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Filhos, bens e amor não combinam!

Ou a concorrência sucessória

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05/05/2004 às 00:00
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8. Outros questionamentos

Mas há outros pontos que geram questionamentos. Tanto no regime da comunhão parcial como no da participação final dos aqüestos, inexistem diferenças sobre o destino dos bens adquiridos antes do casamento: não integram a meação do consorte. Em ambas as hipóteses, o acervo partilhável é constituído pelos bens comuns adquiridos durante o casamento. Como o regime da participação final de aqüestos não está referido entre as exceções que afastam o direito de concorrência, mister reconhecer que ao cônjuge sobrevivente é sempre assegurada parcela da herança. Havendo ou não bens particulares, concorre com os herdeiros.

Cabe buscar uma justificativa para o tratamento diferenciado entre os dois regimes de bens. Por que, entre dois regimes que tratam igualmente os bens particulares, é feita distinção quanto à concorrência? Por que, em se tratando do regime de participação final nos aqüestos, independente da preexistência de patrimônio, é sempre assegurado ao cônjuge o direito de concorrer? Por que, no regime da comunhão parcial, o fato de o autor da herança possuir ou não bens particulares gera tratamento diferenciado quanto à concorrência do cônjuge?

Também não se atina por que, no regime legal da separação de bens (art. 1.641 do CC), não há direito à concorrência, limitação que inexiste em havendo a opção pela separação de bens por pacto antenupcial, uma vez que tal regime não foi inserido entre as exceções legais. Em ambas as hipóteses, não há falar em direito sucessório do cônjuge sobrevivente. Se a incomunicabilidade decorre da manifestação de vontade dos cônjuges, é assegurado ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrer com os herdeiros sobre todo o acervo hereditário. No entanto, se o mesmo regime de separação de bens decorre de imposição legal, ainda que injustificável a postura do legislador, não existe direito de concorrência. A menos que se vislumbre uma tentativa de punir quem casa com mais de 60 anos, nada autoriza tratamento desigualitário ante situações absolutamente idênticas. Aqui se avizinha também afronta ao princípio da igualdade, que dispõe de proteção constitucional.

Afora a incontornável ausência de respostas a essas interrogações, talvez mais desafiador seja identificar os critérios utilizados pelo legislador para excluir o direito à concorrência em algumas hipóteses, introduzindo limitações ao direito do cônjuge.

Subtrair o direito de concorrência no regime da comunhão universal de bens parece ser uma tentativa de impedir o excessivo beneficiamento do cônjuge sobrevivente. Como a totalidade do patrimônio do autor da herança pertence ao casal, receberá o cônjuge supérstite, a título de meação, a metade de todo o acervo hereditário. Tanto os bens particulares como os adquiridos durante a vida em comum serão partilhados por metade. Logo, no regime de comunhão universal de bens, o cônjuge sobrevivente fica com cinqüenta por cento de tudo. O restante, a meação do de cujus, é dividido entre os filhos do autor da herança, nada recebendo o sobrevivente sobre essa parcela.

Parece, pelo que diz a maioria, não ser outra a justificativa quanto ao regime da comunhão parcial, em que todo o patrimônio existente foi adquirido na constância do casamento. Como, ao casar, não possuía o de cujus patrimônio particular, o acervo hereditário é composto exclusivamente dos bens comuns amealhados durante a vigência do casamento. Nessa hipótese, igualmente, se divide a totalidade do patrimônio. O sobrevivente fica com a sua metade e não concorre com os descendentes quanto à outra metade dos bens. Mas talvez se deva fazer questionamento de outra ordem: se a intenção do legislador foi beneficiar o cônjuge, por que lhe deferir exclusivamente a meação, nada lhe dando de herança, ainda que todo o patrimônio tenha sido adquirido presumivelmente pelo esforço comum?

