STF X STJ: Responsabilidade civil e possibilidade de ajuizamento “per saltum” de ação de indenização diretamente contra o agente público culpado

05/07/2016 às 21:26
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Este artigo tem como aborda aspectos divergentes das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no que se refere à possibilidade de ajuizamento de ação de indenização diretamente contra o agente público culpado.

Resumo: Este artigo tem como objetivo abordar aspectos divergentes das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no que se refere à possibilidade de ajuizamento de ação de indenização diretamente contra o agente público causador do suposto dano.

Palavras-chave: Ação de indenização; Agente público; Responsabilidade direta.

Abstract: This article aims to analyze the different aspects of the case law of the Supreme Court and the Superior Court of Justice with regard to the possibility of indemnity action filing directly against the public official cause of the alleged damage.

Keywords: Indemnity action; Public official; Direct responsibility.

Sumário: Introdução. 1. Evolução da responsabilidade estatal. 2. Pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado. 3. Ajuizamento “per saltum” à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 4. Nossas considerações. 6. Conclusão. Referências.

Introdução

O vocábulo ‘responsabilidade’ a depender do contexto em que é utilizado, pode assumir uma gama variável de acepções, não sendo portanto unívoco, como sói acontecer com vários outros na nossa prestigiada língua portuguesa.

Segundo o dicionário online Michaelis, o termo, em sua acepção jurídica, diz respeito ao “dever jurídico de responder pelos próprios atos e os de outrem, sempre que estes atos violem os direitos de terceiros, protegidos por lei, e de reparar os danos causados”.

Já nessa primeira definição, exsurgem alguns elementos que deverão estar presentes no tema da responsabilidade, quais sejam, a prática de um ato, a violação de um direito legalmente previsto, bem como a ocorrência de um dano e o dever de sua reparação.

Para Carvalho Filho (2015), dois pontos são fundamentais para a existência do instituto da responsabilidade: o fato e a sua imputabilidade a alguém. Com efeito, a situação jurídica ensejadora da reparação deverá inexoravelmente ser consequência da ocorrência de um fato prévio, seja ele omissivo ou comissivo, sem o que não há que se falar em responsabilidade. Da mesma forma, leciona o ilustre doutrinador, é necessário que o indivíduo, a quem a responsabilidade é imputada, esteja efetivamente em posição de responder perante a ordem jurídica pela ocorrência do fato.

O presente trabalho abordará a responsabilidade civil do Estado. Todavia, não se pode esquecer que o Estado, enquanto abstração, pessoa jurídica criada a serviço da vida em sociedade, não expressa por si só vontade alguma, senão através dos seus agentes.

E se esses agentes, atuando na qualidade de representantes do Estado, seja por ato omissivo ou comissivo, lícito ou ilícito, violarem direito e causarem dano aos particulares, justamente por isso, por atuarem não em sua própria vontade, mas na vontade do ente em nome do qual se expressam, deverá o próprio Estado responder pelos atos de seus subordinados. Mas, como veremos logo adiante, nem sempre as coisas foram assim.

2 – Evolução da responsabilidade estatal

Antes de procedermos à análise dos pressupostos relacionados com a responsabilidade civil do Estado, especialmente à luz da Constituição da República, cumpre-nos tecer algumas considerações sobre a evolução histórica desse tema, chegando ao estágio atual.

A doutrina nos informa que, até chegar ao estágio atual da responsabilidade estatal, a teoria passou por três fases principais. Em um primeiro momento, vigorava a ideia de irresponsabilidade estatal, própria dos Estados absolutistas nos quais a vontade do monarca ou soberano tinha força de lei. Os governantes, considerados representantes de Deus na terra, não podiam errar - the king can do no wrong - portanto, prejuízos causados pelo Estado eram atribuídos à providência divina, restando então isentos de reparação (MAZZA, 2015).

Superada a fase da irresponsabilidade estatal, desenvolveu-se a teoria civilista, ou teoria da responsabilidade com culpa, a qual admitia a responsabilização do Estado quando o dano causado fosse decorrente de atos de gestão – atos praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares – bem como afastando o dever de reparação quando decorrente o prejuízo de atos de império – praticados com prerrogativas e privilégios exorbitantes do direito comum (DI PIETRO, 2014,  p. 717-718). Essa teoria é aplicada no direito público pátrio, especialmente no que se refere aos danos por omissão e à ação regressiva.

