A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro: rumo à supraconstitucionalidade?

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04/09/2016 às 13:12
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O presente texto discute a hierarquia dos tratados internacionais de acordo com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal. Partindo desta abordagem, destaca a possibilidade de um bloco de supraconstitucionalidade.

RESUMO

O presente texto discute a hierarquia dos tratados internacionais de acordo com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal. Partindo desta abordagem, destaca a possibilidade de um bloco de supraconstitucionalidade ao se reconhecer a hierarquia supraconstitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos.

Palavras-chave: Tratados internacionais. Supremo Tribunal Federal. Supraconstitucionalidade. Direitos Humanos.

ABSTRACT

This paper discusses the hierarchy of international treaties in accordance with recent decisions of the Supreme Court. Based on this approach, highlights the possibility of a block supraconstitucionalidade when supraconstitutional recognize the hierarchy of international treaties on human rights.

Keywords: international treaties. Supreme Court. Supraconstitucionalidade. Human Rights.

Sumário: 1. Colocação do problema; 2. Evolução da posição hierárquica dos trados no Supremo Tribunal Federal; 3. Poder constituinte e bloco de constitucionalidade; 4. Supraconstitucionalidade dos tratados sobre direitos humanos; 5. Conclusões; 6. Referências Bibliográficas.

1 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

O tema sobre a recepção dos tratados internacionais de direitos humanos no Brasil, especialmente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é, sem dúvida, alvo de muitos debates, estudos acadêmicos e discussões judiciais. Assim, chegar a um ponto comum quanto ao seu real status ainda é tarefa árdua em terra brasilis. A questão que se apresenta é: seriam esses tratados e convenções normas legais, supralegais, constitucionais ou supraconstitucionais? Para responder tal indagação, embora se reconheça a provisoriedade e falibilidade da conclusão final, o presente texto pretende expor a evolução do tema na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, aliada a breves abordagens doutrinárias. Após tal desiderato, será discutido o problema do poder constituinte e, ao final, a possibilidade ou não dos tratados que versarem sobre direitos humanos ocuparem uma hierarquia supraconstitucional.

2 EVOLUÇÃO DA POSIÇÃO HIERÁRQUICA DOS TRATADOS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Não é tarefa intransponível observar que o Supremo Tribunal Federal, como corte constitucional brasileira, vem modificando sua orientação jurisprudencial no que tange aos tratados internacionais, notadamente a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004. Por outro lado, isso também não significa que todas as decisões vem sendo tomadas de forma satisfatória. O retrocesso também faz parte do processo de construção e modernização. Explica-se. Entre 1940 e 1950, o STF se posicionou por diversas vezes pela primazia do direito internacional frente às normas nacionais, conforme se depreende de alguns julgados. (Apelação civil 7.872/RS e Apelação civil 9.587/DF ) [3]

Nos julgamentos das apelações acima indicadas, o Supremo afirmou que a norma de direito internacional possuía caráter superior à norma de direito nacional. Mas isso pouco durou. A partir da década de 70 e, mais precisamente, com o advento da Constituição Federal de 1988, seus julgados mudaram radicalmente.

Esse posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em 1977, insta esclarecer, veio modificar seu anterior ponto de vista que apregoava o primado do direito internacional frente ao ordenamento doméstico brasileiro. De forma que estamos diante de um verdadeiro retrocesso no que diz respeito à matéria. (MAZZUOLI, 2002, p. 73)[4]

Além disso, inúmeros tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil forçaram as discussões acerca do tema, afinal, muitas de suas disposições se apresentavam em conflito com normas internas. Toma-se exemplo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a prisão civil do depositário infiel. Para esta análise, a nível jurisprudencial, ter-se-á como decisão paradigma o Recurso Extraordinário nº 466343-1/SP com julgado em 2008.

O referido recurso, que teve como relator o ministro Cezar Peluso, abriu uma série de discussões entre os ministros da referida Corte acerca do status normativo dos tratados e convenções acerca de direitos humanos no Brasil. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, passou-se a acreditar que tais normas internacionais seriam recepcionadas no Brasil com um caráter legal, ou seja, com status de lei ordinária, numa interpretação desmedida do § 2º do artigo 5º da Constituição[5]. O destacado recurso extraordinário, por outro lado, veio abrir uma nova discussão: a supralegalidade de tais normas. O debate envolveu, praticamente, os votos dos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, que sintetizaram e aprofundaram no tema.

Trata-se, o julgamento, de se conferir a ilegalidade da prisão civil do devedor fiduciante no Brasil, em razão da proibição expressa do encarceramento em normas internacionais ratificadas pelo Brasil. O ministro Gilmar Mendes afirmou que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos fora ratificada pelo Brasil em 1992 sem nenhuma reserva e por isso deveria ser observada. A citada convenção declara a impossibilidade da prisão civil, salvo por dívida oriunda de prestação alimentar. Neste caso, o que deveria prevalecer? O artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal ou o artigo 7º da Convenção ratificada?

Art. 5º, CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

Artigo 7º - Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Direito à liberdade pessoal.

[...]

7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

Por outro lado, o § 2º do artigo 5º da CF/88 afirma que os direitos e garantias constitucionais não excluem outros decorrentes de normas internacionais das quais o Brasil tenha aderido. Como conciliar, então, tais divergências normativas?

O ministro Gilmar Mendes começou afirmando que existem quatro status normativos aplicáveis aos tratados e convenções sobre direitos humanos: supraconstitucional, constitucional, legalidade e supralegalidade. De pronto, descartou a primeira possibilidade – supraconstitucionalidade – afirmando que a Constituição Federal possui supremacia em relação às normas internacionais. Ademais, afirmou que a discussão acerca do status constitucional às normas de direitos humanos, perdeu seu sentido com a edição da EC 45/2004, em razão da inclusão do § 3º no artigo 5º. Os tratos e convenções internacionais que tratem sobre o tema, se votados em dois turnos em cada Casa do Congresso Nacional e forem aprovados por três quintos dos votos, ganharão status de emendas constitucionais.

Mas e os tratados e convenções que não passarem por essa votação? E aqueles ratificados antes da EC 45/2004? Quais status assumiriam? O ministro se reportou afirmando que até aquele momento, a Suprema Corte, possuía um entendimento legalista, ou seja, tais normais internacionais teriam o mesmo status de uma norma ordinária. Mas estava clara a defasagem de tal pensamento em relação ao cenário mundial, já que a tendências era prestigiar as normas internacionais destinadas à proteção dos direitos humanos. Assim como já ocorre na Europa e na América, mais precisamente na Argentina e no Paraguai.

Diante disso, provocou um novo posicionamento. A partir daquele momento, deveria o STF modificar sua jurisprudência acerca do status normativos de tais tratados e convenções. Levantou, portanto, outra bandeira: a da supralegalidade. Cumpre ressaltar que tal pensamento foi seguido pelos demais ministros, a exceção de outra corrente defendida pelo ministro Celso de Mello, posteriormente aqui esposada.

Gilmar Mendes, seguido por outros ministros, afirmou que os tratados e convenções sobre direitos humanos tinham o poder de paralisar a eficácia jurídica de normas internas infraconstitucional com eles incompatíveis, mas não revogá-las. Daí porque considerou que não havia mais razão para se invocar a prisão civil do depositário infiel, perdendo, assim, sua aplicabilidade no cenário nacional:

Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. Como enfatiza Cançado Trindade, “a tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central”. Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.[6]

Diante disso, invocou a supralegalidade de tais normas internacionais quando não passarem pelo crivo da votação qualificada do §3º do artigo 5º da CF/88 e por conseguinte, o caráter constitucional daquelas que passarem por este procedimento.

Mas ainda assim, a matéria estava longe de ser pacificada. Isso porque, no mesmo julgamento, o ministro Celso de Mello, invocou em seu voto outros fundamentos para a recepção dos tratados sobre direitos humanos no Brasil. Levantou a ideia de que mesmo aqueles diplomas internacionais que foram ratificados antes da Emenda Constitucional nº 45 possuírem caráter constitucional, em razão de uma espécie de bloco de constitucionalidade.

