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Visão geral do Projeto de Código Civil

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01/03/2000 às 00:00
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7. Inovações imprescindíveis

Já fiz referência ao caráter excessivamente individualista do Código atual, mas, se procuramos corrigir sua vinculação aos valores de uma superada sociedade agrária, nem por isso deixamos de salvaguardar, sempre que possível, como já salientado, as suas disposições ainda válidas, especialmente com a conservação da Parte Geral, a qual foi mantida de acordo com a grande lição que nos vem de Teixeira de Freitas.

Houve, porém, necessidade de atender às novas contribuições da civilística contemporânea no que se refere, por exemplo, à disciplina dos negócios jurídicos, à necessidade de regrar unitariamente as obrigações civis e as mercantis, com mais precisa distinção entre associação civil e sociedade empresária, cuidando de várias novas figuras contratuais que vieram enriquecer o Direito das Obrigações, sem se deixar de dar a devida atenção à preservação do equilíbrio econômico do contrato, nos casos de onerosidade excessiva para uma das partes, bem como às cautelas que devem presidir os contratos de adesão para salvaguardar os interesses do consumidor.

Além disso, foram estabelecidas as normas gerais dos títulos de crédito, mantendo-se a legislação especial para disciplina de suas diversas figuras; assim como fixadas regras mais adequadas em matéria de responsabilidade civil, que o Código atual ainda subordina à idéia de culpa, sem reconhecer plena e claramente os casos em que a responsabilidade deve ser objetiva, atendendo-se às conseqüências inerentes à natureza e à estrutura dos atos e negócios jurídicos como tais.

É difícil enumerar todas as inovações trazidas pelo projeto, desde uma rigorosa separação entre prescrição e decadência, aquela disciplinada na Parte Geral, e esta prevista em cada caso ocorrente, - em conexão com o artigo que lhe diz respeito. Desse modo, fica superada de vez a interminável dúvida sobre se determinada disposição é de prescrição ou de caducidade. Por outro lado, merece especial menção a distinção fundamental entre Direito pessoal e Direito real de Família, ou, então, as disposições sobre condomínio edilício (demoninação a princípio criticada, e que já é de uso corrente) ou a restauração do antigo direito de superfície sob novas vestes, o que demonstra que não nos dominou o desejo de só oferecer novidades.

Cumpre também salientar que o projeto não abrange matérias que envolvam questões que vão além dos lindes jurídicos, como é o caso das sociedades por ações, objeto de lei especial. Por outro lado, é próprio de um código albergar somente questões que se revistam de certa estabilidade, de certa perspectiva de duração, sendo incompatível com novidades ainda pendentes de maiores estudos, abrangendo problemas de ordem científica, como é o caso já lembrado, da fecundação artificial. O projeto limita-se, por conseguinte, àquilo que é da esfera civil, deixando para a legislação especial a disciplina de assuntos que dela extrapolem, como é o caso da "incorporação de condomínios edilícios".

Eis ai algumas diretrizes de um projeto que, repito, não mais nos pertence, pois ele foi publicado por três vezes, recebendo sempre sugestões que, após o devido estudo, deram lugar a alterações que, progressivamente vieram aperfeiçoando e atualizando nossa proposta inicial, até as últimas mudanças feitas no Senado. É uma tolice, por conseguinte, afirmar-se que o projeto estaria superado por ter sido proposto à Câmara dos Deputados em 1975... O curioso é que quem apoda o projeto de velhice, pleiteia a manutenção do atual Código Civil que é de 1916!...


8. Críticas apressadas ou inoportunas

Outra crítica apressada e absolutamente sem sentido diz respeito ao fato de o código não ter cuidado da união estável de pessoas do mesmo sexo. Essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional, porque a Constituição criou a união estável entre um homem e uma mulher. De maneira que, para cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável dos homossexuais, em primeiro lugar seria preciso mudar a Constituição... Não era a nossa tarefa e muito menos a do Senado.

