Children have many ways of telling who hurt them and how. Our legal system has many ways of silencing them – Eileen King – Executive Director, Child Justice[3]
Resumo: Neste texto demonstraremos como a Síndrome da Alienação Parental se vincula à Violência Doméstica, transformando-se em sua “irmã siamesa”. Apresentamos dados estatísticos acerca do flagelo da Violência Doméstica e as estratégias jurídicas utilizadas para a proteção de agressores e abusadores, inclusive pelo manejo da abusive litigation, que não mereceu tratamento sério do juvenil CPC. Estudamos o PL n. 4488, de motivação pouco nobre e gerador de efeitos perversos, destinado a criminalizar aqueles que acusam supostos agressores e abusadores de menores os quais não conseguem “provar” cabalmente os fatos. Apontamos a flagrante inconstitucionalidade do PL n. 4488 por malferimento do substantive due process of law.
Abstract: In this paper we demonstrate how the Parental Alienation Syndrome is linked to domestic violence, turning into its "sister Siamese ." Present statistical data about the scourge of domestic violence and the legal strategies used to protect offenders and abusers, including the management of abusive litigation , which did not deserve serious treatment of juvenile CPC . We studied the PL n . 4488, lacking noble motivation and generator of perverse effects , intended to criminalize those who accuse alleged abusers and abusers of children and can´t "prove" the facts fully . We pointed out the blatant unconstitutionality of PL n . 4488 by offending the substantive due process of law.
Introdução (breve nota a respeito da AP e da SAP)
Como já assinalado em texto anterior por nós produzido[4], a alienação parental (AP) – ou aquilo que alguns denominam como síndrome da alienação parental (SAP)[5] – há muito vem sendo refutada em países de larga tradição científica, como Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Portugal e Argentina, a.e. embora, curiosamente, seja uma quase unanimidade no meio jurídico da nação Tupinambá.
Importantes sociedades médico-científicas e de saúde mental de todo o mundo, tais como a OMS – Organização Mundial da Saúde, a APA – American Psychological Association, a Associação Americana de Psiquiatria e a AEN – Associação Española de Neuropsiquiatria, negam enfaticamente a existência da SAP ou, no mínimo, condenam energicamente seu uso.
Autorizadas vozes denunciam, também em Portugal, a falácia grandiloquente que permeia o tema, afirmando Sottomayor, com propriedade singular:
“Em 2006, o Conselho Nacional de Juízes dos Tribunais de Família e de Menores, nos EUA, qualifica a SAP como uma “síndrome desacreditada pela comunidade científica”, que conduz os tribunais a assumir que os comportamentos e atitudes das crianças em relação ao progenitor dito “alienado” não tem fundamento na realidade. A SAP também desloca a atenção dos comportamentos do progenitor abusivo para o progenitor dito alienador, não averiguando se foi o progenitor alienado que causou directamente as respostas da criança, actuando de forma violenta, desrespeitosa, intimidatória, humilhante ou desonrosa em relação à criança ou em relação ao outro progenitor, favorecendo os agressores de crianças nos litígios pela sua guarda. No mesmo sentido, nos EUA, a Organização Nacional de Mulheres (NOW), emitiu um comunicado, em 26 de outubro de 2006, condenando a utilização da SAP nos litígios judiciais, recomendando que qualquer profissional na área da proteção dos direitos das mulheres e das crianças, deve denunciar a utilização da SAP por ser pouco ética, inconstitucional e perigosa”[6].
Por vezes não raras, atrás do nebuloso conceito da “síndrome de alienação parental”, esconde-se suavizada sua expressão reduzida denominada “alienação parental”, um disfarce burlesco daquela, mas visando o mesmo objetivo.
Neste sentido, alerta a citada autora lusitana:
“As críticas dirigidas a Richard Gardner deram origem a uma mudança, entre os investigadores, do conceito de síndrome de alienação parental”, abandonado por ser tautológico e simplista, para uma nova formulação da teoria designada por “alienação parental” ou “criança alienada”, conceitos que se referem a um fenômeno que afecta uma minoria de crianças, no contexto do divórcio e dos litígios de guarda[7].
(...)
A tese da alienação parental, apesar de ser mais moderada e centrada na criança do que a tese da síndrome de alienação parental, e de pressupor uma avaliação prévia e realista das múltiplas causas para a rejeição da criança, acaba por conter as ideias pré-concebidas de RICHARD GARDNER, não distinguindo a alienação, como adaptação saudável e natural às circunstâncias, da alienação que resulta de instigação e influência indevida do progenitor preferido, considerando patológico o comportamento do progenitor que pretende proteger a criança da violência e contribuindo para o obscurecimento das alegações de abuso sexual e violência doméstica”[8].
E, na sequência, destaca a doutrinadora d’além-mar:
“apesar de os defensores da alienação parental se demarcarem da posição de Gardner de “psiquiatrização” do comportamento da mãe alienadora, visto como patologia ou doença, continuam a realçar aquilo que designam por factores inconscientes ou subconscientes que afectam o comportamento das mães alienadoras, referindo, por exemplo, que o comportamento alienador é uma “consequência de problemas psicológicos profundos do genitor”, que causam uma “profunda desconfiança e medo do ex-cônjuge”, e que o progenitor alienador acredita, com frequência, que “o progenitor rejeitado é perigoso para a criança, de alguma forma: violento, física ou sexualmente abusivo ou negligente”[9].