Para ele, os tratados e convenções admitidos antes da emenda constitucional não poderiam perder o caráter constitucional e por isso, ganhariam esse status em razão do seu conteúdo. Ou seja, tais diplomas internacionais são materialmente constitucionais e por isso deveriam ser recepcionados como normas constitucionais. Frisou também que não passariam a ter status de emenda constitucional, mas deixariam de ser materialmente constitucionais só por terem adentrado ao ordenamento antes da vigência da emenda nº 45/2004. 

Diante disso, haveria três situações distintas: A primeira consistente em dizer que os tratados sobre direitos humanos recepcionados antes da Constituição Federal de 1988 teriam índole constitucional, porque foram formalmente recebidos. Segunda teoria informa que os tratados e convenções ratificados após a Emenda Constitucional nº 45/2004 e que passassem pelo quórum do § 3º do artigo 5º da Constituição receberiam status de emenda constitucional. Por fim, aqueles diplomas internacionais ratificados entre a promulgação da Constituição federal e da Emenda Constitucional nº45/2004 seriam materialmente constitucionais em razão da formação de um bloco de constitucionalidade:

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Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como relator (RTJ 174/463-435 – RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa orientação, que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos, reconhecendo, para efeito de outorga dessa especial qualificação jurídica, tal como observa Celso Lafer, a existência de três distintas situações concernentes a referidos tratados internacionais:

  1. tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso pais aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da Constituição de 1988 (tais convenções internacionais revestem-se de índole constitucional, porque formalmente recebidos, nessa condição, pelo §2º do art. 5º da Constituição);
  2. tratados internacionais de direitos humanos que venham a ser celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso País venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC nº 45/2004 (essas convenções internacionais, para se impregnarem de natureza constitucional, deverão observar o “iter” procedimental estabelecido pelo §3º do art. 5º da Constituição); e
  3. tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso país aderiu) entre a promulgação da Constituição de 1988 e a superveniência da EC nº 45/2004 (referidos tratados assumem caráter materialmente constitucional, porque essa qualificada hierarquia jurídica lhes é transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade, que é “a somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, em função dos valores e princípios nela consagrados.[7]

Ainda mais: refere-se à necessidade de uma mudança drástica de pensamento sobre o tema. Não bastaria elevar o status de tais tratados para um nível supralegal. Seria um verdadeiro desprestigio aos diplomas internacionais que tratam sobre um tema de extrema relevância como são os direitos humanos. Porém, fez ainda uma ressalva muito importante. Aqueles diplomas internacionais que importem em supressão, modificação gravosa ou restrição às liberdades fundamentais constitucionais serão inevitavelmente suprimidos pela força constitucional que sopra em lado inverso. Ou seja, a supremacia da Constituição estaria sobre eles:

Tenho por irrecusável, de outro lado, a supremacia da Constituição sobre todos os tratados internacionais celebrados pelo Estado brasileiro, inclusive aqueles que versarem o tema dos direitos humanos, desde que, neste último caso, as convenções internacionais que o Brasil tenha celebrado (ou a que tenha aderido) importem em supressão, modificação gravosa ou restrição a prerrogativas essenciais ou a liberdade fundamentais reconhecidas e asseguradas pelo próprio texto constitucional, eis que os direitos e garantias individuais qualificam-se, como sabemos, como limitações materiais ao poder reformador do Congresso Nacional.

[...]

A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da República. Nessa condição, todas as leis e tratados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade normativa desse instrumento básico (RTJ 84/724 – RTJ 121/270-276 – RTJ 179/493-496). Nenhum valor juridico terá o tratado internacional, que, incorporado ao sistema de direito positivo interno, transgredir o texto da Carta Politica, como sucederia, p. ex., na hipotese de o Estado brasileiro subscrever tratados internacionais ofensivos e gravosos ao regime das liberdades públicas consagrado pela propria Lei Fundamental.[8]

Toda essa discussão levantada pelo ministro Celso de Mello encontra fundamento na tendência moderna internacional de se garantir primazia jurídica aos tratados internacionais sobre as leis internas quando tratarem sobre direitos humanos, atribuindo-lhe caráter constitucional, como já ocorre na Argenta, na Holanda, na França e no Paraguai.

De fato, o julgamento do Recurso Extraordinário de nº 466343-1/SP em 2008, levantou questões muito interessantes do ponto de vista da recepção de tratados internacionais sobre direitos humanos no Brasil. Cumpre ressaltar que a tese da supralegalidade do ministro Gilmar Mendes foi a vencedora. Mas, convém aqui analisar, de acordo com as tendências mundiais que assumem vigor maior a cada dia, qual seria o adequado status de tais diplomas internacionais. Haveria uma supralegalidade ou constitucionalidade, somente, como assumiu a Suprema Corte brasileira, ou se caminha para um bloco de supraconstitucionalidade? As respostas a tais indagações passam, necessariamente, pela concepção de poder constituinte defendida por qualquer estudioso do tema. Perduram as ideias originais de Emmanuel Joseph Sieyès? Ou, o neoconstitucionalismo redimensionou tais ideias? É o que será discutido a seguir.

3 PODER CONSTITUINTE E BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE

Com a teoria do poder constituinte busca-se a legitimidade do poder. Observa-se na história da humanidade que houve, sempre, uma preocupação em se estabelecer um poder legítimo, um poder que atendesse os anseios sociais, que organizasse as instituições. Fala-se, logicamente, de poder político. E como teoria surge no final do Século XVIII atrelada às Revoluções ocorridas nos Estados Unidos da América e na França.

Desenvolvem-se na mesma época os conceitos de soberania nacional e popular. A soberania nacional havia legitimado as realezas absolutas; agora, a inteligência de Sieyès, utiliza-se do conceito de Rousseau de “soberania popular” e o une ao de representatividade para chegar, ao término, ao poder constituinte do povo, este, portanto, criador, formador das instituições políticas, dos órgãos governativos e expressos na vontade do terceiro estado. Desta forma, a burguesia consegue “nacionalizar” o poder.[9]

O estudo do poder constituinte é fundamental para a compreensão do processo legitimador do modelo de Constituição adotado pelo Estado que funda, organiza. Pode-se dizer, portanto, que à ideologia do poder constituinte corresponde certo conceito de Constituição. Consequentemente, do ponto de vista formal, tem-se a estrutura do Estado e a consagração de direitos fundamentais no texto constitucional.

A Constituição seria o instrumento eficaz para consolidar os ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade na França. Nos Estados Unidos, a característica marcante é a de defesa das liberdades públicas, hoje conhecidas como direitos fundamentais. De qualquer forma, é de se considerar que a teoria do poder constituinte apresenta variadas versões, pelo que se pode concluir pela existência de duas teorias principais: a vertente estadunidense e a outra francesa.[10]

Para Vanossi, o poder constituinte cumpriria, basicamente, duas funções: a) cria um Estado, pelo que expressa um poder fundacional; ou, b) altera as formas já existentes de Estado por meio de um poder revolucionário.[11] Ora, tais funções não são levadas a termo pelos mesmos procedimentos em todos os Estados. Na França, foi fruto de ruptura com o Ancien Règime. Portanto, elaboração revolucionária, racionalista, iluminista, que rompia com o poder absoluto e instituía uma sociedade mais livre e igualitária (sic, liberal). Já nos Estados Unidos da América, foram os acordos, as negociações para a distribuição do poder político que determinou a tônica da formação do Estado.

Na França, o poder constituinte sofreu influência das forças revolucionárias, dado que surgiu como pacto, contrato estabelecido entre as mesmas, resultando na criação do um Estado em substituição ao modelo monárquico então existente. O titular deste poder é o povo, não há submissão a nenhuma ordem estabelecida anteriormente, ocorre a absolutização do poder e  dos valores políticos e levante o embate entre democracia e monarquia. Como parte da solução encontrada para afastar conflitos entre o poder “constituído” revolucionário e a monarquia ainda sobrevivente, instaura-se a supremacia do Parlamento. Os representantes do povo criam as normas que submeterão cidadãos e Estado.

A supremacia do Parlamento não foi realidade prestigiada nos Estados Unidos. Ao contrário, havia uma desconfiança em relação ao Parlamento, dado que era a Coroa britânica que emitia as normas a serem observadas pelas treze colônias. Jaime Cárdenas Gracia, citando John Wise, esclarece as etapas do processo constituinte nos Estados Unidos:

John Wise ha explicado que en todo proceso constituyente han de distinguirse tres etapas: el momento de la libertad, el del pacto social y el acto constitucional2 En el momento de la libertad se determina la “libertad civil” que corresponde a los

ciudadanos. Es decir, aquella parte de la libertad natural que permanece en poder de los individuos una vez que éstos han abandonado el estado de naturaleza para  entrar en la sociedad civil; se refiere obviamente a lo que hoy conocemos como los

derechos fundamentales.

En la segunda etapa, los distintos individuos de la comunidad ceden su soberanía o parte de ella a una entidad superior a cada uno de ellos y englobadora de todos, se constituye lo que llamamos pueblo o nación; mismo que se afirma como el único

sujeto titular de la soberanía en el Estado. En este contexto surge el concepto de “poder constituyente” cuya naturaleza inicial es de res facti, non iuris. Es decir, un poder político, existencial y fáctico que surge de la comunidad que decide darse una Constitución, cuya actuación no está constreñida por los límites del derecho previo, lo que no significa necesariamente la derogación total o absoluta de ese derecho, sino sólo de aquellas partes que se oponen materialmente al mismo.

En la tercera etapa, una vez creada o refundada la comunidad, habiendo surgido el soberano, da comienzo la última fase del proceso constituyente: el momento constitucional. La finalidad de la Constitución es evidente: reconocer los derechos fundamentales, establecer la organización política del Estado pero como un sistema de garantías de la libertad frente al poder político.[12]

Nos Estados Unidos, então, existia uma Supremacia da Constituição e não do Parlamento a vincular todos os poderes e instituições constituídos. E mais. Stephen M. Griffin afirma que não existia nenhuma Constituição escrita e com as características reunidas na de 1787, dos Estados Unidos, em nenhum país na época moderna.[13] A Constituição de 1787 pode ser considerada a primeira Constituição no sentido moderno do termo.

Brevemente apontadas as características do poder constituinte francês e estadunidense, cuida agora o tempo de tornar claro que no Brasil para a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88, o povo elegeu representantes (congressistas) que discutiriam e votariam o texto constitucional que passou a vigorar a partir de 05 de outubro de 1988. Seguiu o constituinte brasileiro processo de formação constitucional como os acima apontados ao considerar o poder do povo como inalterável e internamente observado (a soberania do povo estabeleceu a supremacia da Constituição).

Pois bem. Internamente, os Estados são regidos por normas constitucionais e infraconstitucionais (ver art. 59, da Constituição Brasileira de 1988), colocando as primeiras em posição de primazia na aplicação quando em confronto com as demais. Todavia, a Constituição também prevê a criação de normas a partir de negociações e acordos internacionais que devem ser seguidas pelos Estados que as adotarem (no Brasil, art. 5º, § 2º; art. 84, VIII, da CF/1988) que são chamadas de tratados ou acordos internacionais e podem assumir hierarquia de normas constitucionais ou não. Ora, segue-se que o conjunto das normas constitucionais é formado por normas expressas e, também, implícitas, escritas ou não e que se apresentarão como parâmetro de controle quando houver conflito entre elas e normas infraconstitucional. Nasce, desta forma, a ideia de bloco de constitucionalidade.

O bloco de constitucionalidade se refere às normas e aos princípios que, aparecendo formalmente no texto constitucional, ou implicitamente, são utilizadas como parâmetros de controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais, por serem normas de natureza Constitucional.[14] Ou, na linguagem de Sergio Iván Estrada Vélez

Por Bloque de Constitucionalidad se puede entender, en términos simples, el conjunto de norma que configuran una unidad constitucional que es empleada como parámetro de constitucionalidad de las restantes normas dei ordenamiento. Existen dos criterios de identificación de esas normas jurídicas de naturaleza constitucional. EI primero, que podríamos denominar formal, según el cual una norma es constitucional por estar en el texto de la Constitución o por existir otra norma que expresamente así lo indique. Este criterio, por su fácil comprensión (aquellas normas que están en el texto de la Constitución o que la misma indica que deben ser consideradas como constitucionales) y por carecer de actitud para explicar el problema de la existencia de normas materialmente constitucionales, se ha dejado de lado. El segundo, denominado criterio material, busca la conformación del bloque de constitucionalidad no por la autorización de una norma constitucional sino por el contenido mismo de la norma pretendida como constitucional.[15]

Indica-se, assim, quais normas integrarão esse bloco por sua natureza e quais as que serão alocadas em outra topológica situação no sistema jurídico.

Embora sendo evidente que a noção de bloco de constitucionalidade é alterada em virtude das experiências constitucionais dos Estados e de sua jurisprudência constitucional, no Brasil, após a Constituição de 1988 e, especialmente, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, o conceito acima desposado possui inteira aplicabilidade. O presente argumento foi reforçado quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 466343-1/SP, julgado em 2008, no qual se inseriu os tratados internacionais, por força do art. 5º, § 3º, da CF/1988, com status de norma constitucional.

No Brasil, portanto, o que é reconhecido pela doutrina e, a partir daquele julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, os tratados que versem sobre direitos humanos poderão ser incluídos entre as normas que compõem o bloco de constitucionalidade, bastando que passem a integrar o sistema jurídico interno na forma descrita pelo citado art. 5º, § 3º, da CF/1988. Desta forma, entendia-se tudo ao menos acomodado, a decisão da Corte Constitucional brasileira dera o referendum sobre a questão. Pergunta-se, no átimo: e a supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos? Tema esquecido? Superado foi?

4 SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS HUMANOS

A ideia de bloco de supraconstitucionalidade é intuitiva agora. Seria o conjunto de normas supraconstitucionais expressa em diplomas internacionais que versem sobre direitos humanos. Relativamente a estes tratados internacionais sobre direitos humanos, são correntes na doutrina brasileira, três abordagens: a) tese da legalidade, pela qual teriam a mesma hierarquia das leis, tese defendida pelo Supremo Tribunal Federal por muitos anos; b) tese da constitucionalidade. Aqui os tratados sobre direitos humanos ocupariam a mesma posição das normas constitucionais. Entre os doutrinadores que defendem esta tese podemos encontrar Flavia Piovesan, Valério de Oliveira Mazzuoli, e Antonio Augusto Cançado Trindade. Vale ressaltar que o texto originário da Constituição de 1988, no artigo 5º, § 2º, previa que as normas internacionais ampliassem o rol de direitos e garantias fundamentais, admitindo, portanto, a tese da constitucionalidade. Com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, de 2004, o artigo 5º, § 3º determina que as normas discutidas possam ocupar o status de norma constitucional, e c) a teoria da supra legalidade, mais recente, tem como destaque Gilmar Mendes, cujo pensamento foi apontado no início do texto.

Por outro lado, há quem defenda o status de supraconstitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos. O maior expoente nacional da corrente que entende as convenções e tratados que versam sobre direitos humanos como supraconstitucionais é Celso de Albuquerque Mello, ministro da Corte brasileira, baseado na tese de que é comum a todos os ordenamentos a proteção aos direitos e garantias que resguardam a personalidade humana e sua convivência política. O Ministro entende que nem as Emendas Constitucionais teriam efeitos regulares para revogar os tratados e convenções subscritas pelo Estado e em matéria de direitos humanos.