Isto apenas para mostrar como certas críticas são fruto apenas da ignorância dos textos constitucionais vigentes. O código só abrange aquilo que já está, de certa maneira, consolidado à luz da experiência. É o motivo pelo qual concordamos com aqueles que, em determinado momento, entenderam que não deveria fazer parte do código a Lei da Sociedade por Ações. Não apenas em razão das mutações a que ela está continuamente sujeita, como ainda agora o demonstra a recente lei que está dando campo para tantas discussões, mas também porque a lei que rege as sociedades anônimas está diretamente vinculada ao mercado de capitais, o que transcende os lindes da Lei Civil.

O que não se compreende é que, tendo o Senado Federal aprovado o projeto com emendas, só podendo estas ser objeto de apreciação pela Câmara dos Deputados, certos críticos, que se mantiveram todos estes anos calados, vêm, agora, apontar pretensos erros ou omissões, que, se porventura existentes, somente poderiam ser objeto de leis autônomas ou posteriores ao novo Código Civil. Isto tudo apenas demonstra que não se tem em vista aperfeiçoar a legislação do País, mas tão somente mostrar tardia e irrelevante cuidado, sob o qual não raro se ocultam preconceitos e prevenções.

Por outro lado, críticas surgiram em flagrante conflito com o texto da proposta, evidenciando, assim, que nem sequer houve preocupação de leitura com a atenção e a serenidade que exigem os estudos jurídicos, servindo o projeto apenas de pretexto para promoção pessoal.

Quanto à alegação de que o princípio de "socialidade" acaba gerando a massificação e sacrificando a individualidade, componente essencial de um Código Civil, trata-se de tolice tão evidente que não merece nem comporta discussão.

Esclarecidas essas questões, não é demais recordar que os assuntos fundamentais da nova codificação foram por mim explanados, assim como pelos demais co-autores do projeto, nas respectivas exposições de motivos. No que me toca, permito-me lembrar que publiquei, em 1986, através da Editora Saraiva, a primeira edição do presente livro, onde os interessados puderam encontrar as diretrizes fundamentais a que estou fazendo referência. A mesma coisa se poderá dizer com relação ao ilustre ministro Moreira Alves, que, na mesma época, tratou também do projeto, em volume pertinente à Parte Geral. De modo que já há bibliografia auxiliar, além das publicações feitas pelo Congresso Nacional, que são parte componente essencial do projeto, sobretudo depois que ele foi aprovado pela Câmara dos Deputados e em seguida pelo Senado Federal, com douto e minucioso parecer de autoria do senador Josaphat Marinho, incluído na presente edição.


9. A tramitação no Senado Federal

No Senado logo nos defrontamos com várias dificuldades. É que a obra de codificação coincidiu com o retorno do País à ordem constitucional e, por conseguinte, com a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte, que era apresentada, consoante já salientei, como uma fonte de possíveis alterações profundas que iriam se refletir sobre o projeto. Isto teve como conseqüência estancar o processo de sua apreciação, até que fosse feita a nova Constituição. A situação não impediu, no entanto, que no Senado fossem apresentadas, no prazo regimental, 366 emendas, cuja apreciação iria demandar mais de doze anos.

Isto não obstante, o trabalho no Senado é merecedor de justa admiração, merecendo referência especial a decisiva resolução do Relator Geral, Senador Josaphat Marinho, de chamar a si a responsabilidade de apreciação das emendas, submetendo, a posteriori, as suas propostas à consideração dos Relatores Especiais.

Vê, assim, o leitor, que o projeto não é fruto de improvisação e nem tampouco representa um trabalho desde logo solidificado e definitivo. Mas, ao contrário, veio sendo corrigido e completado ao longo do tempo, de tal maneira que novas emendas e novas sugestões foram sempre bem recebidas e objeto de nossa análise. Apesar da morte da maior parte dos membros da comissão, o ministro Moreira Alves e eu, como remanescentes mais ativos desta comissão, continuamos a dar nossa colaboração, emitindo pareceres e formulando novas propostas no Senado Federal, que serviam de base à proposta finalmente apreciada pela Câmara Alta, após o parecer do mencionado Relator Geral.


10. O novo Direito de Família e o de Sucessões

Já havíamos dado grande passo à frente no sentido da igualdade dos cônjuges. Isso ficou ainda mais acentuado na Constituição, sobretudo no que se refere à situação dos filhos. Porquanto a Carta Política de 88 eliminou toda e qualquer diferença entre filhos legítimos, naturais, adulterinos, espúrios ou adotivos.

Essa opção constitucional implicou evidentemente reexame das emendas oferecidas por Nelson Carneiro, de tal maneira que foi feita plena atualização da matéria em consonância com as novas diretrizes da Carta Magna vigente, também no que se refere à "união estável", a nova entidade familiar que surge ao lado do matrimônio civil, corrigindo-se o erro da legislação em vigor que a confunde com o concubinato.

Note-se que, na Parte Geral, atende-se, outrossim, às circunstâncias da vida contemporânea, adotando-se novos critérios para estabelecer a maioridade, que baixou de 21 para 18 anos. É sabido que, em virtude da Informática e da expansão cultural, as pessoas amadurecem mais cedo do que antes. Essa mudança fundamental refletiu-se também no campo da responsabilidade relativa, que passou a ser de 16 anos, correspondendo, aliás, à situação atual do adolescente de 16 anos, que é até eleitor em todos os planos da política nacional desde o Município até a União.

Os exemplos ora dados já são mais do que suficientes para demonstrar que houve grande preocupação no sentido de aproveitar as emendas do Senado para a atualização do projeto. E isto se repetiu nos poderes conferidos aos cônjuges, em absoluta igualdade, razão pela qual, como já foi dito, propus, e foi aceito pelo senador Josaphat Marinho, que, em vez de pátrio poder, se falasse em "poder familiar", que é uma expressão mais justa e adequada, porquanto os pais exercem esse poder em função dos interesses do casal e da prole.

No que se refere à igualdade dos cônjuges, é preciso atentar ao fato de que houve alteração radical no tocante ao regime de bens, sendo desnecessário recordar que anteriormente prevalecia o regime da comunhão universal, de tal maneira que cada cônjuge era meeiro, não havendo razão alguma para ser herdeiro. Tendo já a metade do patrimônio, ficava excluída a idéia de herança. Mas, desde o no momento em que passamos do regime da comunhão universal para o regime parcial de bens com comunhão de aqüestos, a situação mudou completamente. Seria injusto que o cônjuge somente participasse daquilo que é produto comum do trabalho, quando outros bens podem vir a integrar o patrimônio e ser objeto de sucessão. Nesse caso, o cônjuge, quando casado no regime da separação parcial de bens (note-se) concorre com os descendentes e com os ascendentes até a quarta parte da herança. De maneira que são duas as razões que justificam esse entendimento: de um lado, uma razão de ordem jurídica, que é a mudança do regime de bens do casamento; e a outra, a absoluta equiparação do homem e da mulher, pois a grande beneficiada com tal dispositivo, é, no fundo, mais a mulher do que o homem.

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Por outro lado, em matéria sucessória, não é mais lícito ao testador vincular bens da legítima a seu bel prazer. Ele deve explicitar o motivo que o leva a estabelecer a cláusula limitadora do exercício de direitos pelo seu herdeiro, podendo o juiz, em certas circunstâncias, apreciar a matéria para verificar se procede a justa causa invocada.


11. Adequação a exigências técnicas

Há, além disso, necessidade de levar em conta as alterações profundas ocorridas no plano técnico e operacional. Por essas razões, por exemplo, toda a matéria de escrituração empresarial passa por uma transformação fundamental para que tudo possa ser feito através de processos eletrônicos, superando-se os entraves formalistas em matéria de contabilidade e gestão da empresa.

O mesmo espírito pragmático preside a outros aspectos da vida empresarial, notadamente no que se refere às questões disciplinadas na nova parte especial inserida no projeto, relacionada ao Direito de Empresa, empregada a palavra "empresa" no sentido de atividade desenvolvida pelos indivíduos ou pelas sociedades a fim de promover a produção e a circulação das riquezas, dos bens e dos serviços.

É esse objetivo fundamental que rege os diversos tipos de sociedades empresariais, não sendo demais realçar que, consoante terminologia adotada pelo projeto, as sociedades são sempre de natureza empresarial, enquanto que as associações são sempre de natureza civil. Parece uma distinção de somenos, mas de grandes consequências práticas, porquanto cada uma delas é governada por princípios distintos.

Uma exigência básica de operabilidade norteia, portanto, toda a matéria de Direito de Empresa, adequando-o aos imperativos da técnica contemporânea no campo econômico-financeiro, sendo estabelecidos preceitos que atendem tanto à livre iniciativa como aos interesses do consumidor..


12. Outras atualizações

É inegável a urgente necessidade de se atualizar o código atual em várias outras questões. Sendo, por exemplo, as sociedades por ações estruturas complexas que exigem amplos e custosos quadros funcionais, a disciplina normativa das cotas de responsabilidade limitada passou a ter uma importância cada vez mais acentuada. De início, as sociedades por cotas eram relativas a pequenas empresas e ainda exercem essa função, mas, hoje em dia, esse tipo de sociedade abrange um número imenso de agremiações, até chegarmos às "holdings" ou controladoras das grandes estruturas empresariais. Na verdade vemos sociedades anônimas que se entrelaçam para formar complexos econômicos sujeitos a uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada.

Por todas essas razões foi dada uma nova estrutura, bem mais ampla e diversificada, ao instituto da sociedade por cotas de responsabilidade limitada, sendo certo que a lei especial em vigor está completamente ultrapassada, achando-se a matéria regida mais segundo princípios de doutrina e à luz de decisões jurisprudenciais. A propósito desse assunto, para mostrar o cuidado que tivemos em atender à Constituição, lembro que a lei atual sobre sociedades por cotas de responsabilidade limitada permite que se expulse um sócio que esteja causando danos à empresa, bastando para tanto mera decisão majoritária. Fui dos primeiros juristas a exigir que se respeitasse o princípio de justa causa, entendendo que a faculdade de expulsar o sócio nocivo devia estar prevista no contrato, sem o que haveria mero predomínio da maioria. Ora, a Constituição atual declara no artigo 5° que ninguém pode ser privado de sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal e sem o devido contraditório. Em razão desses dois princípios constitucionais, mantivemos a possibilidade da eliminação do sócio prejudicial, que esteja causando dano à sociedade, locupletando-se às vezes à custa do patrimônio social, mas lhe asseguramos, por outro lado, o direito de defesa, de maneira que o contraditório se estabeleça no seio da sociedade e depois possa continuar por vias judiciais. Está-se vendo, portanto, a ligação íntima que se procurou estabelecer entre as estruturas constitucionais, de um lado, e aquilo que chamamos de legislação infraconstitucional, na qual o Código Civil se situa como o ordenamento fundamental.

Outra inovação que não pode ser olvidada diz respeito ao testamento particular, figura jurídica praticamente inexistente, pois as exigências e formalidades estabelecidas no Código Civil atual para a sua validade é de tal ordem que praticamente não há quem dele faça uso, com grande dano para os indivíduos e a sociedade. Pelo projeto, ao contrário, o testamento particular poderá ser redigido a mão pelo próprio testador, ou mediante qualquer processo de digitação, bastando que ele seja lido e assinado perante três testemunhas que também o subscreverão, conforme proposta que enderecei ao Relator Geral no Senado.

Como se vê, foi nosso constante empenho, fixar normas jurídicas de maneira simples e segura, visando-se, a um só tempo, o bem individual e o bem comum.

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Sobre o autor
Miguel Reale

jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, presidente da comissão elaboradora do Código Civil de 2002 (in memoriam)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1218, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/509. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Texto atualizado a partir de publicação original na Revista dos Tribunais, n. 752, jun. 1998, p. 22-30. Reproduzido a partir do site do autor, sob sua permissão.

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