Dos crimes contra o estado de filiação

03/08/2016 às 00:30

Resumo:


  • Os crimes contra o estado de filiação protegem a identidade familiar e a fé pública, podendo afetar tanto o Estado quanto indivíduos, como recém-nascidos e herdeiros.

  • É essencial salvaguardar a personalidade e identidade derivadas do estado civil, e considerar as circunstâncias fáticas que motivam a prática desses delitos.

  • A aplicação da norma penal deve ser pautada pela adequação e necessidade, respeitando os princípios de proporcionalidade e razoabilidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisar os crimes contra o estado de filiação, tendo em vista as instabilidades sociais e jurídicas que acarretam.

Resumo

Analisar os crimes contra o estado de filiação. A proteção dos tipos penais localizados no capítulo dos crimes contra o estado de filiação destina-se ao estado de filiação e a fé pública, uma vez que a prática desses delitos geram instabilidades sociais e jurídicas. Tais crimes podem atingir tanto o Estado quanto as pessoas consideradas individualmente, como recém-nascidos e herdeiros, pois os efeitos podem ser múltiplos. A personalidade e identidade derivadas do estado civil devem ser resguardadas, assim como a mitigação de instabilidades. Deve se ter em mente, entretanto, a consideração das circunstâncias de fato que norteiam o cometimento do crime, como a falsa compreensão da realidade, a fim de que a norma seja aplicada seguindo a adequação e necessidade.

Palavras-chave: Crimes. Estado de filiação. Fé pública. Instabilidades. Circunstâncias.

 

CRIMES AGAINST THE STATE OF MEMBERSHIP

Abstract

Analyze the crimes against the state membership. The protection of criminal types found in the chapter on crimes against the state membership is intended to membership status and public faith, since such offenses generate instabilities social and legal. Such crimes can achieve both the State and the people taken individually, as newborns and heirs, as the effects can be multiple. The personality and identity derived from marital status must be safeguarded, as well as the mitigation of instabilities. It should be borne in mind, however, the consideration of factual circumstances that guide the commission of the crime, as the false understanding of reality, so that the standard be applied following the appropriateness and necessity.

Keywords: Crimes. Membership status. Public faith. Instabilities. Circumstances.

 

1.    INTRODUÇÃO

Como o próprio nome do capítulo já diz, os crimes contra o estado de filiação dizem respeito a uma conduta que atinge o estado da pessoa, particularmente quanto à sua identidade familiar. Tais crimes, se analisados amplamente, repercutem também na entidade familiar, causando desequilíbrios que ensejam a intervenção do direito penal, uma vez que a família é categoria constitucional detentora de relevante importância.

Cuida-se de delitos que também atingem o Estado, pois colocam em risco a fé que se presume possuírem os documentos públicos, pois um meio para que os crimes em tela sejam configurados é a declaração de informações falsas aos órgãos públicos. Esses crimes, portanto, devem ser analisados e diferenciados entre si, a fim de se extraírem os aspectos mais importantes de cada um deles.

2.    DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DE FILIAÇÃO

 

2.1  Registro de nascimento inexistente

O crime de registro de nascimento inexistente está previsto no art. 241 do Código Penal, que diz: Promover no registro civil a inscrição de nascimento inexistente. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Analisando o tipo penal, percebe-se que há uma conduta (promover) destinada à formalização de um fato (inscrição de nascimento) que na verdade não existe, ou seja, o agente leva a efeito, no registro civil, a inscrição de um nascimento inexistente.

Para efeitos de configuração do crime, a elementar “nascimento inexistente” se verifica em algumas hipóteses: quando se diz nascido filho de mulher que não estava grávida; ou quando se cuida de natimorto. Não existe, na situação desse crime, um recém-nascido, pois como a elementar indica, o nascimento é inexistente. Não se percebe, de início, um indivíduo que será prejudicado, de forma individualizada, mas nada impede que determinadas pessoas possam vir a ser prejudicadas. Como o status de família implica em alguns efeitos jurídicos, pode ser que eles reflitam negativamente na esfera de alguma pessoa. Assim, não é elementar do crime o efetivo prejuízo de alguém diante do falso registro, mas essa consequência, outrossim, pode advir como um efeito anexo e não como efeito intrínseco ao crime.

