1. Introdução
Com o advento da Lei nº. 10.406. de 10.01.2002 o cônjuge sobrevivente passou a ter a possibilidade de concorrer com os outros herdeiros necessários, sejam descendentes ou ascendentes, além de continuar ocupando a terceira ordem de vocação hereditária. A inserção da concorrência do cônjuge sobrevivente, por meio da redação do art. 1829, gerou diversas interpretações sobre a regra disposta no Código Civil, já que limita a concorrência do cônjuge a depender do regime de casamento adotado e da existência de bens particulares deixados pelo inventariado.
Este trabalho visa esclarecer a herança do cônjuge sobrevivente, que não se confunde com a sua possível meação, por meio de análise da doutrina e jurisprudência aplicáveis ao tema com o intuito de responder a pergunta que deu origem à pesquisa realizada para elaboração deste trabalho: quando o cônjuge sobrevivente é considerado herdeiro?
2. Evolução Histórica
Até a idade média a mulher pertencia ao homem: seu marido, pai ou parentes. Portanto, considerando que a mulher sequer teria direito à propriedade até a baixa idade média, não existe a possibilidade de sucessão à mulher, ainda que na condição de descendente. Tampouco se falaria na possibilidade de sucessão do cônjuge, considerando a impossibilidade da mulher ser proprietária de bens.
Desde o Código de Urukagina de Lagash (2.350 AC) até o Código de Manu, constata-se que a mulher não teria qualquer direito à propriedade. Já com relação ao direito de herança, o primeiro a promover a inclusão de artigos regulando o direito sucessório, fora o Código de Lipst Ishtar (1870 AC).
O Código de Lipt Ishtar inovou conceituando o direito de herança e a condição de herdeiro, além daqueles filhos tidos fora do casamento, mas é de bom alvitre ressaltar que as mulheres eram consideradas propriedades ou absolutamente incapazes e a aplicabilidade do direito sucessório dava-se apenas com relação aos homens. Neste sentido, destaco o artigo 27 do Código de Lipt Ishtar:
Is a man´s wife has note born him children but a harlot (from) the public square has borne him children, he shall provide grain, iol and clothing for that harlot; the children which the harlot has borne him shall be his heirs, and as long as his wife lives the harlot shall not live in the house with the wife (A esposa de um homem não tenha lhe dado filhos, mas uma prostituta dá-lhe filhos, ele deve fornecer grãos, óleo e roupas para a prostituta; as crianças que a prostituta tiver com ele deverão ser seus herdeiros, e enquanto sua esposa viver a prostituta não deverá viver na casa com a esposa).
(Steele Fracis R. The Code of Lipit-Ishtar. Disponível em -https://aniba.uchicago.edu/books/steele_code_of_lipit-ishtar.pdf)
Mesmo que o marido viesse a falecer, naquela época não se admitia que a mulher herdasse. Havia a possibilidade de que a viúva administrasse, enquanto a viuvez perdurasse, os bens do marido. Estes eram transmitidos, de logo, aos filhos homens. A filha mulher teria direito apenas ao dote, não sendo capaz de herdar. Se a viúva viesse a ter novas núpcias seria dever de o novo marido administrar os bens pertencentes às “crianças” da prole anterior, até que estes pudessem administrá-los. Assim fora disposto no Código de Hamurabi (1700AC):
177º Se uma viúva, cujos filhos são ainda crianças, quer entrar em uma outra casa, ela deverá entrar sem ciência do juiz. Se ela entra em uma outra casa, o juiz deverá verificar a herança da casa do seu precedente marido. Depois se deverá confiar a casa do seu precedente marido ao segundo marido e à mulher mesma, em administração, e fazer lavrar um ato sobre isto. Eles deverão ter a casa em ordem e criar os filhos e não vender os utensílios domésticos. O comprador que compra os utensílios domésticos dos filhos da viúva perde seu dinheiro e os bens voltam de novo ao seu proprietário.
180º - Se um pai não faz um donativo a sua filha núbil ou meretriz e depois morre, ela deverá tomar dos bens paternos uma quota como filha e gozar dela enquanto viver. A sua herança pertence a seus irmãos.
(Código de Hamirabi. Disponível em - https://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm)
A possibilidade de a mulher ser proprietária de bens deu-se apenas na baixa idade média (séculos X à XV), quando se vislumbrou a necessidade de manutenção da terra na família. Assim, a mulher passou a deter o direito sucessório, ainda que não pudesse administrar o seu patrimônio.
No direito Romano, inicialmente, com a Lei das XII Tábuas, não era possível a sucessão entre os cônjuges, mas apenas entre os parentes mais próximos e, na falta deles, os bens eram distribuídos entre os gentis. Com o decorrer dos anos, diversas alterações legais foram realizadas, onde se instituiu o cônjuge como uma das pessoas capazes a suceder, ainda que se encontrasse na ultima classe sucessória. Existia a possibilidade de herança pela mulher podre e sem dote: quando o falecido não tivesse filhos, teria de direito a quarta parte da herança; já o falecido tivesse deixados filhos, com ela ou de casamentos antecedentes, esta teria parte da herança em usufruto.
As primeiras codificações modernas, consubstanciadas no Código Afonsino (1.454), Manuelino (1513) e Filipino (1595), trouxeram em seu bojo a possibilidade da sucessão entre cônjuges. Num primeiro momento, como se vislumbra no Código Afonsino, a sucessão do cônjuge sobrevivente somente dar-se-ia caso não houvesse outros parentes a suceder, conforme se extrai do Livro IV, Título LXXXXV.
Com o advento do Código Manuelino, o cônjuge sobrevivente passou a herdar quando não houvesse parentes até o décimo grau, norma que vigorou ainda com o advento do código Filipino, que sucedeu o código Manuelino.
Embora o cônjuge virago supérstite detivesse capacidade para suceder, até o século 18, a administração dos bens que pertenciam às mulheres era exercível apenas pelos homens, quando com a revolução industrial francesa e o iluminismo as mulheres passaram a pleitear o reconhecimento de cidadãs e, portanto, a administração destes bens ainda cabia ao homem.
No Brasil, muitos dos dispositivos das ordenações filipinas tiveram vigência até o Código Civil de 1916 (Lei nº. 3071/16), onde este, por meio do art. 1807 revogou as ordenações concernentes à matéria de direito civil regulada naquele Código.
Assim, com o advento da Lei nº. 3071/16, o cônjuge sobrevivente passou a deter o direito de herança quando não houvessem descendentes ou ascendentes, consoante dispunha o artigo 1603 do Código em questão.
A partir da Lei nº. 10.406/02, o cônjuge sobrevivente, em algumas ocasiões, passou a concorrer na herança, com os descendentes e ascendentes, além se manter na terceira ordem de sucessão hereditária.
3. Requisito de reconhecimento do cônjuge sobrevivente como herdeiro.
O artigo 1830 do Código Civil reza, que “somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
A aplicabilidade do art. 1830. tem grande divergência doutrinária: a questão versa sobre a continuidade do instituto da separação judicial e da culpa no ordenamento jurídico brasileiro após a emenda constitucional de nº. 66/2010, que dispõe:
Art. 1º O § 6º do art. 226. da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 226. ........................................................................................
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
Alguns doutrinadores, como Maria Berenice Dias, sequer entendem a possibilidade de aplicação da separação judicial, do instituto da culpa ou da aplicação do art. 1.830. do Código Civil, quanto à herança do cônjuge separado judicialmente ou de fato:
Em face da Emenda Constitucional 66/2010, que deu nova redação ao § 6º do art. 226. da Constituição Federal, a única forma de dissolver o casamento é o divórcio. Em face disso desapareceu o instituto da separação e com ele a necessidade de identificação de causas ou a exigência do decurso de prazos para a concessão do divórcio. Eliminada a culpa para a dissolução do casamento, também caíram por terra todas as referências legais à culpa em sede do direito sucessório.