Sem perder de vista que a finalidade da instituição do direito de concorrência foi melhor aquinhoar o cônjuge, perplexidade maior advém ao se visualizar hipótese outra. Tudo indica que a intenção do legislador, ao introduzir as exceções excludentes do direito de concorrer, foi afastar a benesse quando o sobrevivente recebe a metade de todo o acervo patrimonial do de cujus. No regime da comunhão universal, a meação se constitui sobre os bens pretéritos de cada um dos consortes e sobre os adquiridos durante a vida em comum. No regime da comunhão parcial, segundo a doutrina majoritária, inexistindo bens anteriores ao casamento, igualmente haverá a partição igualitária do patrimônio. Ora, se o desejo foi só excluir a concorrência quando o cônjuge sobrevivo ficar com a metade da totalidade do patrimônio, cabe perguntar: por que excluir esse benefício de quem casou pelo regime da separação obrigatória de bens? Na dicção fria da lei, o consorte sobrevivente nada recebe, sequer a meação dos bens adquiridos durante a vida em comum. O viúvo, simplesmente por ser ou haver se casado com um sexagenário, fica sem nada, independentemente de existir bens particulares ou de haver contribuído na aquisição de patrimônio durante a constância do casamento.

A falta de congruência da lei torna-se mais evidente ao se atentar que, no regime convencional da separação, em que um cônjuge não é herdeiro do outro, o sobrevivente é brindado com o direito de concorrer com os sucessores.

Tratamentos tão antagônicos e paradoxais não permitem identificar a lógica que norteou a casuística limitação levada a efeito pelo legislador. Quando se depara com situações que refogem à razão, não se conseguindo chegar a uma interpretação que se conforme com a justiça, há que reconhecer que deixou o codificador de atender ao princípio da razoabilidade, diretriz constitucional que cada vez mais vem sendo invocada para subtrair eficácia a leis que afrontam os princípios prevalentes do sistema jurídico. São a igualdade e a liberdade, que sustentam o dogma maior de respeito à dignidade humana. E nada, absolutamente nada autoriza infringência ao princípio da igualdade, ao se darem soluções díspares a hipóteses idênticas e tratamento idêntico a situações diametralmente distintas. Também nítida é a afronta ao princípio da liberdade ao se facultar a escolha do regime de bens e introduzir modificações que desconfiguram a natureza do instituto e alteram a vontade dos cônjuges. Desarrazoado não disponibilizar a alguém qualquer possibilidade de definir o destino que quer dar a seus bens.

Imperioso concluir que são insustentáveis as distorções levadas a efeito pela lei, estabelecendo distinções ante situações rigorosamente iguais. É o que ocorre com o tratamento diferenciado entre o regime da comunhão parcial e o de participação final nos aqüestos, bem como entre o regime legal e o convencional de separação de bens. Além disso, é incongruente excluir o benefício frente a circunstâncias diametralmente opostas, como no regime da comunhão universal e no da separação obrigatória de bens. Em um se extirpa a concorrência pelo fato de o sobrevivente receber a metade de todo o acervo patrimonial. Já na outra hipótese é excluído o benefício de quem nada irá receber sequer a título de meação. Aqui também se vê ferido o princípio da razoabilidade. Cabe repetir: situações idênticas não podem receber tratamento diferenciado, assim como situações diversas não devem ser tratadas de forma igual. A única solução que se avizinha é simplesmente reconhecer a inconstitucionalidade das exceções estabelecidas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil e estender o direito de concorrência ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens.


9. A única saída

Frente ao que até aqui foi posto, e diante da diversidade de interpretações que o mesmo texto legal tem ensejado, cabe fazer uma pergunta: qual o regime de bens que deve adotar quem quer casar e, tendo filhos e bens, não pretende que, no caso de seu falecimento, o cônjuge receba parte do patrimônio amealhado antes do casamento?

Impositivo raciocinar por exclusão.

Às claras, não deve eleger o regime da comunhão universal, pois nessa hipótese o cônjuge receberia a metade do seu patrimônio particular a título de meação. Igualmente descabe optar pelo regime da separação de bens, já que, por não incluído esse regime nas exceções do inciso I do art. 1.829, o cônjuge sobrevivente teria direito à concorrência sobre todos os bens, inclusive os particulares. O mesmo se diga com referência ao regime da participação final de aqüestos, pois igualmente não foi excepcionado pela lei, persistindo o direito do sobrevivente de concorrer também sobre os bens individuais.

Não havendo regime de bens a eleger por pacto antenupcial, igualmente não pode o casal silenciar para que se instale o regime da comunhão parcial. Nessa hipótese, em face da existência de bens particulares (para quem assim lê a lei), o viúvo concorrerá com os descendentes.

Qual a solução? O jeito é não casar? É viver em união estável? É esperar que um dos cônjuges complete 60 anos para casar pelo regime da separação legal? Como deixar os bens particulares só para os filhos?

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A única conclusão a que se pode chegar é que está cerceada a vontade de quem quer casar, mas quer preservar seu patrimônio pessoal em favor de seus filhos. Pelo jeito, quem possui filhos e bens não pode casar! Conclusão: o novo Código Civil, que se dedicou com tanto empenho a regular o casamento (dedicou-lhe 202 artigos), impõe o celibato a quem possui filhos e patrimônio, ainda que seja somente uma bicicleta. Cabe lembrar que a própria Constituição Federal parece preferir o casamento ao impor empenho em casar os conviventes, mas a lei não está atentando a essa recomendação.

Como emprestou o legislador constituinte especial relevo ao direito à liberdade, além de assegurar irrestrita proteção à família, não dá para aceitar que alguém não tenha o direito de casar e dispor da forma que lhe aprouver sobre o destino de seu patrimônio após o seu falecimento.

A saída é uma só: reconhecer a inconstitucionalidade das exceções postas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, quiçá de todo o artigo 1.829.

Falando em inconstitucionalidade, era bom inserir no rol o tratamento discriminatório concedido à união estável não só no âmbito sucessório, mas em incontáveis dispositivos espraiados na lei. Desrespeitam a diretriz traçada pela Constituição Federal, que não estabeleceu qualquer hierarquização entre as entidades familiares e as elencou de forma exemplificativa.

Ao sugerir-se a eliminação de dispositivos legais, era de se aproveitar e revogar também a parte final do art. 1.845 do Código Civil, afastando o cônjuge da condição de herdeiro necessário.

Não se visualizando a necessidade social de modificar a lei, as mudanças introduzidas se revelam despiciendas, não se justificando as alterações levadas a efeito. Geram tantas e tão absurdas conseqüências, que a única solução que se avizinha é abstrair as novidades do contexto normatizado.

Enquanto o legislador se queda silente, mister que o Poder Judiciário assuma essa tarefa. De todo descabido que se curvem os juízes às aberrações legais e se esqueçam de que lhes incumbe a missão de fazer justiça. O novo Código Civil não foi feliz. A lei não está imitando a vida. [11] E, quando ocorre esse desrespeito, é necessário olvidar o que a lei diz, pois, quando o direito ignora a realidade, a realidade se volta contra o direito, ignorando o direito, conforme sempre vaticinou Ripert.


Notas

1 Cabe referir o sem-número de manifestações, sugestões e opiniões que recebi de atentos estudiosos, quando da publicação dos artigos anteriores sobre o tema intitulados: "Ponto e Vírgula" e "Ponto Final". Merecem ser citadas as ponderações manifestadas por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Jamil Bannura, Mario Delgado, Enéas Castilho Chiarini Júnior, Eduardo Franceschetto Junqueira, Fernando Nogueira, André Sarda, Antônio Sérgio Dias Leal e Sidney Martins.

2 MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 193.

3 VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.

4 Súmula nº 377 do STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

5 VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.

6 VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 293.

7 Não é possível concordar com Miguel Reale em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 12 de abril de 2003, quando afirma a possibilidade de excluir o direito de concorrência por analogia.

8 O exemplo é trazido pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos, em artigo disponibilizado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (www.ibdfam.com.br) intitulado "A sucessão dos cônjuges no novo Código Civil".

9 Esta é a posição de Zeno Veloso. (VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 281).

10 Esta forma de interpretação é a que sustento em dois artigos em que abordo o tema intitulados "Ponto e vírgula" e "Ponto final", disponíveis em meu site www.mariaberenice.com.br .

11 VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 294.

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Sobre a autora
Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões. Pós-Graduada e Mestre em Processo Civil. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Maria Berenice. Filhos, bens e amor não combinam!: Ou a concorrência sucessória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 302, 5 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5165. Acesso em: 7 nov. 2024.

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