No que diz respeito à subjetividade ativa e passiva, o crime pode ser praticado por qualquer pessoa, enquanto o Estado e qualquer pessoa que seja prejudicada pela prática do crime são considerados sujeitos passivos do delito. Como se disse, o Estado também é atingindo pelo crime, pelo fato de que a fé pública fica fragilizada e desacreditada. Muitas vezes, para que o agente consiga levar a efeito a prática do crime de registro de nascimento inexistente, ele falsifica documentos que expressam um falso nascimento ou, então, que individualizam uma pessoa que sequer nasceu. Nesse sentido, Greco (2013, p. 682) afirma que “o crime-meio (falsidade ideológica) é absorvido pelo delito-fim (registro de nascimento inexistente)”. Segundo Bitencourt (2012, p. 546) “a essência do crime reside na falsidade de documento público, agravada pelo fato de atingir o estado de filiação”.

O delito se consuma no momento em que é levada a efeito a inscrição do nascimento inexistente no Cartório de Registro Civil. A regra da tentativa pode ser aplicada ao crime em questão, por se tratar de delito plurissubsistente, cuja interrupção pode se dar por fatos alheios à vontade do agente.

Elemento subjetivo é o dolo, não havendo previsão para a modalidade culposa. Por essa razão, o agente que atua com uma falsa compreensão da realidade (erro de tipo) não é punido.

2.2  Parto suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil do recém-nascido

O art. 242 prevê o crime de parto suposto e supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido: Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. No crime do art. 242 não se visualiza apenas uma conduta, mas sim vários comportamentos abrangidos pelo tipo penal que igualmente configuram a prática do crime.

O pressuposto de fato desse crime de é a existência uma criança que, efetivamente, nasceu e possui personalidade jurídica. No crime anterior, o nascimento era inexistente, aqui o nascimento realmente aconteceu. Por isso mesmo, nesse crime vislumbra-se maior carga de gravidade incidente sobre pessoa determinada, como o recém-nascido, cuja identidade é atingida.

Na primeira modalidade (dar parto alheio como próprio), a mulher atribui a si a maternidade de filho alheio através, por exemplo, de simulação do parto. Segundo Noronha (288), nesse caso, os herdeiros também podem ser considerados sujeitos passivos (além do próprios recém-nascido e outras pessoas prejudicadas), pois a introdução dessa criança causará consequências quanto ao direito sucessório, uma vez que a herança será indevidamente dividida com aquela criança. Através da própria conduta, infere-se que apenas a mulher poderá figurar como sujeito ativo do crime. A consumação, por sua vez, ocorre quando “criada a situação duradoura que realmente implique alteração do status familie da criança” (PRADO, 2010, p. 362).

Como bem lembrado por Bitencourt (2012, p. 553):

Dar parto próprio como alheio não corresponde à conduta descrita no art. 242, isto é, mulher que leva a registro o próprio filho como sendo de outra não incorre nas sanções do tipo em exame, podendo, é verdade, responder pelo crime de falsidade documental, previsto no art. 299.

Na segunda modalidade (registrar como seu o filho de outrem) há um ato de formalização perante o registro civil, que é o de registrar como filho criança que, na verdade, é filho de outrem. Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime, podendo ser apenas o homem, apenas a mulher ou o casal, haja vista que muitas vezes determinado casal assume a responsabilidade por criança cujos verdadeiros pais não possuem boas condições financeiras (existe, por isso, o tipo derivado do art. 242, que reconhece e prestigia a nobreza). Pode ser sujeito passivo do crime os herdeiros, como analisado na modalidade anterior, o recém-nascido e outras pessoas eventualmente lesadas. Há consumação, nessa modalidade, “com o efetivo registro de filho alheio como se fosse próprio” (PRADO, 2010, p. 362).

A terceira modalidade pode de desdobrar em duas hipóteses. Primeiramente, pode o agente ocultar o recém-nascido, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil. Nesse caso, observa-se a presença de um especial fim de agir, qual seja, a finalidade de que seja suprimido ou alterado direito inerente ao estado civil , devendo o dolo do agente incluir essa finalidade. Por outro lado, pode o agente substituir recém-nascido, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil, como no caso em que ocorre a troca de crianças, que são colocadas em famílias que não são as suas. Daí se dizer que há alteração no estado civil, pois há uma indevida alteração, uma afronta aos direitos da personalidade da criança e repercussões de outra ordem quanto aos herdeiros e outras pessoas que possam vir a ser lesadas. Nessa modalidade está presente, também, o especial fim de agir e há a consumação do crime quando ocorre “a supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil. Logo, se da ocultação ou da supressão não resultou a privação de direito do neonato, haverá unicamente tentativa” (PRADO, 2010, p. 362).

