6. A crise da codificação racionalista
Os códigos jusracionalistas tiveram o seu apogeu e representaram a vitória de uma cultura jurídica com orientação de uma moral prática. Por outro lado, seus idealizadores cometeram o erro de buscar restringir o desenvolvimento do direito.
Note-se que, considerando que os códigos consubstanciavam o que de mais perfeito poderia existir em matéria jurídica, os legisladores sequer permitiam que suas interpretações fossem realizadas pelo aplicador do direito isoladamente. Nesse sentido, foram constituídas verdadeiras comissões ministeriais (Prússia) e comissões legislativas (França).
Dessa forma, o direito perdia o que tinha de mais vivo e impulsionante, tornando-se um direito frio e decadente. Esse fato foi ainda agravado quando a renovação cultural proporcionada pela Escola Histórica do Direito iniciava seus primeiros passos na Europa.
Perceba-se que a codificação jusracionalista promoveu verdadeiro óbice à construção de uma justiça viva quando cristalizou uma legislação que se pretendia de uma vez por todas certa para um Estado concreto.
Nada obstante o fato de o jusracionalismo teórico admitir, em tese, a retificação do direito a partir de novas experiências e de perspectivas mais apuradas, na prática, impôs uma razão autoritária aos povos tornando a auto correção impensável, transformando a razão em contra-senso.
O que ocorreu foi que o jusracionalismo havia traído seu núcleo mais característico. Se, em determinado momento, foi fundamental para promover reformas em diversos institutos jurídicos, como o direito penal e processual penal, abolindo penas corpóreas e infamantes, proporcionando um resgate da humanidade, em outro momento ele viria a bloquear a consciência jurídica vinculada à tradição viva dos povos, impedindo o pleno desenvolvimento do próprio pensamento racionalista em face da idéia de um monopólio estadual do direito.
Um dos autores que se insurgiram contra uma ditadura da razão foi F.Geny, afirmando que "o direito é uma coisa muito complexa e móvel, para que um indivíduo ou uma assembléia, ainda que investidos de autoridade soberana, possa pretender fixar de uma só vez os preceitos de modo a satisfazer todas as exigências da vida jurídica." (Método de interpretação e princípios do direito positivo - 1899)(10)
Não se pode deixar de reconhecer também que fator preponderante para o ocaso do jusracionalismo e seu mito de um direito como monopólio do Estado através da codificação foi o advento de uma corrente filosófica denominada de criticismo, que, visando a superar o antagonismo entre racionalismo e empirismo, teve em Kant seu mais importante pensador.
De fato foi Kant quem se opôs de forma intransigente ao antigo direito natural acrítico. Com auxílio de diversos seguidores (Hugo, Feuerbach e Savigny), a questão da justiça passou a fundar-se na ética Kantiana da autonomia da moral da pessoa e da sua vontade. Ressalte-se que Kant não descartaria os contributos metodológicos do jusracionalismo, tanto que um de seus seguidores, Feuerbach é considerado legislador adepto dessa corrente.
Assim, pode-se dizer, que o fator preponderante para a crise da codificação racionalista tenha sido a formação de uma elite cultural européia, notadamente alemã, dotada de uma sensibilidade política autônoma que fez brotar uma consciência política nacional, com imediata idéia de relação entre os cidadãos e o Estado, opondo-se, destarte, à autocracia paternalista iluminista.
7. A viragem da concepção econômica estatal e seus reflexos na codificação civil brasileira
No intuito de demonstrar a função imobilizadora que os códigos impuseram ao direito que se pretende dinâmico, tomar-se-á como paradigma a questão da crescente constitucionalização e, conseqüente descodificação do direito civil brasileiro. Hodiernamente pode-se notar como fator primordial para o absoluto ocaso da codificação das leis a modificação da concepção do Estado Liberal para o Estado Social, com a necessária intervenção do Estado no direito privado, nomeadamente no Código Civil.
Foi o Código de Napoleão (1804) quem originalmente dicotomizou as leis civis das leis públicas, em face da sistematização operada naquele texto, o que viria a influenciar todas as codificações do séc. XIX, e mesmo a do séc. XX, como no caso brasileiro.(11)
Assim, enquanto permaneceram as condições de manutenção do Estado Liberal os códigos civis tiveram função primordial como núcleo de um direito positivo. O advento do Estado Social, tomado no plano jurídico como sendo aquele que inclui em sua Constituição a regulação da ordem econômica e social pelo Estado interventor, superou, definitivamente, a crença de um direito civil codificado em sintonia com a modernidade.
Apenas para exemplificar, enquanto a sociedade e o próprio Estado evoluíram, em face do surgimento de uma ideologia voltada à esfera social, que dominou o cenário constitucional do séc.XX, os códigos civis mantiveram sua âncora no Estado Liberal, não acompanhando nem de perto as profundas e significativas modificações constitucionais operadas no Brasil desde a Constituição de 34.
Sabe-se que o constitucionalismo é, na verdade, a afirmação do individualismo jurídico, limitando os poderes do Estado. A codificação, por seu turno, nomeadamente a civil, teve o papel de assegurar o mais amplo espaço de autonomia dos indivíduos, principalmente no campo econômico.
A constitucionalização do Código Civil se apresenta, destarte, como uma contradição ontológica de seus próprios alicerces. Isso se tomada a concepção do Estado Liberal. Considerada a preocupação de uma justiça social ou justiça distributiva, inexiste qualquer contradição.
A codificação liberal teve a propriedade como valor necessário à total realização da pessoa. Kelsen demonstra essa visão citando a filosofia de Hegel, para quem a esfera exterior da liberdade humana é a propriedade. "Só na propriedade a pessoa é como razão"(12). O Estado Social, por seu turno, faria submergir a pessoa humana, na sua potencialidade moral e ética.
E se a pessoa humana passa a ser o ponto central do direito, aquele antigo direito civil codificado, de índole puramente patrimonialista não terá mais vez no seio de uma sociedade ávida por mudanças sociais não apenas conceituais, senão reais, que serão proporcionadas por meio de uma lenta e gradual, porém profunda, intervenção do Estado na ordem econômica.
Sobre o tema, Paulo Lôbo comenta que "As funções do Código (civil) esmaeceram-se, tornando-o obstáculo à compreensão do direito civil atual e de seu real destinatário; sai de cena o indivíduo proprietário para revelar, em todas suas vicissitudes, a pessoa humana. Despontam a afetividade, como valor essencial da família; a função social, como conteúdo e não apenas limite, da propriedade, nas dimensões variadas; o princípio da equivalência material e a tutela do contratante mais fraco, no contrato."(13)
Assim é que as diversas constituições brasileiras passaram a modificar conceitos seculares determinados tão-somente pelo Código Civil, como nas hipóteses dos direito da mulher, do direito de família, das sucessões, da propriedade e da atividade negocial.
No particular a atividade negocial, o advento do Código do Consumidor (que somente por homenagem à tradição se denomina código) é o exemplo vivo do total ocaso do mito da codificação. A tendência do que há de mais atual no campo da legislação é a criação de "minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil."(14)
O "Código" do Consumidor não apenas subtraiu do Código Civil a administração da quase totalidade dos contratos, como também disciplina questões afetas ao direito comercial, ao direito administrativo, ao direito penal, e ao direito processual penal.
Dessa forma, particularmente no direito brasileiro, o advento da concepção do Estado Social contribuiu de forma inequívoca para a derrocada da égide da codificação, quando o processo de constitucionalização do direito civil, aproximando-o do ideal dos indivíduos, tornando-o dinâmico por meio de leis complementares multidisciplinares, esvaziou por completo o conteúdo do Código.
A necessária ação intervencionista do legislador promoveu a subtração de matérias inteiras que se encontravam engessadas no Código Civil, dando a elas tratamentos autônomos, como no caso do direito do trabalho, do direito agrário, direito das águas, direito da habitação, direito de locação de imóveis urbanos, estatuto da criança e do adolescente, direitos autorais e direito do consumidor.