Adotada a tese de Celso de Mello, o Tribunal Constitucional pátrio teria construído jurisprudencialmente o bloco de supraconstitucionalidade, já que existiriam normas jurídicas[16] com status acima, supra, sobre constitucionais. A tese pode parecer heresia quando se aproxima de ideias dogmáticas como soberania, governo do povo, supremacia da constituição, a indicarem que não devem ser adotadas normas superiores às Constituições nacionais.[17] Todavia, a realidade da União Europeia, as investidas do Mercosul, a globalização, indicam que há caminhos a serem percorridos, sem a destruição do edifício dogmático do final do Século XVIII com suas teses de segurança jurídica, legicentrismo, além das já citadas.

De fato, na União Europeia, a maioria dos países entende que deve se submeter às decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Por outros termos, as decisões desse Tribunal devem ser respeitadas e aplicadas internamente por seus signatários, independentemente de adequação constitucional interna constitucional, já que o Tribunal é responsável pela interpretação e aplicação da Comissão Europeia dos Direitos do Homem. No sistema brasileiro, o grande problema se apresenta quando se busca aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Realizado em San José da Costa Rica em 1969 e ratificado pelo Brasil em 1992, foi constitucionalmente acolhido pelo art. 5º, § 2º, da CF/1988. O Brasil, então, reconheceu a Corte Interamericana de Direitos Humanos como guardiã da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Em assim sendo, a tese da supraconstitucionalidade não é tão herética quanto aparenta. A discussão não se encontra fechada, acabada.

5 CONCLUSÕES

Após a abordagem do tema proposto – hierarquia dos tratados sobre direitos humanos e supraconstitucionalidade no Brasil, basicamente – não surgem, ao que se entende, dúvidas quanto à possibilidade de reconhecimento de um bloco de supraconstitucionalidade. Infelizmente, em terrae brasilis, não se tem uma tradição forense quanto a debates constitucionais, discussões levantadas em processos judiciais ou administrativos que envolvam a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Ora, mais relevante é ainda a ausência de debate sobre normas internacionais, ressalvados os processos de competência da Justiça Federal, a representar tímida incursão no tema em relação às demais demandas.

Este quadro, sem olvidar de outras causas, demonstra a dificuldade de se compreender termos como globalização, cidadania multicultural, direito global, supraconstitucionalidade. Romper  com os paradigmas sedimentados ao longo do tempo, a partir das Revoluções do final do Século XVIII, não é tarefa fácil. A revisão de conceitos – soberania, poder político, supremacia constitucional -, por exemplo, não se faz da noite para o dia. Necessário se apresenta profunda compreensão do fenômeno de juridicização das relações sociais que ora se estabelecem no mundo. Hoje a legalidade, a supralegalidade e a constitucionalidade; amanhã, quem sabe, a supraconstitucionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional – São Paulo: Editora Malheiros, 2010.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em frança. Tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª ed., 1997.

FAVOREU, Louis e RUBIO LLORENTE, Francisco. El bloque de la constitucionalidad.  Madri: Cuadernos  Civitas I, 1991.

GRACIA, Jaime Cárdenas. El significado del poder constituyente. Revista El Estado Social. Disponível em: http://www.fusda.org/Revista17%20y18/EL%20SIGNIFICADO%20DEL%20PODER%20CONSTITUYENTE.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2013.

GRIFFIN, Stephen M. Il costituzionalismo americano: dalla teoria alla politica. Traduzione di Dimitri Girotto – Bologna: Il Molino Saggi, 2003.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira; GOMES, Luiz Flávio. Direito supraconstitucional. do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

___________ Prisão civil por dívida e o pacto de San José da Costa Rica: de acordo com o novo código civil brasileiro (lei nº 10.406/2002). Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 466343-1/SP. Voto do ministro Gilmar Mendes.

VANOSSI, Jorge Reinaldo. Estudios de teoria constitucional – México: UNAM, 2002.

VÉLEZ, Sergio Iván Estrada. Los principios jurídicos y el bloque de constitucionalidade. Medellin: Sello Editorial, 2007.

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Sobre o autor
Francisco Lisboa Rodrigues

Procurador do Município de Fortaleza, Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UNIFOR, Pós-Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professor de Direito Constitucional e de Direito Processual Constitucional na FAC e FANOR.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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