Como já mencionado ligeiramente, determinadas circunstâncias verificadas quando da prática desse crime, em todas as modalidades, motivaram a previsão de uma modalidade privilegiada no parágrafo único, que diz: Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena. Assim, essas circunstâncias devem estar inseridas numa atitude de nobreza, generosidade ou altruísmo, que faz com que determinadas pessoas sejam motivadas a praticar essas condutas. Por isso, o tipo privilegiado fornece ao julgador duas possibilidades: a aplicação da pena, que abstratamente, é mais brande que a do caput; ou, aplicar o perdão judicial, deixando de aplicar a pena (GRECO, 2013, p. 693). Outra faceta dessa “nobreza do ato” é a de que, muitas vezes, as pessoas que praticam essas condutas, sequer imaginam que estão cometendo um crime. Nesse contexto, o instituto do erro de proibição é mais um elemento que o juiz deve considerar para a aplicação do direito penal, devendo contar com sensibilidade e discernimento para que não se chegue a punições absurdas. A adequação e a necessidade da pena, aliadas aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade devem nortear a aplicabilidade da pena.

2.3  Sonegação de estado de filiação

O crime de sonegação de estado de filiação está tipificado no art. 243:  Deixar em asilo de exposto ou outra instituição de assistência filho próprio ou alheio, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de prejudicar direito inerente ao estado civil. Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. Do exposto, percebe-se que a conduta do agente diz respeito ao abandono de filho, que pode ser seu ou de outra pessoa, em uma instituição de assistência pública ou particular, que pode ser uma creche ou orfanato, por exemplo. Acrescida a essa conduta, deve o agente atuar ocultando a filiação da criança ou atribuindo-lhe outra diferente da verdadeira. Por fim, toda a atuação do agente deve ter como fim especial prejudicar direito inerente ao estado civil.

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A interpretação do local no qual a criança é deixada deve se restringir aos limites definidos no tipo penal, ou seja, se a criança for abandonada em local que não seja uma das instituições mencionadas, o fato poderá se subsumir ao crime de abandono de incapaz (art. 133) ou abandono de recém-nascido (art. 134). A interpretação analógica que é utilizada para a constatação de qual instituição a criança deve ser deixada para fins de configuração do crime, deve seguir a fórmula “asilo de expostos ou outra instituição de assistência”.

Esse delito atinge, dessa forma, a personalidade da criança que, além de ver sua identidade familiar oculta ou falsamente atribuída, será afastada do seio familiar. É mais evidente nesse crime um dano direto à criança e indireto ao Estado, pois é aquela que, efetivamente, é a maior interessada em estar com sua verdadeira família e conhecer seu estado de filiação. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, podendo ser os próprios pais ou pessoas que não tenham nenhum vínculo com a criança.

O crime se consuma quando o agente, efetivamente, abandona filho próprio ou alheio em asilo de expostos ou outra instituição, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra. O elemento subjetivo é o dolo, devendo o agente: primeiro, conhecer a filiação da criança e ocultá-la ou declará-la falsamente; segundo, agir com o especial fim de agir descrito no tipo, ou seja, prejudicar direito inerente ao estado civil.

3.    CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os tipos penais analisados possibilitam a proteção do estado de filiação, conjuntamente com a entidade familiar e a fé pública. Há inegáveis reflexos negativos tanto na esfera individual das pessoas quanto ao interesse do Estado na manutenção da ordem e veracidade dos documentos públicos. Esses crimes possuem esse caráter dúplice.

Deve se ressaltar que o cometimento desses crimes, muitas vezes, são originados de uma falsa impressão dos agentes quanto à proibição da norma penal ou quanto aos próprios fatos da realidade. O pano de fundo desses crimes e as circunstâncias e consequências que acarretaram devem sempre ser sopesados, a fim de que casos absurdos não sejam apenados ou então não sejam demasiadamente sancionados.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 4.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói, RJ: Impetus, 2013. v. 3.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. v. 3.

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Sobre o autor
Gabriell Portilho Ribeiro

Graduando em Direito na Universidade Federal do Maranhão.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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