Reminiscência pré-constitucional no Continente Americano: conteúdo normativo e teor constitucional das Leis Fundamentais do Maranhão

15/08/2016 às 11:07
Leia nesta página:

Do objeto em exame, as Leis Fundamentais do Maranhão, verifica-se que não se constituíram apenas como regras usuais, senão que em seu conteúdo com carga normativa, estavam presentes porções do que mais tarde configurariam o Constitucionalismo Moderno.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Apanhado histórico e formulação das Leis Fundamentais do Maranhão. 3. Análise das Leis Fundamentais do Maranhão: conteúdo normativo 4. Teor Constitucional. 5. Conclusão. 6. Referências.

RESUMO

Do disposto na obra “O pré- constitucionalismo na América”, de autoria do Prof. Dr. José Cláudio Pavão Santana, o presente artigo traz como foco principal, as Leis Fundamentais do Maranhão que foram redigidas e publicadas em solo maranhense no dia 1° de novembro de 1612.  Do objeto em exame, as Leis Fundamentais do Maranhão, verifica-se que não se constituíram apenas como regras usuais, senão que em seu conteúdo com carga normativa, estavam presentes porções do que mais tarde, precisamente no séc. XVIII, configurariam o Constitucionalismo Moderno. Dada sua natureza pré-constitucional, as Leis em análise previam a formação de um Estado soberano, legitimado por um acordo pactual entre colonos e nativos, e estabeleciam direitos, o que limitava, por conseguinte, o poder monárquico. A presença desses elementos, ainda que de forma tímida, reforça sua pré-constitucionalidade, o que insinua, consequentemente, que a esse documento histórico deva-se reconhecer caráter precursor no Continente Americano.

1. Introdução

Hodiernamente, a maioria doutrinária converge no sentido de estabelecer a Constituição Americana (datada de 17 de setembro de 1787) e as Revoluções Francesas ocorridas no séc. XVIII como marcos históricos fundamentais para o estudo do Constitucionalismo, fenômeno este que alçou voos maiores a partir destes documentos constitucionais.

Esses fenômenos históricos do Constitucionalismo Moderno, instituiram no seio daqueles ordenamentos jurídicos positivados, uma Constituição escrita e elaborada para serem cumpridas e observadas por todos, inclusive pelos detentores do poder da época (ou seja, limitando-os), estabelecendo a estrutura organizacional de seus Estados, prevendo direitos fundamentais de modo a alcançar a todos, entre outras disposições que constituem características das normas constitucionais, representando um núcleo principal daquilo que usualmente se estabelece como preceitos aptos a configurar o constitucionalismo.

A análise do fenômeno constitucional, entretanto, não se esgota no estudo das contribuições francesa e americana apenas, pois, apesar de representarem verdadeira evolução na organização da vida em sociedade, de tais movimentos constitucionais não se apreende que sejam tábula rasa, do que se infere, assim, que foram influenciados por outros subsídios intelectuais como o movimento iluminista e tantas outras fontes documentárias que representaram verdadeiras frações constituintes.

Portanto, cabe ressaltar a importância de outros documentos tidos como pré-constitucionais que, de uma forma ou de outra, trazem em suas disposições, prenúncios do que mais tarde configuraria o constitucionalismo propriamente dito. Entre tais documentos normativos, encontram-se as Leis Fundamentais do Maranhão, objeto de exame deste artigo. Buscar-se-á, então, demonstrar que no conteúdo normativo deste documento, encontrava-se já naquela época, certo teor constituinte, o que configura o seu caráter precursor no Continente Americano, pois sua formulação data de 1° de novembro de 1612.

2. Apanhado histórico e formulação das Leis Fundamentais do Maranhão

Antes da análise mais aprimorada das Leis Fundamentais do Maranhão, examinando suas principais disposições e seu teor constituinte, faz-se mister abordar o contexto histórico em que tais normas surgiram, até mesmo para que se possa averiguar sua natureza precursora no Continente Americano.

Ao descobrirem o Brasil em 1500, os portugueses, “legitimados” pelo Tratado de Tordesilhas, somente espalharam suas tropas colonizadoras em algumas localidades brasileiras. Entretanto, não se sentindo intimidados com o acertado no Tratado (que dividia o mundo entre portugueses e espanhóis), os franceses chegaram em terras maranhenses em 1612.

A expedição que veio ao Maranhão com o propósito de fundar a França Equinocial, tornando-se extensão do território francês, foi chefiada por Daniel de La Touche que, para conseguir investimento para a viagem, aliou-se à François de Razily e Nicolas Sancy sob a condição de que a fundação do Estado francês em terras maranhenses tivesse também o escopo de catequização dos nativos que ali seriam encontrados. Tudo isso, é claro, acertado também com a monarquia francesa que tinha interesses em fundar novas fronteiras francesas além da Europa.