Como exaustivamente consignado noutra ocasião[10], a intelligentzia brasileira, desconsiderando o movimento internacional que se mostra sólida e frontalmente contrário à adoção dessas “teorias” – tidas como pseudociência por autores de nomeada e denunciadas como fomentadoras do adultismo, do preconceito de gênero e do backlash –, deu substrato à edição da Lei n°12.318/2010, passando a AP (ou SAP) [11], agora verdade incontestável, a ser lamentavelmente aplicada por nossas cortes de Justiça.
O que pretendemos agora discutir é a existência, ou não, de laços envolvendo a AP/SAP e a violência doméstica, esse flagelo que se abate sobre crianças e mulheres. Haverá, como intuímos, uma ligação estreita a envolver estes dois fenômenos? Qual será esse liame?
A verdade acerca da violência doméstica praticada contra mulheres e crianças
As estatísticas concernentes à prática da violência doméstica envolvendo os hipossuficientes (crianças e adolescentes), seja ela de caráter sexual ou não, mostram-se dramáticas.
Conforme relatório veiculado pela Childhood Brasil[12], “em 2014, foram registradas 91.324 denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes. O número de denúncias não corresponde ao número de casos de fato constatados, mas dá uma ideia do tamanho do problema[13]”.
A negligência representaria 73% das denúncias, seguida pela violência psicológica (50%), violência física (43%) e violência sexual (26%). Os dados coletados revelam ainda que “quando ocorre a violência sexual, outros direitos também já foram violados. Ou seja, a criança ou o adolescente já foram neglicenciados e possivelmente passaram por episódios de violência física e psicológica”[14].
A também prestigiada Child Justice (tomando como base os dados fornecidos por órgãos de controle e combate à violência doméstica, tais como a American Psychological Association e a World Health Organization), denuncia[15] um quadro de verdadeira guerra praticada em face das pessoas do sexo feminino. São três mulheres assassinadas todos os dias por parceiro ou ex-parceiro masculino nos E.U.A. Ao menos 25% das mulheres americanas será vítima de violência grave cometida por parceiro homem ao longo da vida. Cerca de 81% das mulheres são perseguidas pelo parceiro atual ou anterior e que também são abusadas fisicamente por esse parceiro. Mais de 2/3 das mulheres do mundo inteiro vai ser vítima de abuso físico e/ou sexual por parte de um parceiro íntimo durante suas vidas. Em quase 100% dos casos de violência doméstica, há abuso financeiro praticado pelo homem, sendo este o motivo principal para as sobreviventes permanecerem ou regressarem ao relacionamento, uma vez que o abusador controla o fluxo de dinheiro na família, não havendo meios dela (a vítima mulher) libertar-se da relação. E, mais grave e inexplicável, são cerca de 10 milhões de crianças expostas à violência doméstica a cada ano[16].
A brutalidade extraída dos números postos é desoladora. E isso tudo levando em consideração a estimativa de que apenas 25% dos casos de violência física sofrida pelas mulheres são notificados às autoridades.
Esses dados são corroborados pelas informações contidas nas Diretrizes Nacionais – Feminicídio, documento organizado pela ONU Mulheres[17], com apoio do Governo Federal. No seu bojo encontra-se o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI), de julho de 2013, que retratou a situação da implementação da Lei Maria da Penha, constatando-se “o reduzido número de serviços e sua concentração nas capitais, recursos humanos incompatíveis com o volume de atendimentos e procedimentos que tramitam por seus espaços, aliados à deficiência na qualificação dos profissionais e à inexistência de sistemas de informações que permitam monitorar e avaliar as respostas institucionais e sua eficácia no enfrentamento à violência contra as mulheres. O documento conclui que a aplicação da Lei Maria da Penha ainda se faz de maneira parcial e recomenda aos governos estaduais, ministérios públicos, defensorias públicas e tribunais de justiça que façam mais investimentos financeiros, técnicos e materiais para melhor implementação e aplicação da Lei Maria da Penha e outras iniciativas para o enfrentamento à violência contra as mulheres (SENADO FEDERAL, 2013)[18]”.
Acredita-se que, no Brasil, apenas uma pequena porcentagem dos casos seja objeto de denúncia, uma vez que a maioria das vítimas acaba por não notificar a violência sofrida, apostando na certeza da ineficiência do sistema punitivo, por medo ou vergonha.
Dos mais de 250 mil casos de violência contra a mulher que chegaram ao conhecimento ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) no período 2011- 2015, 42,8% (115.305) ainda estão em fase de inquérito policial, ou seja, o agressor sequer se transformou em réu e dificilmente sofrerá qualquer punição. Ingressam no Poder Judiciário de São Paulo, todos os anos, em decorrência da emblemática Lei Maria da Penha, em média, 53 mil novos processos. “Para a juíza Teresa Cristina Cabral, da 2.ª Vara Criminal da Comarca de Santo André, o número dos casos ainda em investigação pela polícia é resultado da falta de profissionais nas delegacias para investigar os crimes - e também de uma cultura machista que dá pouco valor à palavra da vítima. ‘Ainda há muito preconceito. Na investigação se acredita que é preciso achar testemunhas, provas. E na maioria das vezes elas não existem: a gente precisa lidar com a violência doméstica da forma como ela acontece, que é, na maioria das vezes, a palavra da vítima contra a do agressor’”[19].