Não há dúvida que a manutenção de todos esses institutos na sistemática anterior do Código Civil seria perpetuar um óbice intransponível às suas atualizações. Como no caso de suas fontes inspiradoras, o Código Civil brasileiro se viu ultrapassado no seu tempo por uma história viva e pulsante da sociedade. A pretensão de um direito codificado eterno e imutável se destrói com a evolução dos tempos.
8. O ilógico necessário
A análise desapaixonada da questão que ora foi investigada permite concluir que não se pode negar que o jusracionalismo teve papel preponderante para a sistematização do direito como nunca ocorrera em épocas passadas. Mesmo nos dias atuais essa sistematização tem grande valia.
A crença em um sistema legal perfeito e imutável, consubstanciado no dogma da completude dos códigos, todavia, é hoje mais um mito do que uma orientação científica. De fato, a crítica fundamental que faz dessa crença é a desconsideração pelos seus idealizadores do envelhecimento dos códigos e as transformações sociais.
Como se demonstrou nos diversos equívocos do jusracionalismo, não se pode, nos dias atuais, se crer em um direito que não seja vivo e dinâmico, apto a adequar-se à uma sociedade cada vez mais ávida por avanços científicos, sociais e econômicos.
Particularmente no direito brasileiro, as mudanças de conceitos cristalizados pelo Código Civil, como nos institutos da propriedade e da família, anteriormente vistos, são lentas, porém, graduais e significativas.
E, uma vez que o direito vem sempre a reboque das transformações sociais, toda uma legislação antiga aparentemente sobrevive em profunda antinomia com o advento de princípios constitucionais até então inimagináveis (Quem, de bom credo, poderia afirmar no século passado, no Brasil rural e patriarcal, que homens e mulheres seriam iguais em direitos e deveres?).
Diz-se aparentemente porquanto somente o mero amor ao debate jurídico e o academicismo, aliados ao ranço saudosista que há em alguns setores da Política e da Justiça, possibilitam a discussão acerca da auto-aplicabilidade ou não de normas e princípios constitucionais derrogadores da legislação centenária codificada.
A passagem do Estado Liberal para o Estado Social contribuiu sobremaneira para essa superação, quando buscou-se romper com diversos conceitos, e porque não dizer, dogmas seculares do direito civil. Tal fenômeno ocorre em virtude da profunda intervenção do Estado na atividade econômica dos particulares, em suas mais diversas formas de manifestações, até então imune a ataques do jaez, abrigada que estava pelo manto da legislação civil, um dia chamada de "constituição do homem comum".
Tinha-se a seguinte situação: a codificação civil regulava as relações privadas, nas quais, em princípio, o Estado não deveria intervir cogentemente por lhe faltar interesse. O direito constitucional, por seu turno, existia para limitar a atuação desse mesmo Estado em relação aos homens. Em oposição ao Estado Absolutista, vivia-se o Liberal, com o mínimo de Estado e o máximo de liberdade individual, ou, em outros termos, o imperialismo econômico falaciosamente chamado de liberalidade, posto que a única liberdade dos homens era a de vender a preço vil sua força de trabalho.
O Estado Social, em oposição, buscou, não como supõe alguns, socializar a economia, ou extinguir a propriedade privada, limitando as atividades dos particulares, senão retomar a esquecida idéia da supremacia do homem em relação à propriedade. Nesse sentido, a função social dos bens, a repersonalização da família.
Regulando a atividade econômica, ora diretamente, por meio de entidades que cria para tal fim, ora indiretamente, por meio de incentivos e vedações, o Welfare State está longe de ser o Estado marxista, uma vez que funcrado na livre iniciativa, mas apresenta um avanço social insofismável em relação ao modelo econômico anterior, uma vez que constitucionaliza temas juridicamente relevantes como o direito do trabalho, das relações de consumo, de habitação, das águas, de uso do solo, etc. todos originários da codificação civil.
Dessa forma, fator fundamental para a superação da hegemonia da codificação civil foi é a idéia de que a personalidade é mais do que um direito, senão um valor fundamental do ordenamento, cuja valorização pressupôs o quase sepultamento de concepções existentes no Código Civil Brasileiro, que remonta a tradição oitocentista.
Em determinados aspectos, a codificação parece estar não apenas em descompasso com os avanços da humanidade, mas na contramão deles. Tome-se como exemplo o direito de família. O que há de mais moderno no direito de família diz respeito ao princípio constitucional implícito da afetividade, que, aliado aos da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade, buscam demonstrar que o conceito de família na Constituição Brasileira de 1988, antes de constituir numeros clausus, tem por objetivo romper com o patrimonialismo do conceito até então vigente.
Destarte, institutos como o da união estável, da família monoparental, assim como a vedação de discriminação dos filhos e a elevação da família para a base da sociedade, e não do Estado, são demonstrações inequívocas de que, nesse como em outros ramos do direito civil, se trilha inversamente os caminhos pelos quais percorreu a Codificação do passado.
E havendo dissonância entre o que diz a sociedade, por meio de uma nova concepção de direito constitucional, e grande parte do que diz a codificação, não há que negar-se estar ultrapassado está o mito da codificação, que representou o dogma da completude do direito estatal, dando-se espaço paulatinamente a uma nova forma de manifestação legislativa, mais leve e versátil, que é a criação de leis multidisciplinares, infinitamente mais adequadas a uma realidade social mutante.
Provavelmente essa postura da sociedade que não mais se conforma com conceitos cristalizados em uma codificação que representa o monopólio estatal do direito, ou que destrói mitos como a impossibilidade de uma igualdade formal, diante da lei, entre homens e mulheres, seja uma postura necessariamente ilógica daquilo que se convencionou como lógico, nos termos preconizados por Nietzsche no texto que inspira e empresta o nome a esse trabalho.
Se fosse esperado do homem apenas uma postura lógica na concepção do direito, não teria a humanidade evoluído em seus conceitos morais, éticos e, por que não dizer, afetivos, que proporcionam um estágio atual da ciência jurídica totalmente diversa, para melhor, daquele das épocas das primeiras codificações.
Se não se pode dizer, por questões óbvias, que a crise da codificação é a vitória do irracionalismo sobre uma postura jusracionalista, também não se pode negar que a evolução da sociedade e de seus conceitos, de uma forma não necessariamente lógica para os padrões de pensamento iluminista, é questão fundamental para a compreensão da superação do mito dos códigos enquanto porta-vozes do ideário elitista e falacioso de um direito puramente estatal.
Notas
1. Wilson de Souza Campos Batalha. Introdução ao Direito. p.484.
2. ibid. mesma página
3. Umberto Padovani e Luís Castagnola. História da Filosofia. p.288.
4. Miguel Reale. Filosofia do Direito. p.99.
5. ibid. mesma página
6. Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno. pp.309-310.
7. Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno. p.378.
8. Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico. pp.141-142.
9. ibid. p.143.
10. apud Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico. p.126.
11. Maria Celina B. M. Tepedino. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. p.2.
12. Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. p.183.
13. Paulo Luiz Netto Lôbo. Constitucionalização do Direito Civil. p.12.
14. ibid. p.5.
Bibliográfia
1.LIVROS:
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Introdução ao Direito. Filosofia, História e Ciência do Direito.Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Polis, 1991.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1974.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1986.
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.
2.ARTIGOS:
LÔBO, Paulo Luiz Netto. "Constitucionalização do Direito Civil". Revista de Informação Legislativa, ano 36, nº. 141, Brasília, 1999.
TEPEDINO, Maria Celina B. M. "A Caminho de um Direito Civil Constitucional". Revista Estado, Direito e Sociedade, Vol.1º, Departamento de Ciência Jurídicas, Pontífice Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1991.