Reunidas tais prerrogativas, pode-se concluir no sentido de que três eram os objetivos pretendidos com a viagem: o primeiro, de caráter político, dava-se frente ao interesse monárquico acima ressaltado, o segundo de natureza cristã, era o de evangelizar os nativos das terras encontradas, e o terceiro, de índole comercial, haja visto os recursos naturais que seriam explorados.

Quando aqui chegaram, os franceses utilizaram-se de táticas amistosas para conseguir a confiança dos nativos; cruzes, estandartes e outros símbolos foram fincados e, sob a pretensão de que se converteriam ao cristianismo para em troca conseguirem proteção frente a tribos inimigas, os índios logo aceitaram a instituição do Estado francês.

Nesse primeiro momento, os colonizadores franceses encontraram entre os nativos, regras costumeiras de teor informal que eram escolhidas e votadas (claro, de forma elementar) pelos chefes das aldeias.

Aqui, um breve parêntese. A instituição de normas para o regimento das relações sociais é elemento essencial do mundo jurídico, o que configura o Direito como importante instrumento de resolução de conflitos (o que é claro, não esgota suas outras funcionalidades); dessa forma, onde existir sociedade, existirá o direito regulamentando e determinando restrições às ações humanas, ainda que em caráter rudimentar tal como se instaurou na França Equinocial.

A observação acima feita e o objetivo da expedição francesa, qual seja: a instauração, em terras maranhenses, de um Estado soberano assentado em prerrogativas cristãs, apontavam para a necessariedade da formulação de leis ainda mais vinculativas, ou seja, com força normativa mais abrangente. Assim, enquanto não fosse formulado um documento que possuísse maior poder de vinculação normativa, tais objetivos certamente não seriam alcançados, daí a importância da elaboração das Leis Fundamentais o quanto antes.

Importante frisar ainda que, ao contrário do que ordinariamente ocorria com as colonizações de outras nações (nesses casos, as colônias tinham sempre que permanecer interligadas às metrópoles por meio de cartas concedidas por estas últimas), a instituição da França Equinocial teve caráter peculiar, pois aos conquistadores franceses foi dada a liberdade de determinarem regras concernentes ao cotidiano da colônia como, por exemplo, editarem leis, o que, por conseguinte, foi essencial para a fundação do Estado que aqui se pretendeu instituir. Do disposto nas principais disposições deste documento, é que se poderá afirmar o seu conteúdo normativo.

3. Análise das Leis Fundamentais do Maranhão: conteúdo normativo

As Leis Fundamentais do Maranhão foram escritas e publicadas no dia 1° de novembro de 1612 no Continente Americano, com o intuito de constituírem formalmente a instauração da França Equinocial, assentada no pacto consensual entre os colonizadores franceses e os nativos. Como não pretenderam instituir apenas regras de caráter comercial, senão que constituir instrumento de fixação territorial de um Estado francês no Maranhão, tais normas fundamentais foram além do objetivo perquirido inicialmente, revelando seu teor normativo com assentos pré-constitucionais.

O documento normativo em análise foi redigido de forma a regulamentar tanto as ações dos nativos como as dos colonizadores franceses, revelando, por isso, uma universalidade (entendida no âmbito fronteiriço da França Equinocial) que vinculava a todos os presentes ali; suas normas, então, tinham caráter geral.

Como não se limitou a instituir apenas situações cotidianas que ali pudessem surgir, senão que foi adiante, tendo o escopo de formar um Estado soberano e monárquico, estabeleceu também em seus preceitos-normas uma espécie de cláusula pétrea (de forma elementar, obviamente), mas que determinava que o poder pertencia aos colonos, frente ao pacto que foi firmado. Assim, existiam tanto normas de ordem pública, regulamentando o poder monárquico, como de ordem privada, normas estas que atingiam a Ilha como um todo.

Em face disso, na relação rudimentar estatal entre colonos/Estado e nativos/cidadãos, como forma de limitação do poder, eram estabelecidos nas Leis em análise, normas protetoras dos índios, o que não permitia, por exemplo, que com os nativos se fizesse o que arbitrariamente decidissem os colonos.

Reforçando ainda mais a densidade normativa das Leis Fundamentais, temos que, em sua base normativa de caráter geral (vinculando a todos) e político (instituindo um Estado, ainda que de forma elementar), eram previstas sanções previamente estabelecidas aos que não observassem suas disposições.

Assim, como hoje o Direito não dispõe de outro instrumento que não o coercitivo para fazer valer a plena vinculação e observância de suas normas, também nas Leis Fundamentais foram utilizadas sanções, mesmo que em caráter distinto das que hoje são utilizadas .

4. Teor constitucional

Do disposto no tópico acima discorrido, temos configurado o caráter normativo das Leis Fundamentais do Maranhão, mas não somente isso: como não estabeleciam apenas normas-regulamentações com cunho ordinário, senão que vão além, cabe demonstrar ainda, seu valor constitucional.