(Dias, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 3. Ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. P. 62. Grifei)
Para essa parte da doutrina, o artigo 1830 deveria ser interpretado apenas no sentido de que o cônjuge divorciado, separado judicialmente ou de fato, independentemente de culpa e por qualquer prazo, não teria direito à herança1. A desnecessidade de apuração da culpa dar-se-ia sob o argumento de que esta norteava os casos de separação judicial (art. 1572. do Código Civil) e, não havendo mais a aplicabilidade da separação judicial, tampouco haveria a necessidade de apuração de culpa.
Neste sentido, a separação de fato, por qualquer prazo, de logo ensejaria a possibilidade de divórcio e, portanto, a parte que se refere o art. 1830. sobre a separação de fato não deveria ser aplicada.
Outra parte da doutrina entende que a EC nº. 66/2010 trouxe a possibilidade de aplicação de divórcio sem a extinção da separação judicial ou da aplicabilidade do instituto da culpa. Fundamenta o entendimento na redação do art. 226, parágrafo 6º, da Constituição Federal, que traz o verbo “pode” quando se refere à extinção do casamento por meio do divórcio, o que daria margem a aplicabilidade da separação judicial e, consequentemente, do instituto da culpa.
A jurisprudência, por sua vez, vem firmando entendimento que o art. 1830. deve ser aplicado e o instituto da culpa deve ser apreciado em ação própria:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE ALVARÁ PARA LIBERAÇÃO DE VALORES DEPOSITADOS EM CONTA CORRENTE AJUIZADO PELOS FILHOS DO CORRENTISTA FALECIDO. INEXISTÊNCIA DE OUTROS BENS A INVENTARIAR. HABILITAÇÃO SUPERVENIENTE DA CÔNJUGE SOBREVIVENTE. FILHOS QUE IMPUGNAM A QUALIDADE DE HERDEIRA DA EX-ESPOSA AO ARGUMENTO DE SEPARAÇÃO DE FATO DO CASAL HÁ MAIS DE DOIS ANOS. DESCISÃO INTERLOCUTÓRIA AFASTANDO A EX-CÔNJUGE DA SUCESSÃO. RECONHECIMENTO DA INCOMUNICABILIDADE DOS BENS EM FACE DA PACTUAÇÃO ANTENUPCIAL DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS. RECURSO DA CÔNJUGE SOBREVIVENTE. ALEGAÇÃO DE POSSIBILIDADE DA CÔNJUGE CONCORRER COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS. SUBSISTÊNCIA. EXEGESE DO INCISO I, DO ARTIGO 1.829, DO CÓDIGO CIVIL. EXCEÇÃO À CAPACIDADE SUCESSÓRIA RESTRITA AOS CASAMENTOS ESTABELECIDOS SOB O REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL E SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. UNIÃO EM FOCO ESTABELECIDA SOB O REGIME CONVENCIONAL DE SEPARAÇÃO PATRIMONIAL. EVIDENCIAS DA SEPARAÇÃO DE FATO DO CASAL POR MAIS DE DOIS ANOS. IRRELEVÂNCIA. POSSIBILIDADE LEGAL DE MANUTENÇÃO DA CONDIÇÃO DE HERDEIRA, COMPROVADA A INEXISTÊNCIA DE CULPA PELA SEPARAÇÃO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE ANÁLISE DA CONTROVÉRSIA NO BOJO DOS AUTOS DO INVENTÁRIO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. QUESTÃO DE ALTA INDAGAÇÃO. DECISÃO NULA. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 984, 1.000, PARÁGRAFO ÚNICO, E 1.001 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DECISÃO NULA. REMESSA DAS PARTES AO CONTENCIOSO ORDINÁRIO. MANUTENÇÃO DA RESERVA CAUTELAR DO QUINHÃO SUB JUDICE NA FORMA COMO DEFERIDA EM ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL. RECURSO PROVIDO.
(TJ-SC - AI: 246552 SC 2008.024655-2, Relator: Denise Volpato, Data de Julgamento: 24/05/2011, Primeira Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: Agravo de Instrumento n. , de Tubarão)
Portanto, consoante se extrai dos entendimentos firmados na jurisprudência, o artigo 1830 vêm sendo aplicado na sua integralidade.
Desta forma, a condição de herdeiro (do cônjuge), na modalidade de concorrente dos descendentes ou ascendentes, prescinde do reconhecimento formal do casamento no momento do óbito, não podendo haver separação judicial ou divórcio. Porém, é cabível a concorrência do cônjuge quando houver separação de fato inferior à 2 (dois) anos ou, no caso de separação de fato há mais de 2 (dois) anos, que esta tenha se dado sem culpa do cônjuge sobrevivente, inteligência do art. 1830. do Código Civil.
4. A concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e ascendentes do falecido.
A sucessão hereditária no Brasil tem a sua ordem de vocação disposta no art. 1.829. do Código Civil, Lei nº. 10.640/02, que reza:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
Atenha-se que, para a concorrência com os descendentes, o legislador optou por delimitar a concorrência em algumas ocasiões, a depender do regime de bens adotado no casamento e da existência de bens particulares, quando os cônjuges adotaram o regime da comunhão parcial. Já com relação à concorrência com os ascendentes do falecido, o legislador não impunha restrições.
Desta forma, é possível, desde já, afirmar que quando o cônjuge sobrevivente concorrer apenas com ascendentes, independentemente do regime de casamento adotado, ele será herdeiro do(a) falecido(a).
Superada a concorrência do cônjuge com os ascendentes, passamos a esmiuçar a concorrência com os descendentes do falecido. Para isto, deveremos destrinchar o artigo 1829, I, do Código Civil. Num primeiro momento o artigo traz que o cônjuge, via de regra, concorre com os descendentes. Até então, a doutrina é pacífica neste entendimento. A grande divergência se dá nas exceções.
Particionando o inciso primeiro deste artigo, temos que a primeira exceção, ou seja, o cônjuge sobrevivente não será herdeiro: I - quando casado com o falecido sob o regime da comunhão universal. Assim, se o cônjuge sobrevivente era casado com o inventariado sob o regime da comunhão universal ele não tem direito à herança. Cabe apenas a este o direito de meação sob os bens, na forma do art. 1667. à 1671 do Código Civil. Quanto a esta exceção não há maiores divergências.
A segunda exceção – o cônjuge sobrevivente também não será herdeiro – quando for casado com o falecido sob o regime da separação obrigatória de bens. A divergência doutrinária quanto a esta exceção incide sobre o termo “regime da separação obrigatória de bens”. O Código Civil estabelece o regime da “separação de bens” e o termo “obrigatória” gera diferentes interpretações.
Para a primeira corrente, doutrina majoritária, a separação obrigatória seria aquela estabelecida no art. 1641. do Código Civil:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
Assim, apenas não seria herdeiro o cônjuge que tivesse casado com o falecido com a separação de bens estipulada no art. 1641. do Código Civil. Neste sentido, o regime da separação de bens seria um regime de separação legal – que deriva da lei – e este regime se subdivide em duas espécies: a da separação obrigatória – aquela modalidade em que a Lei obriga a adoção deste regime, e a separação convencional, onde este regime é escolhido pelos nubentes. Com este entendimento, a maior parte da doutrina: cito, como exemplo, Maria Berenice Dias, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira, Silvio de Salvo Venosa e Guilherme Calmon Nogueira da Gama.