Mais adequada à relação de hipossuficiência entre o Estado e os administrados, surgiu a teoria da responsabilidade objetiva, que tem seu fundamento na teoria do risco (inerente à atividade administrativa) e pela qual se reconhece a desnecessidade de comprovação de dolo ou culpa do agente público para a configuração do dever de indenizar por parte do Estado.

Segundo nos ensina Mazza (2015, p. 368-369) “a adoção da teoria objetiva transfere o debate sobre culpa ou dolo para a ação regressiva, a ser intentada pelo Estado contra o agente público, após a condenação estatal na ação indenizatória”.

É importante também destacar que a doutrina divide a teoria do risco em duas modalidades: a do risco administrativo e a do risco integral. A primeira, que foi adotada pela Constituição Federal de 1988, reconhece a existência de excludentes e de atenuantes do dever de indenizar, tais como culpa da vítima, culpa de terceiros, força maior. A segunda, uma variante mais radical da responsabilidade objetiva, sustenta que a existência de ato, dano e nexo causal geraria o dever de indenizar para o Estado em qualquer situação, não admitindo atenuação ou exclusão (MAZZA, 2015).

A doutrina identifica a aplicação da teoria do risco integral em algumas normas do direito pátrio, haja vista que nessas situações a responsabilidade e o dever de indenizar subsiste independentemente da ocorrência de circunstâncias que poderiam atenuar ou mesmo excluir a responsabilidade. Para Di Pietro (2014), é o que ocorre nos casos de acidentes causados por danos nucleares (CF, art. 21, XXIII, d), e também nos danos causados por atos terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de empresas brasileiras (Lei nº 10.309/2001 e Lei nº 10.744/2003).

Por fim, não é demais destacar que o dever estatal de indenizar, encontra na doutrina pelo menos dois fundamentos, consubstanciados nos princípios da legalidade e da igualdade. Quando o ato lesivo é também ilícito, o fundamento do dever de indenizar repousa no princípio da legalidade, o qual é violado quando a conduta é praticada em desconformidade com a lei.

Há casos, porém, em que o ato, embora lícito, ao ocasionar um prejuízo especial a um particular, também tem o condão de gerar o dever de reparação, sendo fundamento para esse dever a repartição equânime dos encargos sociais, ideia derivada do princípio da isonomia.

Em nosso ordenamento jurídico, a responsabilidade do Estado é disciplinada pelo artigo 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, o qual estatui:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Como é possível perceber, o dispositivo constitucional acima transcrito deixa claro que a responsabilidade extracontratual do Estado é objetiva, ou seja, independe, como já vimos, da comprovação de dolo ou culpa. Dessa forma, para que o lesado tenha reconhecido o seu direito à indenização, deverá tão somente demonstrar a prática do ato pelo agente público no exercício de suas funções, a ocorrência do dano e o nexo de causalidade entre eles.

Outro ponto a considerar diz respeito à expressão ‘nessa qualidade’, empregada no texto constitucional para a atuação do agente, isso porque, caso o preposto atue em seu próprio nome ou por sua própria conta, fora de suas funções, não poderá haver imputação ao ente estatal, uma vez que, no caso, não haverá propriamente uma ‘vontade do Estado’ resultando em um prejuízo, apenas vontade da pessoa física, que, ao dar causa ao evento danoso atrai para si o dever de sua reparação.

Também se percebe da leitura do dispositivo, que, com relação à responsabilidade do agente causador do dano, foi adotada a teoria da responsabilidade subjetiva, sendo necessária, para sua configuração, a comprovação de dolo ou culpa. Presente o elemento subjetivo, o Estado possui o direito, ou mesmo o dever, de direcionar ação de regresso contra o agente, que deverá ressarcir à fazenda pública os valores por esta dispendidos na reparação do dano sofrido pelo particular.

O termo ‘agente’, nesse caso, não deve de maneira alguma ser confundido com ‘servidor’, haja vista que adquire no texto constitucional, e na seara do Direito Administrativo, uma amplitude muito mais abrangente, de forma a alcançar todos aqueles que, em nome do Estado prestam algum tipo de serviço público, a qualquer título, de forma onerosa ou gratuita.

No que tange à ação regressiva mencionada no texto, tem ela a finalidade de permitir a apuração da responsabilidade pessoal do agente público. Esse instrumento tem como pressuposto o trânsito em julgado de prévia condenação do Estado em ação indenizatória proposta pela vítima. Sustenta Mazza (2015) que, em decorrência do princípio da indisponibilidade, a propositura da ação regressiva, quando cabível, é um dever imposto à administração e não uma simples faculdade.

Essa previsão constitucional do direito de regresso contra o agente público nos casos de dolo ou culpa suscitou enorme discussão acerca da possiblidade do que a doutrina chama de ajuizamento “per saltum”, pelo qual a ação de indenização é intentada diretamente contra o agente responsável pelo ato lesivo. Esse assunto, que é o tema central desse trabalho, será abordado em momento posterior.

3 – Pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado

A doutrina administrativista, a despeito de pequenas diferenças de menor importância, aceita que são três os pressupostos básicos para que se configure a responsabilidade objetiva do Estado: ação, dano e nexo de causalidade entre eles.

Os pressupostos elencados por Di Pietro (2014, p. 719) são: a) que seja praticado um ato lícito ou ilícito por agente público; b) que esse ato cause um dano específico (atingindo um ou alguns membros da coletividade) e anormal (superior aos inconvenientes normais da vida em sociedade) e c) que haja um nexo de causalidade entre o ato do agente público e o dano.

Carvalho Filho (2015) elenca também três pressupostos: o primeiro seria a ocorrência do fato administrativo, assim considerado como “qualquer forma de conduta, comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público”. O segundo pressuposto é o dano (patrimonial ou moral), sem o qual não existe dever de reparação. O último é o nexo causal entre o fato administrativo e o dano; em outras palavras, é a demonstração de uma relação direta e necessária entre o prejuízo sofrido e a conduta estatal.

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Nos pressupostos elencados por Di Pietro (2014), é importante a observação de que o dano, além de específico, há de ser também anormal, ou seja, deve atingir a esfera jurídica do indivíduo de forma muito mais intensa do que o fazem os meros dissabores e inconvenientes a que estamos sujeitos pelo simples fato de vivermos em sociedade, daí porque, em reiterados julgados, têm os tribunais se negado a reconhecer a ocorrência de dano moral quando presentes apenas esses meros dissabores e aborrecimentos próprios do cotidiano.

Outro ponto a se frisar é que, para a configuração do dever de reparação do dano, é irrelevante que o ato praticado seja lícito ou não. Primeiro porque, conforme já afirmado, a responsabilidade objetiva não exige a comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa) por parte do agente, o que dispensa a análise da licitude ou ilicitude da conduta. Por outro lado, ainda que legítima, a atuação estatal deve se dar dentro de determinados limites, de forma a evitar a imposição de prejuízos desnecessários e/ou desproporcionais aos particulares, consoante já decidiu o Supremo Tribunal Federal. (RE 422.941-DF, 2ª Turma, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, em 6.12.2005).

Por fim, é importante atentar para o fato de que, diferentemente do que ocorre na teoria do risco integral, pela qual se pretende a responsabilização estatal por toda e qualquer conduta, na teoria do risco administrativo há hipóteses em que é possível a atenuação dessa responsabilidade, ou até mesmo a sua exclusão, a depender do grau de intensidade com que a vítima contribuiu para a ocorrência do evento danoso. É o que se denomina ‘sistema de compensação de culpas’.

Feitas essas breves considerações acerca dos pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado, cumpre agora adentrarmos no tema central desse trabalho, analisando as interpretações dadas pelas duas maiores cortes de justiça do país acerca da possibilidade do ajuizamento da ação de indenização diretamente contra o agente causador do dano.

4 – Ajuizamento “per saltum” à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça

Há divergência jurisprudencial entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça quando o assunto diz respeito à possibilidade ou não do ingresso da ação de indenização diretamente contra o servidor, contra o Estado ou contra ambos, quando a responsabilidade civil decorre de ato lesivo praticado por agente público no exercício de suas funções.

Uma análise mais atenta da jurisprudência de nossa Suprema Corte nos permitirá concluir que esse tribunal já admitiu de forma mais ou menos pacífica a possibilidade de ajuizamento de ação de indenização diretamente em face do servidor público.

