacional de um Estado, e sim de sua condição humana. Com a Carta da OEA e a Declaração Americana, iniciou-se um processo de desenvolvimento da proteção interamericana aos direito humanos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos originou-se da Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores, ocorrida em Santiago, Chile, em 1959. Em 1960, foi aprovado pelo Conselho da OEA o Estatuto da Comissão, que colocou a promoção dos direitos humanos como sua função precípua. A previsão inicial era que a Comissão funcionasse de forma provisória, até que houvesse a adoção de uma “Convenção Interamericana de Direitos Humanos”. No entanto, após a adoção do Protocolo de Buenos Aires em 1967, a Carta da OEA foi emendada e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos se tornou o principal órgão da OEA.
A Comissão, que representa todos os membros da OEA, é composta por sete membros eleitos pela Assembleia Geral para um mandato de quatro anos, podendo ser reeleitos apenas uma vez. Seus membros devem ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos, que serão eleitos a partir de listas de candidatos propostos pelos governos dos Estados-membros. Não pode fazer parte da Comissão mais um nacional do mesmo Estado, ou seja, os membros eleitos devem ser de nacionalidades diferentes.
Com a adoção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, em 1969, que entrou em vigor apenas em 1978, a Comissão passou a ser dotada de novas atribuições, constituindo-se no principal órgão do referido instrumento. O art. 41 da Convenção destaca que a função principal da Comissão é justamente promover a observância e a defesa dos direitos humanos. Os direitos humanos tutelados no âmbito desta são os consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
O órgão tem competência para examinar comunicações encaminhadas por indivíduo, grupo de indivíduos ou organizações não governamentais, que contenham denúncia de violação a direito consagrado na Convenção, cometida por algum Estado-parte. A competência da Comissão alcança todos os Estados- parte da Convenção Americana, em relação aos direitos humanos nela consagrados, bem como todos os Estados-membros da OEA, em relação aos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948.
Para que uma petição ou comunicação seja admitida pela Comissão, será necessária a observância dos seguintes requisitos[ii]: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos; b)que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d) que a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.
Havendo processo junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o desfecho pode se dar de forma conciliatória. Não ocorrendo conciliação será redigido um relatório onde a Comissão exporá os fatos e suas conclusões, dizendo tudo que o Estado deve fazer para não levar o caso à Corte Interamericana. Transcorrido um trimestre sem solução por parte do Estado, a Comissão decidirá se submete o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos ou se prossegue conhecendo a questão. É obrigatório que o caso passe pela Comissão; isso é uma etapa irrenunciável.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja criação tem origem na proposta apresentada pela delegação brasileira à IXª Conferência Interamericana realizada em Bogotá no ano de 1948, é órgão jurisdicional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e tem sua sede permanente em São José da Costa Rica. Esta instituição tem função jurisdicional e é composta por sete juízes nacionais de Estados-membros da OEA, que exercerão um mandato de seis anos e são escolhidos por título pessoal, tendo por objetivo a aplicação e interpretação da Convenção. A Corte também pode contar com juízes ad hoc para tratar de determinadas matérias, conforme estabelece o artigo 55 da Convenção Americana. Além da função jurisdicional, a Corte exerce função consultiva.
É importante ressaltar que a competência da Corte no que tange ao plano contencioso é limitada aos Estados-parte que reconheçam tal jurisdição de forma expressa. O Estado brasileiro aceitou a jurisdição da Corte em 10 de dezembro de 1998. A primeira sentença da Corte em face do Estado brasileiro foi publicada em agosto de 2006, no caso do Damião Ximenes.
O efeito mais significativo da adesão do Estado brasileiro ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos é justamente garantir aos indivíduos uma importante e eficaz esfera complementar de garantia aos direitos humanos sempre que as instituições nacionais apresentarem omissão ou falhas.
Além disso, com a Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua função jurisdicional, o sistema de direitos humanos se aperfeiçoa, ao passo que além dos Estados reconhecerem a existência de direitos e liberdades fundamentais, há, a partir de então, um instrumento que assegure o efetivo cumprimento das premissas estabelecidas, caso haja violação por parte de algum Estado-parte[iii].
Importante ressaltar que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos não anula o direito interno ou vai contra este. Os países participantes devem adequar seu ordenamento jurídico aos princípios expostos na própria Convenção, o que possibilita uma harmonia no ordenamento jurídico. Percebe-se que tal sistema funciona como um instrumento complementar na proteção aos direitos humanos, uma vez que se faz necessário o esgotamento dos recursos internos. A hipótese onde não é necessário tal esgotamento se dá justamente quando o Estado não possua regulamentação interna sobre o tema a ser discutido.
Para Flávia Piovesan[iv], da análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, que é formado justamente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, se faz necessário compreender o seu contexto histórico e peculiaridades regionais. A autora destaca dois períodos no contexto latino-americano: o período dos regimes ditatoriais e o período da transição políticas aos regimes democráticos, marcado pelo fim das ditaduras militares, acrescentando que
“ao longo dos regimes ditatoriais que assolaram os Estados da região, os mais básicos direitos e liberdades foram violados, sob as marcas das execuções sumárias; dos desaparecimentos forçados; das torturas sistemáticas; das prisões ilegais e arbitrárias; da perseguição político-ideológica; e da abolição das liberdades de expressão, reunião e associação”.
Piovesan acrescenta ainda que apesar da região já ter passado pela transição dos regimes autoritários para o regime democrático, ainda há o desafio de consolidar efetivamente o novo regime. Havendo uma relação indissociável entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento, há a necessidade de enfrentamento do elevado padrão de violação aos direitos econômicos, sociais e culturais, em face do alto grau de desigualdade e exclusão social percebido nos estados americanos, o que compromete a vigência plena dos direitos humanos na região e representa um fator de instabilidade ao próprio regime democrático, sendo o Sistema Interamericano de Direitos Humanos enfocado à luz deste desafio.
O dinamismo do direito e, sobretudo dos direitos humanos requer ainda interpretações dinâmicas por parte dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no sentido de observar atentamente a conjuntura em que a possível violação ocorreu. A estruturação do sistema foi fator fundamental para o avanço da efetivação dos direitos humanos nos países participantes da OEA, imprimindo aos Estados necessidade de decisões políticas e jurídicas em consonância com o respeito aos direitos humanos.
Frise-se que estes órgãos são fruto da internacionalização dos direitos humanos, processo destacado na obra “A era dos direitos”, de Noberto Bobbio e que se destaca com o nascimento de uma terceira geração de direitos, que marcam o progresso moral da humanidade. Para o autor, o respeito aos direitos humanos pressupõe um Estado democrático. Neste sentido, a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos são uma demonstração de que os Estados Americanos estão buscando alcançar este objetivo.
Notas
[i] Pereira, Antonio Celso Alves. Apontamento sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Emerj. Disponível em < http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista45/Revista45_87.pdf>. Consultado em 10.06.15
[ii] Convenção Americana sobre direitos humanos
[iii] Jayme, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
iv Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Noberto. A era dos direitos; tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
Convenção Americana sobre direitos humanos. Disponível em < http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Consultado em 10.06.15
JAYME, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
PEREIRA, Antonio Celso Alves. Apontamento sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Emerj. Disponível em < http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista45/Revista45_87.pdf>. Consultado em 10.06.15
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.