O dogmatismo jurídico e a importância de "O Processo" de Franz Kafka para compreender o Direito contemporâneo

18/08/2016 às 19:55
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O artigo procura demonstrar a importância da literatura de Franz Kafka, para melhor compreensão do Direito contemporâneo em detrimento do dogmatismo acadêmico aprendido e difundido pelos operadores da Ciência do Direito.

Franz Kafka nasceu em 1883 em Praga, trata-se de um dos grandes expoentes da literatura mundial, apesar de ser desconhecido pela comunidade jurídica ou mesmo negligenciado por alguns estudantes de Direito. Segundo Modesto Carone, Kafka é um autor iminentemente social. Assim, trata-se de um autor que deve interessar, sobretudo, todos aqueles que lidam com a Ciência do Direito. 

O supramencionado autor escreveu "O Processo." Obra de grande importância para a análise do Direito contemporêneo, pois, apresenta questões sensíveis relativas aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana (também conhecidos como direitos de primeira dimensão, tais como, o devido processo legal, a duração razoável do processo, a identificação dos responsáveis pela prisão, etc.), que recai toda a ingerência do Estado, em dois planos distintos. 

O primeiro plano, refere-se a interferência constante da relação de poder entre Estado e indíviduo (decorrente da abstração do pacto social), quando se explicita com a persecução penal em desfavor de Josef K., (que na obra é claramente imotivada), por meio da detenção e instauração de um processo aparentemente escuso.  

Em outro plano, tem-se o andamento de um processo angustiante, assustador, onde o protagonista não sabe qual o motivo da sua prisão, tampouco, quais foram as causas que a determinaram. Ainda, deverá se defender contra uma imputação que nunca lhe é formalmente apresentada e sobre esta não consegue obter quaisquer informações (traço surrealista de Kafka), para a devida elucidação.

Muitos advogados, que atuam na seara criminal, presenciam tais ingerências, por óbvio, com as devidas proporções (quando por exemplo, não se tem pleno acesso da prova originária da imputação de seu cliente ou mesmo como e quando determinada prova fora efetivamente produzida). Tais, situações são objeto de decretação de prisão preventiva pela autoridade judiciária competente, sem qualquer análise criteriosa e com clara violação do sistema acusatório do processo penal.        

A obra se inicia da seguinte forma: "Alguém devia ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã."

Assim, partindo do ponto de vista jurídico, a obra aborda questões correlatas ao Processo Penal, e principalmente, aos direitos e garantias fundamentais, pois, Josef K., é preso sem saber sequer o motivo, e durante toda novela, o processo leva-o a tamanha angústia e desespero, logo, o protagonista encontra a morte (que definitivamente, o liberta do processo), sem, contudo, descobrir o motivo pelo qual fora processado.

Em muitas situações no Brasil, o processo é extinto pela morte da parte, pois, a Constituição menciona que as partes teriam a chamada duração razoável do processo. Todavia, indaga-se, o que é um processo com duração razoável?   

Josef K., tenta descobrir por que está sendo acusado, quem é o acusador e qual regra jurídica ampara a acusação, assim, cotidianamente lida com a impossibilidade de escolher um caminho a ser seguido, diante de tantas angústias e incertezas, pois, o processo de que é vítima segue leis próprias, ou seja, as leis do arbítrio. Novamente, indaga-se, quantos processos penais em curso estão submetidos as arbitrariedades de juízes e promotores de justiça?  

Diante destas considerações, pode-se afirmar que em "O Processo" não há que se falar em contraditório, ampla defesa, isonomia, liberdade processual ou publicidade dos atos processuais. Não está igualmente presente, o devido processo legal (Due Process of Law), como preceitua o art. 5º, LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao mencionar que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” Na supramencionada obra, Josef K. é preso sem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão.

Em analogia com o Direito, podemos inferir a necessidade da presença de todos os direitos e garantias constitucionais, e, por conseguinte, não se devem admitir quaisquer supressões destes, tampouco, admitir que haja o denominado Direito Penal do autor, como muitos "justiceiros" investidos de poder estatal ou mesmo particulares anseiam, na tentativa de solucionar o combate à criminalidade.

Atualmente no Brasil, os defensores que militam na advocacia criminal, estão tendo seus direitos restringidos, consoante as prerrogativas funcionais. Autoridades policiais negam direito ao acesso ao inquérito policial, serventuários da justiça negam direito aos autos do processo. Recentemente, o Executivo por meio do Ministério da Justiça, apresentou restrições quanto a conversa pessoal entre advogado e o cliente preso.   

Assim, é importante que os operadores do Direito abandonem o puro dogmatismo aprendido ferozmente na Academia, e que permeia as mais variadas carreiras jurídicas. O Direito deve ser visto por outras perspectivas, a literária é uma delas. Kafka conseguiu demonstrar em sua obra, como o processo é angustiante (podemos ir mais além, quantos advogados estão angustiados com os processos em que atuam?). Ainda, demonstrou a presença da burocracia estatal, que permeia o processo, onde os servidores da justiça de nada sabem, pois, apenas apertam parafusos, em consonância a uma rotina dormente, analogicamente, como ocorre em "Tempos Modernos" de Charlie Chaplin.

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Ainda, a leitura de “O Processo” de Franz Kafka, é de grande importância para o estudo do Direito, pois, permite aguçar o surrealismo que se encontra o processo, tal como ocorre na obra “O Estrangeiro” de Albert Camus, pois, ambas servem de parâmetro para a consecução e consolidação dos princípios e garantias constitucionais, conforme aspirações de Política Criminal e, principalmente, no que tange aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Ribeiro Gomes

Possui pós-graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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