A comprovação do abuso contra menores, seja ele físico, emocional ou sexual, é ainda mais difícil, até porque, segundo os Tribunais Portugueses, “a maior parte dos abusos sexuais são praticados, em ambiente familiar, pelo pai ou outros membros masculinos da família, e muitas vezes não deixam marcas físicas no corpo da criança, detectáveis em exames de medicina legal. A declaração da vítima de crimes violentos praticados, dentro da família, aos quais ninguém assiste, para além da vítima e agressor, é a prova rainha, nestes processos, conforme tem atestado a jurisprudência”[20].
Em razão disso, como referido com inegável acerto pela consagrada jurista lusitana Maria Clara Sottomayor, “os casos de alegação de abuso sexual acompanhadas de relatos infantis do mesmo abuso exigem dos Tribunais e das entidades que coadjuvam a função judiciária a atitude de colocar o interesse da criança acima dos interesses dos adultos. Por respeito para com a criança à proteção do Estado e da sociedade (art. 69º., n°2 da CRP), o sistema tem que presumir a boa-fé da pessoa que faz a acusação ou a alegação de abuso sexual e ponderar, num processo tutelar cível, o testemunho da criança, bem como os relatórios feitos pelos psicólogos ou pediatras que a seguem, mesmo que os relatórios do Instituto de Medicina Legal tenham sido inconclusivos”[21].
Violência doméstica, SAP e o abusive litigation
Domestic violence is about power and control[22]
Em nossa leitura, não há dúvidas acerca da íntima relação entre AP/SAP e violência doméstica. Não que antes do aparecimento de Gardner e seus apóstolos inexistissem maus tratos infligidos às crianças e mulheres, em níveis já alarmantes. Mas é absolutamente inegável que a AP/SAP – e sua insistente e acientífica utilização – empresta um refinamento ímpar à violência emocional praticada pelo agressor, o que se dá com a conivência do sistema jurídico brasileiro que não combate efetiva e eficazmente a litigância abusiva.
Vem a boa doutrina denunciando o uso do aparato estatal, por meio de sucessivos e intermináveis processos judiciais, como uma das formas de manutenção do controle e poder dos agressores, mesmo anos após a dissolução da relação do casal [23].
Requerimentos quanto à custódia dos filhos, reversão da guarda, direito de visitas e pensão alimentícia estão entre os expedientes mais utilizados para esse fim, cujo objetivo imediato ou mediato consiste em aterrorizar e coagir suas vítimas, assim como obter importantes concessões quanto às questões patrimoniais[24],[25].
Tal prática vem sendo denominada por muitos de abusive litigation ou “litigância abusiva”.
Consiste a abusive litigation em táticas processuais utilizadas pelos agressores a fim de controlar, assediar, intimidar, coagir e empobrecer os “sobreviventes”, sem qualquer apoio factual, isto é, sem que haja suporte na realidade[26].
Litígios judiciais na seara do Direito de Família costumam ser emocional e psicologicamente desgastantes sob distintos aspectos. Quando tal discussão se dá, porém, num contexto de violência doméstica, deixa de ser apenas “altamente conflituosa”, passando a uma forma de abuso emocional e psicológico, um padrão comportamental que deve ser reconhecido[27].
Nesse ambiente de violência doméstica e litigância abusiva, segundo qualificados autores, as alegações de alienação parental vêm representando uma devastadora ferramenta nas mãos de abusadores.
No que respeita especificamente à SAP ou AP, de acordo com Maria Clara Sottomayor[28], nos processos envolvendo denúncia de abuso sexual versus alegação de alienação parental, ocorreria o que se chama de “método da inversão lógica ou raciocínio circular[29]” em que a recusa da criança ao convívio com o progenitor seria o fundamento do diagnóstico de SAP e, por sua vez, a acusação de abuso sexual apresentado pela mãe, o indício definitivo a embasar o diagnóstico. Com a “confirmação” da existência da SAP, as acusações de abuso sexual seriam automaticamente rotuladas como falsas.
Propõem os “gardneristas”, portanto, justamente o contrário do que recomendam o bom senso e a lógica. Parte-se da presunção de falsidade das alegações de violência e abuso sexual, quando o correto seria, sem dúvidas, aplicar o princípio da maior proteção à criança, até porque em risco sua vida, saúde, integridade e liberdade.
Também não se pode esquecer que o abuso sexual, as mais das vezes, não deixa marcas físicas e tende a ser desconsiderado pela falta de formação especializada dos Magistrados e demais profissionais envolvidos na sua apuração. A gravidade resta potencializada quando o abuso é perpetrado por pessoas próximas da criança, fazendo ruir sua segurança e identidade. É da boa doutrina:
“Os danos psíquicos sofridos pelas vítimas são mais graves quando o abuso é praticado por um adulto de referência da criança, gerando o dano da traição, a dissociação da personalidade, a perda de autonomia e da sensação de segurança, em que o corpo e o lar são identificados como fonte de perigo. A sociedade ainda não consciencializou estes danos, que a ciência equipara ao stress pós-traumático sofrido pelas vítimas do Holocausto, de tortura e dos veteranos da guerra. Perante danos desta dimensão, não se compreende, a não ser por uma ignorância censurável nos dias de hoje, que os Tribunais e os profissionais de psicologia, que coadjuvam a função judiciária, nos processos de regulação de responsabilidade parentais, encarem as alegações de abuso sexual com ligeireza e facilitismo, acabando por impor visitas à criança ou entregar a guarda ao progenitor suspeito de abuso sexual, com base em diagnósticos de doenças psicóticas atribuídas à mãe e à criança elaborados por psicólogos sem habilitações para o efeito e sem perícias médicas rigorosas”[30].
O prestígio de Gardner, o criativo inventor da SAP, desapareceu quando sua insólita “teoria” desmoronou frente a estudos científicos demonstrando que, no fundo, sua proposta possuía um significado ideológico evidente: “a menorização das crianças e a discriminação de gênero contra as mulheres”, sem mencionar os interesses mais mesquinhos e econômicos igualmente inescondíveis por detrás dessa pantomima.
Gardner e seus asseclas desdenhavam as denúncias de abuso sexual sofrido por crianças em processos de divórcio, “tornando patológico o exercício de direitos legais por parte da mulher que defende os seus filhos”, contribuindo para a desvalorização da palavra das crianças e para a invisibilidade da violência praticada contra as mães e seus filhos. A SAP vem sendo utilizada, também nos foros do Brasil, “como estratégia defensiva dos agressores de mulheres e dos predadores sexuais, uma forma de explicar a rejeição da criança em relação a um dos progenitores ou para invalidar alegações de violência ou de abuso sexual contra este progenitor, deslocando a culpa para o progenitor protector”[31].
Aliás, quanto à ideia das denúncias falsas de abuso sexual em divórcios litigiosos, essa “foi desmentida por um estudo norte-americano feito em 1990, que avaliou 9000 divórcios em 12 Estados, o qual demonstrou que só em 2% dos divórcios com litígio pela guarda de crianças é que houve alegações de abuso sexual, e que, dentro deste valor de 2% dos divórcios, só cerca de 5 a 8% das acusações foram denúncias falsas. A probabilidade de a acusação ser verdadeira, em processos de regulação das responsabilidades parentais, é igual às acusações feitas noutros contextos que nada tem a ver com custódia de crianças e divórcio. Nos EUA, demonstrou-se que estas acusações de abuso sexual, nos processos de regulação das responsabilidades parentais, não só não tem carácter epidêmico como também não são sempre feitas pela mãe. Com efeito, só em menos de metade dos casos de abuso, é que a denúncia é apresentada pela mãe. Em Espanha, um estudo de 530 sentenças penais, levado a cabo pelo Conselho Geral do Poder Judicial, concluiu que só uma das denúncias por violência de gênero, equivalente a 0,19% do total, era falsa”[32].
Isso explica, em boa parte, a enorme aceitação da SAP entre os acusados de abusos em desfavor de seus filhos[33]:
“O sucesso da tese da síndrome de alienação parental reside no facto de vivermos, ainda, num ambiente social e judicial que não está consciente da frequência deste fenômeno (do abuso sexual de crianças), em famílias de todas as classes sociais, e que não tem preparação para enfrentar essa realidade. Esta tese, que presume a falsidade das acusações de abuso sexual contra o progenitor da criança, constitui, também, um instrumento utilizado na luta judicial e no discurso social, quer para promover a ideia positiva e impoluta de paternidade, favorecendo, em geral, os pais-homens na luta pela guarda dos filhos, quer como uma estratégia de defesa daqueles que, em concreto, são acusados de abusarem ou de maltratarem seus filhos”[34].
Não está aqui se afirmando, irresponsavelmente, que todos aqueles que se dizem “alienados”[35] são abusadores ou agressores. O fato inegável, porém, é que a criminalização da SAP (que, reafirma-se, não existe) será uma poderosa ferramenta de defesa e inversão de “culpa” nas mãos de reais abusadores[36].
Um Projeto de Lei para a criminalização da SAP: a denegação da justiça
Para o efeito de regulamentar a relação da criança com o progenitor sem a guarda, ninguém se pode substituir à voz da criança[37]
Não faltam exemplos históricos de tentativas, algumas bem sucedidas, de “domesticar” as mulheres e dizimar a parcela que insiste em rebelar-se, desobedecer e questionar o poder masculino. Para demonizar a recalcitrante, basta declarar-se herética qualquer descrença nos postulados da deificação masculina (sim, Deus é homem!). A patologia cultural possui raízes antigas e profundas, como se vê.
Assim, no final do século XVI, quando da dominação espanhola em Portugal, fez o habilidoso rei Felipe publicar as Ordenações Filipinas (ou Código Filipino), que se constituía, na verdade, numa arrumação das Ordenações Manuelinas, com alguma modificação.
O Código é dividido em 5 Livros e um Aditamento. O Livro que nos interessa é o Quinto, aquele que cuida das penas graves impostas aos hereges, apóstatas, blasfemos, feiticeiros e sodomitas.
Neste Livro Quinto, em especial, há incontáveis títulos destinados à preservação da honra (só masculina), destacando-se o Título XXXVIII, bastante utilizado à época da edição do Código.
Dizia a lei de então:
“Título XXXVIII - Do que matou sua mulher, pola achar em adultério”
“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella, como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero Fidalgo, ou nosso Dezembargador, ou pessoa de maior qualidade”.
“E não somente poderá o marido matar sua mulher e o adúltero, que achar com ella em adultério, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe cometerão adultério”.
Hereges, apóstatas, blasfemos, feiticeiras, sodomitas e adúlteras, a todos (ou a todas?) eram reservadas “penas exemplares” naqueles tempos sombrios, sendo lícito (portanto, não punível) o homicídio da adúltera e seu amante, se “pegos no ato” ou se for “certo que cometerão o adultério”, não explicando a lei, vale registrar, como se dá esse exercício de adivinhação e futurologia.
Mas, é claro, mesmo aqui há de se respeitar a hierarquia. Se o “traído” for peão e o outro um Fidalgo, como diz a lei, daí o homicídio (do homem adúltero) é proibido!
Muitos anos antes da publicação das Ordenações Filipinas, fez-se editar um livro aterrador, um “manual de ódio, tortura e morte”, ironicamente escrito para a glória de Deus, uma espécie de “bíblia da inquisição”, conhecida como Malleus Maleficarum (ou Martelo das Bruxas).
Nele, a Igreja Católica, representada pelos dominicanos alemães Heirich Kraemer e James Sprenger, deixa ainda mais explícita a marca da crueldade masculina, o desprezo, a desconsideração e o temor nutrido em relação às mulheres, naquele momento simbolizadas nas bruxas e feiticeiras.
De acordo com a arguta e feliz análise de Rose Marie Muraro, narrando a repressão sistemática do feminismo, “poder, competitividade, conhecimento, controle, manipulação, abstração e violência vêm juntos. O amor, a integração com o meio ambiente e com as próprias emoções são os elementos mais desestabilizadores da ordem vigente. Por isso é preciso precaver-se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de interferir nos processos decisórios, fazer com que ela introjete uma ideologia que a convença de sua própria inferioridade em relação ao homem”[38].
O fio condutor de toda essa tragédia pode ser resumida, não sem riscos de simplificação exagerada, na expressão “poder”.
Reeditamos, de tempos em tempos, os nossos próprios Malleus, fazendo com que as mulheres sejam expostas a toda espécie de crueldade, com requintes e sofisticação próprias da “evolução” cultural que nos acompanha. E, o mais espantoso, elas mesmas (as mulheres) acabam por acreditar que, de alguma maneira, contribuíram para que isso acontecesse, como se não fossem, de fato, merecedoras de respeito e dignidade plena “introjetando”, sem perceber, a ideologia da inferioridade de que nos fala Muraro.
A nova tentativa brasileira de transformar a SAP em crime é a representação acabada de um antigo ditado árabe, assim sintetizado: a ignorância é vizinha da maldade.
Uniram-se ignorantes, maldosos e interesseiros para assassinar a adúltera e para queimar as bruxas do século XXI, aquelas que, por serem capazes de amar e defender seus filhos, desestabilizam o poder masculino e, por isso, são tachadas de “alienadoras”.
Não existe qualquer sofisticação no argumento apresentado pelos formuladores da obtusa lei, mas desfazer o absurdo exige energia e cuidados extremos.
Para rememorar, os indiscutivelmente bem articulados defensores da SAP no Brasil (grupos de interesse em sua imensa e esmagadora maioria formada por pessoas do sexo masculino) já haviam buscado a criminalização dos “alienadores” (ou, melhor dito, das “mães alienadoras”) quando da edição da não pouco temerária Lei 12.318/2010[39]. Na ocasião, fizeram inserir no projeto de lei dispositivo que alterava o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Fed. 8.069/90), criando “novo tipo penal”, tentativa essa refreada pelo Ministério da Justiça, seguido de veto da então Presidente da República[40].
No fundamento ou razões do veto, consignou-se:
“O Estatuto da Criança e do Adolescente já contempla mecanismos de punição suficientes para inibir os efeitos da alienação parental, como a inversão da guarda, multa e até mesmo a suspensão da autoridade parental. Assim, não se mostra necessária a inclusão de sanção de natureza penal, cujos efeitos poderão ser prejudiciais à criança ou ao adolescente, detentores dos direitos que se pretende assegurar com o projeto”[41].
Porém, não satisfeitos, os grupos de pressão vinculados aos “alienados” fizeram promover a tramitação, junto ao Congresso Nacional, do PL 4488[42] que busca, mais uma vez, criminalizar a prática de suposta alienação parental, agora acrescendo artigos à malfadada Lei 12.318/2010.
Assim estabelece o infeliz projeto:
“O Art. 3.º da Lei 12.318/2010 passa a vigorar com os seguintes parágrafos e incisos: Art. 3.º – ......................................... § 1.º - Constitui crime contra a criança e o adolescente, quem, por ação ou omissão, cometa atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar a convivência com ascendente, descendente ou colaterais, bem como àqueles que a vítima mantenha vínculos de parentalidade de qualquer natureza. Pena – detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos § 2.º O crime é agravado em 1/3 da pena: I – se praticado por motivo torpe, por manejo irregular da Lei 11.340/2006, por falsa denúncia de qualquer ordem, inclusive de abuso sexual aos filhos; II – se a vítima é submetida a violência psicológica ou física pelas pessoas elencadas no § 1.º desse artigo, que mantenham vínculos parentais ou afetivos com a vítima; III – se a vítima for portadora de deficiência física ou mental; § 3.º Incorre nas mesmas penas quem de qualquer modo participe direta ou indiretamente dos atos praticados pelo infrator. § 4.º provado o abuso moral, a falsa denúncia, deverá a autoridade judicial, ouvido o ministério público, aplicar a reversão da guarda dos filhos à parte inocente, independente de novo pedido judicial. § 5.º - O juiz, o membro do ministério público e qualquer outro servidor público, ou, a que esse se equipare a época dos fatos por conta de seu ofício, tome ciência das condutas descritas no §1.º, deverá adotar em regime de urgência, as providências necessárias para apuração infração sob pena de responsabilidade nos termos dessa lei. Art. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação” (grifos nossos).
O texto é um verdadeiro teratismo, desde a forma, até a estrutura, chegando aos seus insinceros objetivos.
Primeiro, agride-se sem piedade a gramática. Não há sentido algum dizer-se “Constitui crime contra a criança e o adolescente, quem, por ação ou omissão, cometa atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar (...)”. Se querem amedrontar inocentes, destroçar famílias e colocar na cadeia mães que defendem os filhos, que pelo menos respeitem a língua portuguesa e a lógica mais rasteira. Poderiam dizer, melhor, “pratica crime quem, ...”. Mesmo assim logo à frente, teríamos incontornáveis problemas de concordância e regência, mas isso tudo pouco lhes importa.
Depois, vêm os problemas decorrentes da ilógica estrutura do projeto. No afã de punir as “infratoras” de qualquer maneira, descuraram dos requisitos mínimos que devem ser observados na elaboração de qualquer texto desta natureza.
Não pode uma lei que pretenda introduzir uma nova modalidade de “crime” (que, por definição, trabalha com tipos fechados, para justamente evitar interpretações extensivas que surpreendam os destinatários da norma) conter tamanha imprecisão.
“Cometer atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar a convivência com ascendente, descendente ou colaterais, bem como àqueles que a vítima mantenha vínculos de parentalidade de qualquer natureza” é de uma ambiguidade sem paralelo, é condenar por “achalogia”.
Veja-se que, pela péssima redação do projeto, mesmo que haja motivos para impedir a visita do progenitor ao filho, como por exemplo no caso de ser ele contumaz agressor da criança, incidirá a mãe que protege o pequeno nas penas previstas na lei, por “dificultar” a convivência. Haverá absurdo maior?
Há outras tantas impropriedades. Quem dará a medida da “intuição”? Qual o conceito de “dificultar ou modificar a convivência”? Não entregar o filho para a visita do pai que se atrasa reiterada e imotivadamente por horas caracteriza “dificultar”? Mudar de endereço, de cidade, casar novamente, ser feliz implica em “modificar a convivência”? Os chimpanzés, aqueles primos distantes, estão entre os “colaterais” previstos na lei? Serão eles também vítimas de alienação parental? Qual a extensão da expressão “bem como àquele que a vítima mantenha vínculos de parentalidade de qualquer natureza”?
Não poderia faltar no projeto, como é óbvio, a figura agravada do crime. Em três hipóteses, que se desdobram noutras tantas, é prevista pena mais grave: (I) se o motivo for torpe, se houver irregular manejo da Lei n. 11.340/2006, por falsa denúncia de qualquer ordem, inclusive de abuso sexual aos filhos; (II) se a vítima é submetida a violência psicológica ou física pelas pessoas elencadas no § 1.º desse artigo, que mantenham vínculos parentais ou afetivos com a vítima; (III) se a vítima for portadora de deficiência física ou mental.
Novamente, impera a nebulosidade. O que se entende por “manejo irregular da Lei Maria da Penha”, aquela que protege as mulheres do abuso físico praticado pelos maridos e companheiros?
Porém, ainda no inciso I, há algo de extremamente grave: a proteção aos abusadores sexuais de crianças. É de se imaginar a intimidação a que submetidas as mães que tenham forte suspeita de que um parente do marido, por exemplo, tenha molestado sua pequena filha. Se a mãe não “provar” (e todos sabemos como, em determinadas circunstâncias, essa “prova” é difícil) a prática do abuso, terá ela a pena majorada.
Como explica com elegância e inegável acerto a prestigiada jurista portuguesa, Maria Clara Sottomayor: “como estereótipo do abuso verdadeiro, a mãe que se cala; e como estereótipo do abuso falso, a mãe que denuncia”. E aí o paradoxo irritante: “se o crime é autêntico, não se denuncia; se se denuncia, é falso. Esta conclusão retira às leis penais que consideram o crime de abuso sexual de crianças, como crime público, o seu objetivo, pois se a mãe e a criança se calam, o crime continua; se denunciam, a denúncia funciona como prova da mentira”[43].
A previsão expressa da punição de “falsas denúncias de abuso sexual”, por certo, acabará por inibir notificações verdadeiras de agressões e abusos.
O objetivo manifesto do inciso II (“se a vítima é submetida a violência psicológica ou física pelas pessoas elencadas no § 1.º desse artigo, que mantenham vínculos parentais ou afetivos com a vítima”) é penalizar irmãos penalmente responsáveis, tios, avós e também o novo marido da mulher que teve a audácia de refazer sua vida!
Haverá algo mais mesquinho e tacanho do que os interesses agora desvelados?
E para que não restem dúvidas acerca do alcance da punição a ser “exemplarmente” exercida, temos o surreral parágrafo terceiro, assim (mal) redigido: “§ 3.º Incorre nas mesmas penas quem de qualquer modo participe direta ou indiretamente dos atos praticados pelo infrator”. Isto é, qualquer um poderá, inapelavelmente, ser réu em processos penais para apuração da alienação parental.
Quanta orgulhosa estultície!
Agora, no parágrafo quarto, constam os efeitos esperados pelos “bons progenitores”, efeitos que se afeiçoam à “teoria da ameaça”. É do projeto: “§ 4.º provado o abuso moral, a falsa denúncia, deverá a autoridade judicial, ouvido o ministério público, aplicar a reversão da guarda dos filhos à parte inocente, independente de novo pedido judicial”.
Faltam adjetivos para qualificar o projeto. Pois bem. Veja-se que a consequência automática e necessária do “abuso moral” (?) e da “falsa denúncia” (?) é a reversão da guarda dos filhos à parte inocente. Nenhum estudo social? Nenhum laudo psicológico? Nenhuma prova de que o tal “inocente” possui reais condições de exercer, com dignidade e responsabilidade, a guarda da criança? E esta, por acaso, não tem voz nem opinião? É apenas objeto funcionalizado, expressão do “amor desinteressado” do alienado? É possível mensurar quantos acordos envolvendo redução da pensão alimentícia serão aceitos pelas genitoras para evitar que os filhos fiquem nas mãos de eventuais agressores e abusadores? Quem será responsabilizado por essa nova inquisição? Quantas vítimas serão contadas, ao final dessa experiência sinistra?
Na verdade, o que deve ocorrer é justamente o contrário, isto é, o combate sistemático e efetivo às falsas alegações de alienação parental, as quais pululam pelos foros do País, promovidas por pais despeitados e que desejam, de alguma forma, eternizar o poder que possuíam sobre seus “dependentes” e, claro, reequacionar o valor da pensão alimentícia[44].
Este ponto é central em nossa discussão, tanto que vem assim elaborado pela melhor doutrina:
“Perante uma situação de conflito parental, sem indícios de violência nem de abuso sexual de crianças, aconselha-se que os Tribunais tomem uma decisão judicial rápida, sem perícias, para não atrasar o processo, e que se baseiem no princípio da imediação para a produção da prova, na audição dos pais e da criança e na avaliação dos factos. Nestes processos, os Tribunais não devem utilizar a chamada terapia da ameaça, propugnada por GARDNER, e que consiste na utilização da lei para impor multas, perdas da guarda a penas de prisão para as mães acusadas de não cumprir o regime de visitas, mas sim tentar compreender os motivos da rejeição da criança e averiguar quais os comportamentos do genitor rejeitado que originaram a recusa da criança. Os motivos da recusa, segundo a investigação norte-americana, estão, a mais das vezes, ligados a uma atitude moralista da criança, que culpa o progenitor pelo divórcio, a uma rebeldia própria do processo de desenvolvimento da criança, à sua adaptação à tristeza que lhe gera o divórcio, ou ainda, ao facto de ter assistido à agressividade do pai contra a mãe ou a comportamentos injustos daquele. Pode tentar-se, nestes casos, o recurso à mediação familiar, medidas de aproximação entre o pai e a criança, através do apoio de profissionais da psicologia, ou a melhoria da capacidade parental do progenitor rejeitado. Na impossibilidade de conseguir, por medidas de conciliação e apoio psicológico, a reconciliação da criança com o pai, a sociedade e os Tribunais têm que aceitar que a criança, como qualquer adulto, tem direito a escolher as pessoas com quem quer ou não conviver. Meios coercivos, como a intervenção das forças policiais, negam à criança o estatuto de pessoa e a liberdade mais profunda do ser humano: a liberdade de amar ou de não amar. Não cabe ao poder judicial impor sentimentos e afectos, e exigir a perfeição moral aos cidadãos. Isto não significa negar que há pais e mães que instrumentalizam a criança e que se comportam com falta de ética na altura do divórcio, mas não se pode tomar a parte pelo todo, nem usar a força policial e judicial para resolver problemas morais e relacionais. Isto significa punir a criança pelos erros dos pais. É preferível que estes casos sejam decididos à luz de regras pragmáticas e de bom senso, tendo em conta os limites da intervenção do Estado na família e respeitando a relação com a criança com a sua pessoa de referência, assim como a sua integração no seu ambiente natural de vida[45]”(grifos nossos).
Com efeito, as consequências das falsas acusações de alienação parental “são enormemente negativas, pois implicam impor às crianças conflitos de lealdade, expondo-as a danos desnecessários e irreparáveis no relacionamento com os pais, obrigando-as a suportar separações dolorosas de um genitor amoroso, de quem efetivamente gostam, tudo baseado numa mentira maldosa. O genitor falsamente acusado [da prática da SAP] pode não suportar a dor emocional imensurável, comprometendo com isso a qualidade do relacionamento com o filho afastado. Ademais, terá o acusado falsamente de provar sua inocência”[46].
É claro que, na esteira das novidades da modernidade acadêmica, responsabilizam-se agora os Juízes e Membros do Ministério Público se “não adotarem medidas de urgência para apuração da infração”. Estabelece o pessimamente redigido parágrafo quinto: “§ 5.º - O juiz, o membro do ministério público e qualquer outro servidor público, ou, a que esse se equipare a época dos fatos por conta de seu ofício, tome ciência das condutas descritas no §1.º, deverá adotar em regime de urgência, as providências necessárias para apuração infração sob pena de responsabilidade nos termos dessa lei”.
“O mal da alienação parental”, consignou-se na justificação ao PL n. 4488, “é prática mais que comum, em mais de 80% (oitenta por cento)[47] nas relações de pais separados, com manejo falso da Lei Maria da Penha”, inexistindo, “até o momento em nosso ordenamento jurídico, norma penal capaz de efetivar o temor reverencial dessas condutas criminosas, onde as crianças e os adolescentes são as maiores vítimas”.
Apresentam-se verdadeiras as premissas lançadas no PL n. 4488? É, de fato, necessário (e possível) criminalizar as condutas descritas a fim de criar “temor reverencial” (sic)? A alienação parental é prática comum em 80% dos casos de pais separados? É falso o manejo da Lei Maria da Penha? O interesse é mesmo o de proteger as maiores vítimas, isto é, as crianças e adolescentes?
Boa parte desses questionamentos já se encontra respondida quando do estudo relativo à AP/SAP e à violência doméstica, logo acima.
O PL 4488, baseado em pseudociência, é grosseiramente inconstitucional ao violar os princípios da ampla defesa e do contraditório, desconsidera o Direito Penal como ultima ratio da política social e promove a intervenção indevida do Estado na família.
Caso aprovado, promoverá a impunidade de agressores e abusadores, no momento em que se buscam mecanismos de repressão à violência contra crianças e mulheres.
A transformação do projeto em lei coibirá a denúncia de violência ou abuso sexual praticada contra indefesos, significando não somente um retrocesso, mas atitude violadora de importantes estatutos nacionais e internacionais de proteção às mulheres e crianças[48].
O resultado da mensagem explicitada pelo PL 4488 é a de que o Estado tolera abusos e agressões praticados contra os que deveria proteger estimulando, com isso, novos abusos, normalizando a violência masculina contra a mulher (ONU, 2006)[49].
Sem embasamento científico algum, pretende-se a submissão de mães e filhos a métodos mais do que questionáveis e a punições injustificáveis. E “se os factores incluídos na SAP, não permitem, de acordo com a comunidade científica, indiciar a existência de qualquer doença ou problema médico, uma vez que a SAP não está reconhecida como patologia pela OMS e outras entidades competentes, a imposição de qualquer tratamento ou terapia às mães e às crianças, nos casos designados por SAP, é ilegítima, tendo estas o direito fundamental a rejeitá-los”[50].
Se, portanto, podem as vítimas (crianças e mães) rejeitar-se à submissão aos “tratamentos” preconizados pela SAP (porque esta, insiste-se, é uma invencionice mentirosa), como submetê-las a uma lei penal que utiliza com fundamento, justamente, uma “síndrome” inexistente?
Não fosse absurda a alteração pretendida, ainda assim seria desnecessária, não havendo motivo para a criação de um tipo penal específico, uma vez que o Código Penal Brasileiro já prevê punição para denúncias caluniosas (artigos 339 e 340, respectivamente, do CPB), dispondo o próprio ECA de inúmeros instrumentos destinados a coibir abusos nas relações parentais.
Conforme a ensinança do mestre Nelson Hungria, “somente quando a sanção civil se apresenta ineficaz para a reintegração da ordem jurídica é que surge a necessidade de enérgica sanção penal. O legislador não obedece a outra orientação. As sanções penais são o último recurso para conjugar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para reação penal”[51] .
Esclarece Sottomayor, que “no processo penal, prevalecem princípios garantísticos dos direitos arguidos perante o poder punitivo do Estado, o que implica exigências especiais de prova para fundamentar uma condenação, dado o carácter estigmatizante e restritivo de direitos fundamentais, que resulta da condenação e da aplicação das penas”[52].
Nas palavras de Robert Alexy, direito e justiça não estão à disposição do legislador, e “foi justamente a época do regime nacional-socialista na Alemanha que ensinou que o legislador também pode estabelecer a injustiça”[53].
No plano estritamente jurídico, fala-se da perspectiva substantiva do devido processo legal (dimensão material), com avaliação da proporcionalidade e razoabilidade do ato normativo, elementos que “atuam como obstáculo à edição de atos legislativos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. (...) A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas” (STF, ADI 1.158-AM, Rel. Min. Celso de Mello)[54].
Por isso conclui-se que o PL 4488 contém defeito genético e conceitual, é imoderado, abusivo, contrário à boa razão e seus pressupostos carecem de sentido ético por ausência de seu referente, agredindo a ordem jurídica por mostrar-se ofensivo ao substantive due process of law, com inegável e inútil agravo dos direitos daqueles a quem deve o Estado proteção (crianças e mulheres), numa lógica invertida e perversa que envergonha a nação perante a comunidade internacional.
Referências bibliográficas
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