A segunda corrente entende que a “separação obrigatória” é gênero e a “separação legal” e a “separação convencional” são suas espécies. Neste sentido, decisão do STJ, tendo como relatora a Ministra Nancy Andrighi:
Direito civil. Família e Sucessões. Recurso especial. Inventário e partilha. Cônjuge sobrevivente casado pelo regime de separação convencional de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Interpretação do art. 1.829, I, do CC/02. Direito de concorrência hereditária com descendentes do falecido. Não ocorrência. - Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica. (...) O regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância. - Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. - Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, deve prevalecer a interpretação que conjuga e torna complementares os citados dispositivos. (...) - A ampla liberdade advinda da possibilidade de pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, prevista pelo Direito Patrimonial de Família, não pode ser toldada pela imposição fleumática do Direito das Sucessões, porque o fenômeno sucessório “traduz a continuação da personalidade do morto pela projeção jurídica dos arranjos patrimoniais feitos em vida”. - Trata-se, pois, de um ato de liberdade conjuntamente exercido, ao qual o fenômeno sucessório não pode estabelecer limitações. (...) - O princípio da exclusividade, que rege a vida do casal e veda a interferência de terceiros ou do próprio Estado nas opções feitas licitamente quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar, robustece a única interpretação viável do art. 1.829, inc. I, do CC/02, em consonância com o art. 1.687. do mesmo código, que assegura os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido, bem como preserva a autonomia privada guindada pela eticidade. Recurso especial provido. Pedido cautelar incidental julgado prejudicado.
(STJ , Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 01/12/2009, TERCEIRA TURMA)
Assim, para essa corrente, se o falecido era casado sob o regime da separação de bens, seja ela decorrente de aplicação do art. 1671. do Código Civil ou da separação convencional, o cônjuge sobrevivente não seria herdeiro.
Este entendimento é minoritário e vem perdendo força. Podemos perceber o acolhimento da doutrina majoritária nas ultimas decisões do STJ, consoante inserido no REsp 2013/0335003-3, que tem como relator o Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, da terceira Turma do STJ, cujo julgamento se deu em 2014 e aquele inserido no REsp 1.382.170-SP, que tem como relatores os Ministros Moura Ribeiro e João Otávio de Noronha, julgado em 22 de abril de 2015.
No caso de ser reconhecido o direito hereditário ao cônjuge, neste sentido, sendo o cônjuge casado no regime da separação convencional de bens, a jurisprudência recente, já citada, vem seguindo o entendimento que a concorrência dar-se-á sobre os bens particulares.
A terceira e última exceção, se dá quando o inventariado, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, deixa ou não bens particulares. Conforme interpretação literal do artigo, o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal não seria herdeiro quando o falecido não deixou bens particulares.
Entretanto há uma grande divergência doutrinária a respeito da intenção do legislador: três principais correntes se destacam ao interpretar a concorrência do cônjuge sobrevivente casado sob o regime da comunhão parcial de bens.
A primeira corrente defende que, se o inventariado deixou bens particulares, o cônjuge sobrevivente concorre com os demais herdeiros sobre todos os bens do acervo hereditário, sejam eles bens particulares ou comuns. Com este entendimento, Maria Helena Diniz afirma que o entendimento não poderia ser diferente, uma vez que “a herança é indivisível, deferindo-se como um todo unitário”2.
A segunda corrente, a exemplo de Maria Berenice Dias que, citando julgado do STJ, afirma que: assegura-se “ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais são partilhados apenas entre os descendentes”3.
A terceira corrente é consubstanciada no entendimento inserto no enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil, que reza:
Enunciado 270
Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.
Desta, forma, percebe-se que esta corrente preferiu seguir a interpretação literal do art. 1829, restringindo a concorrência do cônjuge sobrevivente casado sob o regime da comunhão parcial de bens aos bens particulares, quando estes existirem.
Visando unificar o entendimento jurisprudencial sobre este tema que, até então, era bastante divergente, o STJ proferiu acórdão adotando esta última corrente, conforme se extrai do REsp 1368123 SP 2012-0103103-3:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535. DO CPC. INEXISTÊNCIA. 1. Não se constata violação ao art. 535. do Código de Processo Civil quando a Corte de origem dirime, fundamentadamente, todas as questões que lhe foram submetidas. Havendo manifestação expressa acerca dos temas necessários à integral solução da lide, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte, fica afastada qualquer omissão, contradição ou obscuridade. 2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus. 4. Recurso especial provido.
(STJ - REsp: 1368123 SP 2012/0103103-3, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 22/04/2015, SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 08/06/2015)
A partir deste entendimento, entende-se, então, que o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão parcial, não será herdeiro quando não existirem bens particulares deixados pelo inventariado.