Cita-se como exemplo a decisão proferida pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal Octávio Gallotti, quando ainda vigente a Constituição Federal de 1967, a qual, em seu artigo 107, disciplinava o tema da responsabilidade civil do Estado em termos idênticos aos atuais:

“DANO, PURAMENTE MORAL, INDENIZAVEL. DIREITO DE OPÇÃO, PELO LESADO, ENTRE A AÇÃO CONTRA O ESTADO E A AÇÃO DIRETA, PROPOSTA AO SERVIDOR (CONSTITUIÇÃO ART. 167) (sic). PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE QUE NÃO SE CONHECE (RE 105157, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Primeira Turma, julgado em 20/09/1985, DJ 18-10-1985)”.

No julgado acima transcrito, foram esposados alguns argumentos interessantes para a compreensão do tema ora analisado. O relator destacou que o fato de a Constituição colocar à disposição do lesado uma ação que dispensa a prova de culpa e cujo pagamento é assegurado pelos cofres públicos, não o priva da opção de intentar a sua pretensão diretamente contra o funcionário culpado e solvável, “em busca de um procedimento mais expedito de execução”.

Ainda trazendo à baila a argumentação construída à época pelo eminente ministro Ocátvio Gallotti:

“Ao servidor público, nenhum interesse legítimo se lhe atinge, porquanto estaria sujeito, de outro modo, a suportar a ação regressiva, faculdade do Estado, indisponível pelo Administrador. Sob o prisma meramente adjetivo, reputar sucessivo e obrigatório o regresso, seria instituir uma sinuosidade de todo incompatível com o princípio da economia processual”.

A jurisprudência do STF, todavia, tomaria rumos diversos no julgamento do RE 327.904/SP, pois nessa ocasião o tribunal afastou a legitimidade passiva do agente público para responder pelos danos causados a particular no exercício de função típica (RE 327.904, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 15/08/2006, DJ 08-09-2006).     

Na situação fática relacionada a esse julgado, buscava-se a responsabilidade civil de ex-prefeito do Município de Assis (SP), por haver editado decreto de intervenção em face de hospital e maternidade pertencente à Associação de Caridade Santa Casa de Misericórdia de Assis. Foi proposta ação indenizatória em decorrência de prejuízos financeiros sofridos pela entidade beneficente, com pedido de ressarcimento de perdas e danos voltado diretamente contra a pessoa física do ex-gestor.

Em primeiro grau, o processo foi extinto sem resolução de mérito, sob o fundamento de ilegitimidade passiva do réu, entendimento que foi ratificado em grau de apelação. Diante da decisão em segunda instância foi interposto recurso extraordinário com alegação de desrespeito ao § 6º do art. 37 da Constituição da República.

A entidade fundamentou sua pretensão no argumento de que ao lesado haveria a faculdade de mover a ação diretamente contra o agente, tendo em vista a conduta culposa deste, independente da responsabilidade do Município por ele então governado.

O ministro Carlos Britto, relator do processo, negou provimento ao recurso sob o fundamento de que somente as pessoas jurídicas de direito público ou aquelas de direito privado prestadores de serviços públicos poderiam responder objetivamente pela reparação de danos a terceiros.

Ainda nas palavras do relator, se o eventual prejuízo ocorreu por força de uma atuação tipicamente administrativa, seria incabível extrair do art. 6º da Constituição Federal a responsabilidade per saltum da pessoa natural do agente, o qual apenas estaria obrigado à reparação em caso de ressarcimento ao erário, depois de comprovada sua culpa ou dolo.

“Vale dizer: ação regressiva é ação de “volta” ou de “retorno” contra aquele agente que praticou ato juridicamente imputável ao Estado, mas causador de dano a terceiro. Logo, trata-se de ação de ressarcimento, a pressupor, lógico, a recuperação de um desembolso. Donde a clara ilação de que não pode fazer uso de uma ação de regresso aquele que não fez a “viagem financeira de ida”; ou seja, em prol de quem não pagou a ninguém, mas, ao contrário, quer receber de alguém e pela vez primeira”.

Para o Supremo Tribunal Federal, portanto, o já citado art. 37, § 6º da Constituição Federal consagra a tese que ficou conhecida como “dupla garantia”, isso porque, ao possibilitar a ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviço público, estaria assegurada ao lesado a possibilidade praticamente certa de ver ressarcido o dano sofrido. Outra garantia seria direcionada ao servidor do estado, cuja responsabilidade civil e administrativa apenas subsistiria perante a pessoa jurídica a cujo quadro ele pertença.

Entendimento diverso aplicado ao tema ora analisado foi esposado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial Nº 1.325.862 - PR (2011/0252719-0), de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, julgado em 05/09/2013.

Nesse recurso a controvérsia estava relacionada a pedido de indenização formulado pelo Procurador do Estado do Paraná, em face de serventuária da justiça que, no exercício de suas funções, fizera publicar resumo de sentença no qual erroneamente constou a afirmação de que o Estado do Paraná havia sido condenado a pagar multa por litigância de má-fé, o que não ocorreu.

O advogado público que atuara no feito objeto da controvérsia, afirmando ofensa à sua honra pessoal e profissional decorrente da publicação equivocada, ajuizou ação indenizatória contra diretamente contra serventuária, visando à compensação dos danos morais que teria experimentado.

O pedido foi julgado improcedente em primeira instância, sendo a sentença mantida em grau de apelação, motivo pelo qual foi interposto recurso especial no qual se alegou ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil e aos arts. 186 e 927 do Código Civil.

Antes de analisar o mérito do recurso, o relator examinou preliminarmente a questão controvertida relacionada à possibilidade de o lesado ajuizar o pedido indenizatório diretamente contra o agente público, suposto causador do dano, sem a participação do Estado.

Após tecer comentários acerca da jurisprudência do STF, afirmando, conforme já destacado, que “a jurisprudência do Supremo sempre foi linear em admitir a ação direta do lesado em face do servidor público”, o ministro Luís Felipe Salomão expôs entendimento segundo o qual, a melhor solução para a questão seria a de deixar à disposição do particular a possibilidade de intentar ação diretamente contra o agente público culpado, contra o Estado, ou até mesmo contra ambos, caso seja esse o seu interesse.

O ministro também destacou que a Constituição prevê uma garantia para o administrado, de procurar a satisfação do direito violado diretamente da pessoa jurídica, independentemente de culpa do agente público, tendo em mira a maior solvência daquela, o que representaria maior segurança para o lesado em receber a sua indenização.

Citando ainda abalizada doutrina de Celso Antônio Bandeira de Melo, o relator do acórdão teceu ainda as seguintes considerações para fundamentar seu posicionamento:

“Entendemos que o art. 37, § 6º, não tem caráter defensivo do funcionário perante terceiro. A norma visa a proteger o administrado, oferecendo-lhe um patrimônio solvente e a possibilidade da responsabilidade objetiva em muitos casos. Daí não se segue que haja restringido sua possibilidade de proceder contra quem lhe causou o dano. Sendo um dispositivo protetor do administrado, descabe extrair dele restrições ao lesado. A interpretação deve coincidir com o sentido para o qual caminha a norma, ao invés de sacar dela conclusões que caminham na direção inversa, benéfica apenas ao presumido autor do dano. A seu turno, a parte final do § 6º do art. 37, que prevê o regresso do Estado contra o agente responsável, volta-se à proteção do patrimônio público, ou da pessoa de Direito Privado prestadora de serviço público”.

Como se pode perceber, há uma nítida diferença entre os posicionamentos das duas mais altas cortes do nosso país, no que se refere à possibilidade de ajuizamento de ação indenizatória diretamente contra o agente público culpado, seja isoladamente, seja em litisconsórcio passivo com a pessoa jurídica envolvida no evento danoso.

5 – Nossas considerações

Em que pesem os respeitáveis argumentos esposados no julgado do STF, pensamos que melhor interpretação é aquela que se extraí da análise feita pelo STJ, assentando que o dispositivo constitucional que consagra a responsabilidade objetiva do Estado deve ser entendido não como uma restrição ao direito do particular, mas, contrariamente, como uma maior garantia, de forma que possa ajuizar o seu pedido indenizatório contra o Estado, prescindindo da investigação de culpa, ou, diretamente contra o agente culpado, provada sua culpa ou dolo, ou mesmo contra ambos.

Destarte, a decisão acerca de quem figurará no polo passivo da ação de reparação deve caber exclusivamente ao particular supostamente lesado, ao qual deve ser reconhecido o direito de direcionar o pleito judicial diretamente contra o agente público causador do dano.

Conforme ficou assentado no julgamento do Resp 1.325.862 – PR, “se por um lado o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios, os quais, como é de cursivo conhecimento, não são rigorosamente adimplidos em algumas unidades da federação”.

Neste ponto, entendemos pertinente e de alguma relevância para a posição que será adotada nesse trabalho, analisar em linhas gerais o referido regime de precatórios, forma singular de pagamento de débitos quando é o Estado que figura no polo passivo da obrigação.

Com efeito, quando uma sentença judicial reconhece a existência de uma obrigação de natureza pecuniária em favor de uma das partes (credor), este tem em suas mãos, via de regra, a possibilidade de lançar mão de mecanismos processuais para fazer valer o título que tem em seu poder, apropriando-se, caso necessário, via aparato estatal, de patrimônio do devedor em quantidade suficiente à satisfação de seu crédito. É o chamado cumprimento de sentença.

O Novo Código de Processo Civil, em seu art. 523, estabelece que em caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liquidação, o cumprimento definitivo da sentença dar-se-á a requerimento do exequente, sendo o executado intimado a pagar o débito no prazo de 15 (quinze) dias, acrescido das respectivas custas, se houver.

Se o devedor não efetua voluntariamente o pagamento dentro do prazo estipulado, sujeita-se à imposição de multa de dez por cento, bem como honorários advocatícios no mesmo percentual (§ 3º do art. 523 NCPC), além disso, determina o código no parágrafo seguinte que deverá ser expedido mandado de penhora e avaliação, seguindo-se os atos de expropriação. No dizer de Humberto Theodoro Júnior (2013, p. 337), a expropriação consiste:

 “[...] no ato de autoridade pública por meio do qual se retira da propriedade ou posse de alguém o bem necessário ou útil a uma função desempenhada em nome do interesse público. De ordinário, a desapropriação transfere o bem do domínio privado para o domínio público do próprio órgão expropriante. No processo executivo, a expropriação dá-se por via da alienação forçada do bem que se seleciona no patrimônio do devedor para servir de instrumento à satisfação do crédito exequendo”.

Eis em resumo, o procedimento que deverá ser observado quando a relação credor/devedor envolve apenas particulares. Situação absolutamente diversa ocorre quando o devedor é a Fazenda Pública, seja em nível federal, estadual ou municipal.

É que nesse caso, deve-se observância obrigatória ao art. 100 e respectivos parágrafos da Constituição Federal, segundo a qual os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas decorrentes de sentença judicial, serão realizados exclusivamente “na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos”.

Como é sabido, é característica dos bens públicos, quando não estejam desafetados, a sua impenhorabilidade, daí ser impossível recair sobre os mesmos qualquer medida de constrição judicial, o que resulta na impossibilidade de serem penhorados e levados à hasta pública para satisfação da obrigação.

Nesse caso, o pagamento do débito é feito através de requisição de pagamento (o chamado precatório) feita pelo Poder Judiciário, através do presidente do tribunal, ao Poder Executivo, para que a autoridade pública competente promova a sua inclusão na ordem cronológica prevista na constituição. O § 5º do art. 100 da Constituição Federal, declara ser obrigatória a inclusão, nos orçamentos das entidades de direito público, de verbas necessárias à quitação de débitos decorrentes de sentenças judiciais irrecorríveis.

Para passarmos desse ponto, cumpre por fim mencionar que a Constituição também previu um tratamento especial para os chamados “débitos de natureza alimentar”, entre os quais estão os decorrentes de indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado. Esses serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto os referidos no § 2º do art. 100 da Constituição Federal.

Em que pese, essa previsão de pagamento preferencial, é preciso lembrar que eles continuam sujeitos ao regime de precatórios, apenas formando lista distinta daquela concernente aos demais débitos. Nesse sentido, transcrevemos a Súmula 655 do Supremo Tribunal Federal:

“A exceção prevista no art. 100, 'caput', da Constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”.

Vê-se, pois, que em virtude dessa diferença de procedimento na quitação dos débitos da Fazenda Pública, nada mais coerente do que deixar à escolha do cidadão lesado a possibilidade de intentar a ação contra o Estado ou contra o agente público causador do dano, o qual poderá ter patrimônio suficiente para cumprir com a obrigação, desonerando a vítima da espera, muitas vezes longa, a que se submeteria na fila dos precatórios.

Lado outro, também é necessário observar que esse posicionamento, que amplia as possibilidades de satisfação do direito do administrado supostamente prejudicado, é mais consentâneo com toda a sistemática que envolve a interpretação constitucional, mormente no que se refere ao princípio da máxima efetividade.

Com efeito, segundo esse princípio, as normas constitucionais devem ser interpretadas de forma a atribuir-lhes o sentido que lhes empreste o mais algo grau de eficácia e efetividade possível, realizando ao máximo os comandos que nelas estão encerrados (COELHO, 1997).

Ainda mais, é importante destacar, no dizer de LENZA (2015, p. 172), “o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional ter a mais ampla efetividade social”. Ainda conforme o mencionado autor, que se vale dos ensinamentos de Canotilho, tal princípio tem o seu efeito sobre todas as normas constitucionais, embora esteja em sua origem ligado à tese das normas programáticas.

Não se pode admitir que a norma constitucional insculpida no art. 37, § 6º da Constituição Federal seja interpretada em detrimento do direito do particular lesado, servindo como escudo a proteger o agente público causador do dano. Também nesse ponto, não consentimos com o argumento do STF, que invoca em favor do agente público o princípio da impessoalidade, admitindo a responsabilização apenas perante a pessoa jurídica, a qual caberá em seguida o direito de regresso contra o culpado.

Ora, o princípio da impessoalidade, ao atribuir ao Estado a responsabilidade pelos atos que seus agentes pratiquem no exercício de suas funções, mais uma vez não está restringindo as possibilidades de reparação do administrado, ao contrário, está garantindo a este o direito de ver a sua pretensão acolhida, de forma objetiva, sem a necessidade de percorrer os intrincados caminhos que muitas vezes estão a permear a instrução processual no que se refere à prova da culpa ou do dolo.

Por fim, não se pode admitir que o Direito seja utilizado como instrumento para acobertar o agente público que no exercício da função administrativa venha a se conduzir de maneira desidiosa, negligente ou imprudente, provocando danos e lesando o direito de terceiros. Da mesma forma, não há porque aceitar a tese da dupla garantia construída pelo STF, uma vez que, se alguma garantia deve ser assegurada, essa seria em proveito do particular. Ao agente causador do suposto dano, caberá arcar com a reparação dos prejuízos, o que deve ocorrer de uma forma ou de outra, seja perante a entidade que integra, seja perante o particular que foi atingido.

6 – Conclusão

Conforme os argumentos expostos, foi possível perceber que o chamado ajuizamento “per saltum” de ação indenizatória diretamente contra o agente público culpado é tema ainda controvertido na jurisprudência do STF e do STJ.

Não obstante os argumentos que serviram de base à decisão de nossa Corte Constitucional, entendemos que a solução mais adequada para o caso é aquela emanada do STJ, uma vez que dá ao particular prejudicado o direito de escolher o alvo contra o qual irá mover sua pretensão, além de privilegiar o princípio da máxima efetividade, aplicando ao texto uma interpretação ampliativa dos direitos do particular lesado.

O presente trabalho, dadas as suas naturais limitações, não tem a intenção de esmiuçar todas as indagações que envolvem o tema em estudo. O que se pretende é incentivar a reflexão sobre o assunto, prestando uma singela contribuição para o enriquecimento das discussões, tendo a firme convicção de que diversidade de ideias e o contraditório são mesmo a razão de ser e de evolução da ciência do Direito.

Referências

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___. Acórdão no Recurso Extraordinário 105.157-4/SP. Relator(a): GALLOTTI, Octávio. Publicado no DJ de 18-10-1985. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=260882>. Acesso em 01 jul. 2016.

___. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Recurso Especial 1.325.862-PR. Relator: SALOMÃO, Luís Felipe. Publicado no DJe de 10/12/2013. Disponível em <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1261343&num_registro=201102527190&data=20131210&formato=PDF> Acesso em 01 jul. 2016.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2015.

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. Ed. - São Paulo: Atlas, 2014.

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MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php>. Acesso em: 10 jun. 2016.

THEODORO JR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 48. ed. rev. e amp., vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 2013.

 

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Sobre o autor
Camilo Silva

Técnico em Tributação e Arrecadação em Francisco Sá/MG, dirigente sindical, aprovado para o cargo de Técnico do Seguro Social do INSS (aguardando nomeação) e acadêmico do 8º período do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES

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