Em um primeiro momento, faz-se mister ressaltar que as características estabelecidas pelo Constitucionalismo Moderno como inerentes aos documentos que devem receber o rótulo de Constituições modernas (em sentido estrito), de forma alguma impedem que se mostre que alguns dos preceitos constitucionais que hoje estão presentes em muitos Estados Constitucionais, ainda que de forma elementar ou contendo apenas porções constitucionais, já eram encontrados em documentos anteriores.

Entre tais (os pré-constitucionais), cumpre relembrar a Magna Charta Libertatum, datada de 1215 como o primeiro instrumento normativo, embora condicionado apenas aos barões ingleses, que já no séc. XIII restringia o poder monárquico. No Continente Americano, por sua vez, sempre são citados como documentos pré-constitucionais o Pacto de Mayflower (que é posterior às Leis Fundamentais, datando de 1620) e a Carta da Virginia (1606). Esta última, embora anterior às Leis em análise, não foi concebida no Continente Americano.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Voltando para as Leis Fundamentais do Maranhão, embora não tendo se estabelecido como uma Constituição em sentido formal (escrita como os moldes modernos, o que a priori não se pode pretender do documento em exame, dada a sua anterioridade em relação aos últimos) tem-se que a configuração do seu teor constituinte reside no fato de que já em 1612, não se pretendeu estabelecer apenas regras usuais na Ilha, (i) senão que instituir um Estado francês em terras maranhenses (Constituição institucional).

.Nesse sentido, conforme as finalidades da elaboração dessas normas, quais sejam: o da evangelização cristã (para os índios) e o da instituição de um Estado normativamente estabelecido (para os franceses), vê-se que a legitimidade das Leis Fundamentais, então, assentou-se em bases divinas e naturais o que não retira o seu caráter normativo, apenas revelando que tais prerrogativas foram essenciais para a formação da “vontade constitucional” a que se refere o Prof. Dr. José Cláudio Pavão Santana. Seria, assim, uma espécie primitiva de poder constituinte originário, legitimado em bases cristãs, porém, sem revelar-se como sendo algo imposto, senão que consentido pelos nativos.

Somado a isso, estavam previstas também (ii) algumas garantias tanto aos índios, quanto aos colonos (igualdade na medida do possível), (iii) proteção indígena contra possíveis arbitrariedades dos colonos, (iv) além da delimitação da estrutura organizacional desse Estado, ainda que sem alguns institutos ditos modernos (como a separação de poderes, por exemplo), pois estabelecia que o poder político fosse o monárquico e pertencente aos colonos, reservando-lhes, para tanto, as normas de “salvaguarda”. Em sentido material, portanto, nesse documento já estavam previstos institutos que hoje se encontram presentes, por exemplo, na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

5. Conclusão

As finalidades da viagem francesa às terras maranhenses eram, a priori, políticas e cristãs; porém, a partir do momento em que se pretendeu fundar um Estado soberano, a França Equinocial, editando-se para isso as Leis Fundamentais do Maranhão, criou-se, por conseguinte, um documento normativo com densidade jurídica ampla que, ao se estender aos colonos e nativos, estabelecia uma vinculação generalizada, inclusive ao monarca.

Ao serem redigidas, não se restringiram a estabelecer apenas regras de condutas destinadas a reger situações rotineiras na Ilha do Maranhão, mais, atrelado ao seu conteúdo normativo, as Leis Fundamentais continham teor constituinte, não exercendo papel apenas de constituir, fundar um Estado soberano, senão que também previam alguns direitos dos nativos em face dos colonos (normas protetivas).

Assim, sob enfoque material, apesar do caráter rudimentar (o que fomenta a sua natureza pré-constitucional), representaram o que se pode chamar de Constituição Natural, haja visto o núcleo de constitutividade existente, no qual índios e colonos convergiram em torno de propósitos delimitados, quais sejam: a fundação de um Estado soberano e a pretensão de civismo aos nativos pela evangelização.

O fato de terem sido concebidas em terras maranhenses a 1º de novembro de 1612, faz com que, ao rol dos documentos doutrinariamente concebidos como pré-constitucionais, seja reconhecido o caráter precursor das Leis Fundamentais do Maranhão no Continente Americano, dado o seu teor constitucional e normativo, não apenas aproximando-se ao Pacto do Mayflower, por exemplo, senão que o precedendo.

6. REFERÊNCIAS                         

SANTANA, José Cláudio Pavão. O pré-constitucionalismo na América. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010.

SANTANA, José Cláudio Pavão. Pré-constitucionalismo na América: Uma abordagem acerca de manifestações constitucionais nas terras do Maranhão do século XVII. São Luís: Ediceuma, 1997.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Thaylindre Coelho Torres

Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos