O abandono afetivo como violação ao princípio da proteção integral da criança e do adolescente

06/09/2016 às 05:13
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O presente artigo objetiva analisar e discutir o abandono afetivo paterno-filial como violação ao Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, com base no Macro Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 227 da CFRB/1988).

RESUMO
            O presente artigo objetiva analisar e discutir o abandono afetivo paterno-filial como violação ao Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, com base no Macro Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, estampado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e no artigo 4º e seguintes, da Lei nº 6.069/1980. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo-hipotético para abordagem do tema. Neste estudo, aborda-se a repersonalização das relações familiares, voltando-as ao afeto. Analisa-se a importância da presença paterna para o desenvolvimento psíquico, físico, social e intelectual da criança e do adolescente, mesmo que em unidades familiares distintas. Discute-se o dever de cuidado como valor jurídico apreciável e com repercussão no âmbito da responsabilidade civil.


Palavras-chave: Proteção. Criança e Adolescente. Família. Dignidade. Afetividade.


ABSTRACT This article aims to analyze and discuss the paternal - filial affective abandonment as violation of the Comprehensive Protection Principle of Child and Adolescent based on Macro Principle of Human Dignity, stamped in Article 1, section III of the Federal Constitution of 1988 and Article 4 and following of Law No. 6.069/1980. For this, we used the deductive hypothetical method of approach to the subject. In this study, we discuss the repersonalization of family relationships, turning them into the affection. It analyzes the importance of paternal presence for the mental development, physical, social and intellectual children and adolescents, even if in different households. Discusses the duty of care as considerable legal value and impact on the scope of liability.
Keywords: Protection. Children and Adolescents. Family. Dignity. Affectivity.
 

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva analisar o abandono afetivo como violação ao princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente à luz da Constituição Federal de 1988, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, tratando a afetividade como Princípio Fundamental implícito no Direito Constitucional e como função precípua da família contemporânea. Somente com o advento da Constituição Federal de 1988, que se criou um novo conceito de família, alargou o conceito de princípios e sobretudo, a pessoa humana passou a ser o centro daquele universo. Antes da promulgação da novel Carta Magna e com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente as normas que eram fundamentadas na doutrina da situação irregular, revogando o Código de Menores, que tratava a criança e o adolescente apenas como objeto da atenção estatal. “Os menores” (denominação instituída pelo Código de Menores de 1979, revogado pela lei nº 8.069/1990) só eram lembrados pelo Estado quando cometiam crimes ou quando estavam em situação de abandono, pela filantropia. As crianças e o adolescentes deixaram de ser tratados apenas como sujeitos passivos para serem tratados como sujeitos de direitos e garantias, com o dever da família, da sociedade e do Estado de proporcionar esses direitos.
                Dado à importância da presença e cuidados dos pais para o salutar desenvolvimento da criança e do adolescente, o abandono afetivo paterno ou materno pode causar prejuízos de ordem imaterial à formação da sua personalidade, circunstância que merece proteção jurídica à luz da Constituição Federal de 1988, que possui como princípio maior a proteção da dignidade da pessoa humana. Os deveres dos pais decorrentes da parentalidade responsável não se restringem ao suporte material, alcançando também o cuidado moral e afetivo.
                 A questão do abandono afetivo exige uma análise prévia de dois princípios constitucionais que podem gerar uma tensão e isso complexifica ainda mais a sua apreciação: são os princípios da liberdade e da solidariedade. Para a doutrina minoritária o princípio da liberdade individual também é um princípio constitucional e pergunta-se o pai é obrigado a amar o filho? Seria possível quantificar o amor? Seria possível a monetarização do afeto? Como o Direito pode obrigar alguém a amar?
               A doutrina majoritária entende que os casos de abandono afetivo parental durante a infância e adolescência estão sujeitos à verificação jurisdicional estatal, pelo princípio da solidariedade, como a seguir:
               O macroprincípio da solidariedade perpassa transversalmente os princípios gerais do direito de família, sem o qual não teriam o colorido que os destaca, a saber: o princípio da convivência familiar, o princípio da afetividade, o princípio do melhor interesse da criança”. (LÔBO, 2009 p. 327)
A jusrisprudência já admitite a possibilidade de reparação civil por dano moral em consequência do abandono afetivo, por meio de indenização, pois a tendência dos tribunais brasileiros é de reconhecer o dano extrapatrimonial.

1 A FAMILIA, CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

   A família é antes de tudo uma manifestação sociológica, cultural e social, preexiste antes de qualquer categoria jurídica, é uma sociedade natural formada por indivíduos unidos por laços de sangue ou de afinidade. Os laços de sangue resultam da descendência. A afinidade se dá com a entrada dos conjugues e seus parentes que se agregam em razão dos laços matrimoniais.
                O termo família vem do latim famulus (criado ou servidor) e no início a palavra designava o conjunto de empregados de um senhor e só mais tarde empregou-se a expressão para determinar um grupo de pessoas que, unidas por laços de sangue, viviam na mesma residência e estavam submetidas à autoridade comum de um chefe.
Para Maria Berenice Dias (2010, p. 13) “A família é o primeiro agente socializador do ser humano. Somente com a passagem do homem do estado da natureza para o estado da cultura foi possível a estruturação da família”.
Não há na história dos povos antigos e na Antiguidade Oriental como na Antiguidade Clássica o surgimento de uma sociedade organizada sem que se vislumbre uma base ou seus fundamentos na família ou organização familiar. Foi a Antiga Roma que sistematizou normas severas que fizeram da família uma sociedade patriarcal.
                  A família romana era organizada preponderantemente, no poder e na posição do pai, chefe da comunidade. O pátrio poder tinha caráter unitário exercido pelo pai. Este era uma pessoa sui júris, ou seja, chefiava todo o resto da família que vivia sobre seu comando, os demais membros eram alieni júris. Com base nos princípios vigentes à época, os poderes patriarcais eram numerosos, o patriarca detinha o direito à vida e à morte (jus vita ac necis); direito de abandono (jus exponendi); direito de dar prejuízo (jus naxal dandi).
                  Com a morte do pater famílias não era a matriarca que que assumia a família como também filhas não assumiam o pátrio poder que era às mulheres. O poder era transferido para o primogênito ou outros homens, pertencentes ao grupo familiar.
No casamento romano existiam duas possibilidades para a mulher: ou continuava se submetendo aos poderes da autoridade paterna, o chamado casamento sem manus, ou ela entrava na família marital e a partir desse momento devia obediência ao seu marido, o casamento com manus.
                   Existiam no direito romano apenas duas espécies de parentesco: a agnação que consistia na reunião de duas pessoas que estavam sob o poder de um mesmo pater e englobava os filhos biológicos e os filhos adotivos e a cognação que era o parentesco advindo pelo sangue. Assim, a mulher que houvesse se casado com manus era cognada com seu irmão em relação ao seu vínculo consanguíneo, mas não era agnada, pois cada qual devia obediência a um pater diferente, ou seja, a mulher ao seu marido e o irmão ao seu pai. Com a evolução da família romana a mulher passa a ter mais autonomia perante a sociedade e o parentesco agnatício vai sendo substituído pelo cognatício.
                    Na época do Império Romano passam os cognados a terem direitos sucessórios e alimentares, além da possibilidade de um magistrado poder solucionar conflitos advindos de abusos do pater. Nesta fase, a mulher romana já goza de alguma completa autonomia além de corresponder ao início do feminismo. A figura do adultério e a do divórcio se multiplica pela sociedade romana e com isso a dissolução da família romana.
                     A partir do século V, com o decorrente desaparecimento de uma ordem estável que se manteve durante séculos, houve um deslocamento do poder de Roma para as mãos do chefe da Igreja Católica Romana que desenvolveu o Direito Canônico estruturado num conjunto normativo dualista (laico e religioso) que irá se manter até o século XX. Como consequência, na Idade Média, o Direito, confundido com a justiça, era ditado pelos religiosos, que possuindo autoridade e poder, se diziam intérpretes de Deus na terra. Esses canonistas eram totalmente contrários à dissolução do casamento por entenderem que não podiam os homens dissolver a união realizada por Deus e, portanto, um sacramento.
Havia uma divergência básica entre a concepção católica do casamento e a concepção medieval. Enquanto para a Igreja em princípio, o matrimônio dependia do simples consenso das partes, a sociedade medieval reconhecia no matrimônio um ato de repercussão econômica e política para o qual devia ser exigido não apenas o consenso dos nubentes, mas também o assentimento das famílias a que pertenciam.
                   O direito canônico fomentou as causas que ensejavam impedimentos para o casamento, incluindo as causas baseadas na incapacidade de um dos nubentes como eram: a idade, casamento anterior, infertilidade, diferença de religião; as causas relacionadas com a falta de consentimento, ou decorrente de uma relação anterior (parentesco, afinidade).
                    A evolução do Direito canônico ocorreu com a elaboração das teorias das nulidades e de como ocorreria a separação de corpos e de patrimônios perante o ordenamento jurídico. Não se pode negar, entretanto, a influência dos conceitos básicos elaborados pelo Direito Canônico, que ainda hoje são encontrados no Direito Brasileiro.
Ainda em contraposição à concepção do caráter patrimonialista do direito de família Maria Berenice Dias aduz que:
O afeto foi reconhecido como ponto de identificação das estruturas de família. É o envolvimento emocional que subtrai um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade- e o conduz para o direito das famílias, cujo elemento estruturante é o sentimento de amor, o elo afetivo que funde almas e confunde patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos (2015, p. 12-13).
Dessa forma, atribui-se um novo papel à subjetividade e à função de uma família eudemonista na contextualização do reconhecimento moderno da pluralidade das entidades familiares, apontando as insuficiências das categorias jurídicas positivadas e erigindo um pedestal maior das relações familiares o afeto.

2 FAMÍLIA – PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988

   A instituição familiar sempre foi e será a base, o sustentáculo não apenas da sociedade, mas de todo aquele arcabouço que entendemos como cultura. Antes vista sob a ótica meramente patrimonial, com o foco na reprodução e constituição da prole, passou a ser vista nos dias de hoje como um reduto afetivo de seus integrantes.
               O conceito de família pode ser considerado até um tanto subjetivo, uma vez que o seu significado estará de acordo com quem o define, e à conjuntura social, política e familiar em que esteja inserido. A Constituição Federal de 1988 significou um marco no progresso do conceito de família. Ao corporificar a análise feita por Lucien Lévy-Brühl, de que há uma tendência predominante do desenvolvimento da família se tornar um grupo cada vez menos arranjado e hierarquizado, e cada vez mais assentado na afeição recíproca (GENOFRE, 1997, p. 127).
                Observando por esse ponto, a família pode ser vista como um grupo coeso de pessoas em interação, ou “um sistema semiaberto, com uma história natural aconchegada por múltiplos estágios, sendo que a cada um de seus membros correspondem afazeres característicos” (BURGENS; ROGERS apud ELSEN, 2002, p. 129).
                Não podemos negar que diante da multiplicidade e variedade de fatores, de diversos matizes existentes em nossa sociedade atual, não permitem um modelo familiar fixo e uniforme. Esse novo sistema tenta traçar o eixo fundamental da família de maneira mais condizente com a pós-modernidade, trazendo consigo princípios fundamentados na ética, na afetividade e na solidariedade entre os seres, na busca de uma maior completude.
                De fato, a Constituição Brasileira de 1988, “a constituição cidadã”, não trouxe mudanças bruscas sobre o nosso ordenamento social, o Novel Diploma reconheceu e ordenou os processos de mudança que já estavam em pleno curso na nossa sociedade, portanto, ampliou o entendimento do conceito de família.
                No mesmo sentido o legislador originário não teve apenas a preocupação de ampliar o conceito de família, preocupou-se também em delinear os princípios e regras de direito que viessem a proteger de maneira igualitária a instituição familiar. O legislador pontuou que na década de 1980, já eram observados novos perfis familiares e decidiu, portanto, reconhecer tal fato, propiciando para a sociedade, um sentimento de inclusão e unidade nacional. O direito de família ganhou então, toda uma nova cosmovisão civil e constitucional, que traz consigo valores fundamentais, tais como: a) A dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da CF); b) Principio “ratio” do matrimonio e da união estável, no qual o fundamento básico da vida conjugal é a afeição e a necessidade de completa comunhão de vida; c) Princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros, onde os poderes de decisão são iguais; d) Princípio da igualdade jurídica de todos os filhos (Constituição Federal, art. 227, § 6º, e Código Civil, arts. 1.596 a 1.629), onde não se faz distinção entre filho matrimonial, não matrimonial ou adotivo; e) Princípio do pluralismo familiar, onde existe o reconhecimento da família matrimonial e das entidades familiares, a saber: união estável e família monoparental; f) Princípio da liberdade, onde há o livre poder de estabelecer laços matrimoniais, livre escolha de planejamento familiar, livre escolha do regime de comunhão de bens, liberdade para aquisição e administração do patrimônio familiar, além de livre opção de formação cultural, educacional e religiosa dos filhos. Certamente quando a Constituição promove a repartição dos poderes, deveres e direitos de homens e mulheres no casamento, ela marca uma nova fase na tessitura social brasileira, trazendo para o peso do nosso ordenamento jurídico a isonomia entre homens e mulheres. De acordo com Tartuce (2006).
[...] deve-se reconhecer também a necessidade da constitucionalização do Direito de Família, pois grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade.             A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição. Portanto, os antigos princípios do Direito de Família foram aniquilados, surgindo outros, dentro dessa proposta de constitucionalização, remodelando esse ramo jurídico. (Disponível em: <http://jus.com.br/artigos. Acesso em: 10 nov. 2015).
             Destarte, as novas concepções das famílias estão em consonância com os princípios constitucionais, visto que o Direito Civil emana da Constituição.

3 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
               O Princípio da Proteção Integral surgiu na década de 80, após a instituição de uma Comissão de Direitos Humanos da ONU, substituindo o paradigma da situação irregular e elevando as crianças e adolescentes a sujeitos de direitos.
               Com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, apesar de não ser cronologicamente o único documento que versasse sobre esses direitos, eliminou-se, assim, o instituto jurídico do menor, modificando completamente a forma que crianças e adolescentes deveriam ser tratados, consolidando a Doutrina da Proteção Integral com base nas mudanças a seguir apresentadas:
               A concepção de crianças e adolescentes como “objetos de direitos” foi reformada. Crianças e adolescentes passaram a configurar como “sujeitos de direitos”, assim, a família, a sociedade e o Estado que antes eram titulares desses direitos, passaram a ter o dever de assegurá-los e garanti-los diante de qualquer ameaça ou violação.
              A proteção integral tem como fundamento a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado. Rompe com a ideia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento.
               O estabelecimento da proteção integral significou uma mudança de paradigma, modificou essa concepção de objetos de direito, na medida em que se encontravam enquadradas no binômio necessidade-delinquência, para uma situação de protagonismo, detentores de direitos, independentemente de estarem ou não em uma situação de risco, deduzindo de certa forma, o que se quis foi “consertar” uma deficiente atuação ao longo dos anos. Como toda política afirmativa aparenta ser desigual, a proteção integral atribui às crianças e aos adolescentes tratamentos diferenciados por serem desiguais com relação aos adultos, devido a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, sendo, portanto, seus direitos fundamentais classificados como absolutos, enquanto que os direitos fundamentais do homem são relativos.
                Os direitos da criança e do adolescente abrangem todo o rol dos direitos humanos além dos direitos especiais que necessitam por serem detentores da condição peculiar de seres humanos em desenvolvimento. O fato de se encontrar em uma fase especial da vida, não os exclui do rol dos direitos humanos, cuja definição se explica pela natureza do homem, que possui direitos intrínsecos ao mínimo de dignidade humana.
                 Os direitos de pessoas em determinadas fases da vida (crianças, idosos) ou por razões de gênero ou deficiência tendem a ser equivocadamente retirados da doutrina da proteção dos direitos fundamentais. Direitos humanos são aqueles direitos inerentes à nossa natureza. A extensão da aplicabilidade desses direitos é universal, uma vez que todo ser humano goza dos mesmos por serem inerente à pessoa humana, independentemente da idade, raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição. Conforme o artigo 1º da declaração Universal dos Direitos humanos "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros."
                O sistema homogêneo de proteção dos direitos humanos é aquele destinado a proteger todos os seres humanos. As crianças e adolescentes estão inseridos em um grupo especial, abarcado pelo sistema homogêneo e heterogêneo de proteção dos direitos humanos. Vários instrumentos internacionais reconheceram os direitos humanos homogêneos e mencionaram a importância de um sistema heterogêneo de proteção dos direitos humanos da criança e do adolescente, como, por exemplo, a Declaração Universal de 1948, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, dentre outros. Entretanto, o reconhecimento dos direitos da Criança foi consolidado com a Declaração dos Direitos da Criança em 1959. Já o sistema heterogêneo é composto de normas que se aplicam a um grupo específico de pessoas, normas em benefícios de alguns e não de todos. Por isso deve ser observada a extensão desses direitos de forma que não afronte o princípio da igualdade. No caso das crianças e adolescentes, o que justifica esse tratamento especial é a condição de pessoa em desenvolvimento, reconhecida internacionalmente, e pela sua vulnerabilidade. Mais de quarenta direitos específicos foram criados.
                 Os direitos previstos na Convenção são todos os direitos humanos tradicionais e especiais, são os direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos. Os países que aderiram à convenção se comprometeram a assegurar que essa população tivesse meios para exercer esses direitos, bem como protegê-los de qualquer ameaça ou violação.
                  Todas as crianças e adolescentes, independente de suas condições financeiras, raça, religião, nacionalidade devem ter seus direitos assegurados, da melhor forma, pelos pais, pela sociedade e pelo Estado, colocando-os sempre à frente de qualquer ato que os envolvam, em prol do melhor interesse dessa população, portanto, são sujeitos de direito independente de características físicas ou socioeconômicas, e merecem igual atenção de toda a sociedade e com isso, põe-se fim a denominação de crianças carentes ou crianças delinquentes, uma vez que todas têm direito à proteção dos seus direitos, e também significa o fim da “situação irregular” de crianças e adolescentes que eram taxados quando não se enquadravam no critério de “bem-nascidos”.
                     No dizer de Martha de Toledo Machado (2003, p.108): [...] "assenta-se na premissa de que todas as crianças e os adolescentes, independente da situação fática em que se encontrem, merecem igualdade jurídica, merecem receber da sociedade um único e igualitário regime de direitos fundamentais, livre de tratamento Discriminatório ou opressivo."
                     Pessoas em desenvolvimento - um dos ideais mais elucidativos e coerentes do novo direito das crianças e adolescentes foi a conceituação de crianças e adolescentes como “pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”. As crianças e adolescentes são pessoas em uma fase especial da vida, em que todas as suas potencialidades estão em desenvolvimento, por isso possuem a necessidade de uma proteção especial para preservar o pleno desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.
                      Como observado anteriormente, em grande parte de seus artigos, a Convenção reconhece a criança como um sujeito em desenvolvimento, que se encontra em um período especial, que está em jogo alcançar a plena realização de seu potencial. Isto é descrito, por exemplo, Artigo 6º que estabelece que os Estados Partes devem assegurar a sobrevivência e desenvolvimento das suas crianças, ou no artigo 27, que reconhece o direito de cada criança a um nível de vida apropriada para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social, enquanto o artigo 19 obriga os Estados a tomarem todas as medidas necessárias (legislativas, administrativas, sociais e educacionais) para proteger a criança de todos os tipos de abusos, maus tratamento, exploração, e assim por diante.
                     Crianças e adolescentes são desiguais em comparação com os adultos, ainda não podem exercer plenamente suas potencialidades, e sua personalidade ainda não está completamente formada. Ao se falar em direitos da personalidade infanto-juvenis pressupões que possuem atributos e conteúdos diversos dos direitos da personalidade dos adultos, já que estes já exercem todas as suas potencialidades, contudo, é necessário uma tutela especial para equilibrar essa desigualdade entre o mundo adulto e infanto-juvenil, uma vez que estão vulneráveis diante do mundo adulto para concretizar seus direitos. Essa tutela deve atingir uma igualdade material, e não apenas formal.
                    Os direitos das crianças e adolescentes se diferem tanto quantitativamente, por possuir maior número de direitos fundamentais, como qualitativamente, pois para assegurar a concretização desses direitos, possuem estruturação especial, diferentemente dos direitos fundamentais dos adultos.
                     Interesse Superior das Crianças e Adolescentes - Crianças e Adolescentes, além de sujeitos de direitos, que os afastam da intervenção estatal de forma arbitrária como meros objetos de direitos, passaram a serem considerados pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Estão em processo de formação bio-psico-sociais, e ainda não conseguem prover suas necessidades de subsistência sem comprometer esse desenvolvimento humano de forma saudável. O atendimento à essa população tem prioridade em todas as ações da esfera estatal, para que se possa proporcioná-los um desenvolvimento de forma plena.
                  Pela primazia do melhor interesse da criança e do adolescente entende-se que qualquer medida que envolva uma criança ou adolescente deve, primeiramente, levar em consideração o que é melhor para ela, independente de sua condição financeira, pessoal e legal. Essa primazia autoriza, inclusive, em determinados casos, deixar de se observar as normas legais para que se atinja esse interesse maior, respaldado nos limites que a própria lei determinar e de acordo com este princípio em todas as ações relativas às crianças e adolescentes, realizadas por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas, órgãos legislativos, devem atender o melhor interesse da criança como uma consideração primária.
                  Este princípio deve ser visto necessariamente como a satisfação dos direitos fundamentais das crianças, e nunca se pode deduzir um outro tipo de interesse como superior a vigência efetiva desses direitos. Em termos operacionais, significa evitar, por exemplo, que critérios corporativistas ou superveniência institucional sejam situados acima do interesse superior da criança.

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4 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
               O fim do Código dos Menores revolucionou o tratamento à população infanto-juvenil. O novo ordenamento regulamentou a proteção e os direitos dos jovens indivíduos, universalizando de acordo com os princípios dos direitos humanos, abrangendo todas as crianças e adolescentes, sem distinções, sendo alçados à categoria de sujeitos de direitos, passando a ser obrigação exigível a prestação de tais direitos. Diferentemente do Código de Menores, que apenas tinha previsão normativa para aquela criança e adolescente que se encontrava no binômio da necessidade-delinquência. Outra inovação foi a criação de diferentes mecanismos políticos, jurídicos e sociais para o cumprimento desses direitos.
               Tal mudança ocorreu devido a inúmeros debates realizados a acerca dos direitos humanos na sociedade civil e da necessidade de se criar um Estado Democrático de Direito e dessa mobilização social resultou na construção da Carta Constitucional de 1988, que reformou o direcionamento da Política de atendimento das crianças e adolescentes, tratando-os como sujeitos de direitos. Realizou uma mudança de paradigma: da situação irregular para a Proteção Integral. O Brasil inseriu no artigo 227 do texto constitucional de 1988, antes mesmo de ser aprovada a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança em 1989 pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, a doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, retirando do ordenamento a doutrina da Situação Irregular vigente, até então, no Código de Menores.
              A mudança de Paradigma significou um marco divisório, com uma transformação completa na abordagem dos direitos infanto-juvenis, modificando totalmente a linha de ação da política nacional de proteção à criança e ao adolescente, para se enquadrar na doutrina da proteção integral. Para a nova ordem constitucional todas as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, independente da condição social, econômica ou familiar reconhecendo a sua condição de pessoa ainda em formação, portanto, em estado de vulnerabilidade.
               A promulgação da Constituição Federal de 1988 apresentou um rol extenso e moderno de direitos e garantias fundamentais. Determinou à família, à sociedade e ao Estado o dever legal e concorrente de assegurar, com prioridade, os direitos das crianças e dos adolescentes, caracterizando crianças e adolescentes como sujeitos de direitos que necessitam de cuidados especiais para o seu desenvolvimento físico, psicológico e social, o qual somente é viabilizado com a plena garantia e proteção dos direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, ao esporte, à cultura, à profissionalização, à convivência familiar e comunitária.
                 O dever é solidário e a referência, primeiramente à família, remete ao significado de que é a primeira esfera de atenção que a criança e o adolescente têm. Os direitos assegurados podem ser requisitados, diante do não atendimento, por qualquer criança ou adolescente, sem distinção. São portadores de uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e, exatamente por isso, precisam ter garantida a sua dignidade e os direitos previstos em lei. Tanto aos direitos que condicionam a sua sobrevivência, quanto aos que proporcionam o seu desenvolvimento pessoal e social e nos casos em que é imprescindível a sua proteção especial.
                   Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente inseriu os princípios estatutários da vulnerabilidade e da condição peculiar da criança e do adolescente; sistematizou a atuação da família, da sociedade e do Estado na aplicação da norma constitucional, regulou o princípio da municipalização, criou medidas governamentais aos entes federativos, instrumentos para concretizar a descentralização político-administrativa, e definiu a atuação de cada esfera nas políticas públicas, nos programas, projetos e serviços de proteção social e de assistência social.
Também instituiu os Conselhos Tutelares e os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente para a sociedade exercer a fiscalização e o controle da gestão das políticas de atendimento, pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente, protegendo a sua população infanto-juvenil, com competências previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre elas, encaminhar notícia de fato que envolva infrações administrativas e penais sobre ameaça ou lesão dos direitos das crianças e adolescentes ao Ministério Público ou à autoridade de judiciária.
                  O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, visando à aplicação dessa doutrina da proteção integral, nortearam a atuação do Estado, e em alguns casos da esfera privada, sob o enfoque de três princípios: a prioridade de atendimento, a municipalização e a primazia do interesse da criança e do adolescente.
O Princípio da Municipalização pode ser mensurado como a regionalização das ações e execução das Políticas Públicas, para o melhor atendimento às crianças e adolescentes, em conformidade com as peculiaridades e necessidades de cada região, em face das diferenças e desigualdades socioeconômicas existentes entre elas.
                  Certas decisões político-administrativas e serviços públicos, por suas características, peculiaridades e urgência, necessitam serem encaminhados e resolvidos no âmbito do município. Onde há conflitos de interesses, entre o local e o nacional, prevalece o interesse local.
                   Nos casos de adolescentes em conflito com a lei, os atendimentos a eles prestados devem, preferencialmente, serem realizados no próprio município, a não ser que por determinadas circunstancias não seja melhor para o adolescente que se cumpra neste local.
                    No Código de Menores o atendimento à população infanto-juvenil cabia apenas ao poder Estatal, que o centralizava para a União e Estados. Já a Lei nº 8.069/90 (ECA) dividiu a atuação dos três entes, por meio da descentralização político administrativa, dando prioridade aos municípios na formulação de políticas de atendimento, e incluiu a participação da sociedade por meio de conselhos e de organizações da Sociedade Civil.
                   A descentralização político-administrativa se fundamenta pelo fato de que a fiscalização, a implementação e o cumprimento das metas previstas nas políticas e nas leis são facilitadas se forem realizadas pelo Poder Público local, que conhece as dificuldades e as necessidades da região, bem como pela comunidade local que está mais próxima do público alvo, através dos Conselhos Tutelares e de Direitos da Criança e do Adolescente. É por isso que as políticas de atendimento devem obedecer à diretriz da descentralização político-administrativa, forma articulada entre os entes federativos na criação das políticas de atendimento, na sua execução e possível complementação, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente dividiu a atuação do Estado no cumprimento das suas disposições em seus três
poderes: judiciário, executivo e legislativo, cabendo a todos zelar pelo cumprimento das normas criadas pelo Poder Legislativo.
                   O sistema de garantias de direitos dividiu a atuação do Estado e da Sociedade Civil em três eixos: promoção, defesa e controle social. É o instrumento de concretização da Doutrina da Proteção Integral, e é por meio dele que é possível garantir que a população infanto-juvenil possa ter assegurado seu pleno desenvolvimento físico, psicológico e social. Esse sistema se baseia em um modelo complexo e integrado de ações decorrente da evolução da demanda social e do frequente desrespeito aos direitos da criança e do adolescente.
                  De acordo com a Constituição Federal de 1988 e com o ECA, os destinatários das políticas o Poder Executivo Municipal tem como linha de atuação a execução da Política de Atendimento, conjunto de princípios e regras, instituições, objetivos e metas para tornar disponível a promoção dos direitos idealizados pelo ordenamento jurídico às crianças e aos adolescentes. Essa política foi dividida em três linhas de ações: a proteção social básica, a política de assistência social e a proteção social especial.
                  A Proteção Social Básica visa assegurar os direitos universais de todas as crianças e adolescentes, como a educação, a saúde, a alimentação, o lazer, a cultura, o esporte, a convivência familiar e comunitária, através de uma política de assistência social, como forma de prevenção e de proteção, que atue na promoção de programas, ações e projetos voltados para diminuir a segregação social, a desestruturação familiar e os riscos pessoais e morais de uma criança, geralmente causado pela Ordem Social e Econômica.
               No tocante à Proteção Especial das crianças e adolescentes, esta deve englobar os serviços de abrigamento de indivíduos em situação de risco e demanda uma intervenção abrangente, uma vez que essas crianças e adolescentes encontram-se em situação de risco por não contar mais com a proteção e os cuidados de suas famílias. Caracteriza-se pelo atendimento das crianças e adolescentes que necessitam de uma família substituta para usufruírem o direito à convivência familiar; ou de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, que de alguma forma entraram em conflito com a lei e estão sujeitos a medidas de caráter pedagógico, não punitivo.
De certa forma, nesses casos, o Estado, a sociedade e a família são partes responsáveis pelos atos desses adolescentes, já que por omissão ou ação de algum desses agentes é que esses jovens não conseguiram ser inseridos na sociedade.
             As garantias processuais, que anteriormente não eram estendidas às crianças e adolescentes por considerá-los objetos de direitos, foram introduzidas juntamente com um sistema de administração da justiça juvenil, com a articulação dos órgãos da Segurança Pública, Ministério Público, Varas da Infância e da Juventude e Entidades de Atendimentos.
                A prioridade de atendimento significa que toda a ação ou política elaborada pelo Poder Público, em suas três esferas e poderes, devem atender em primeiro lugar às necessidades das crianças e dos adolescentes. O artigo 4° do ECA conceituou esse princípio de maneira a vincular o Estado ao seu cumprimento, de acordo com as formas elencadas.                  Em que pese ser o Estado responsável pela tutela dos bens jurídicos das crianças e adolescentes, em especial dos bens indisponíveis, não basta que o Estado prescreva direitos e garantias fundamentais que tenham como destinatários esses jovens e crianças. Além de determinar que a sociedade, as comunidades e especialmente a família se responsabilizem pelo menor e, ainda, determine que estes entes promovam o desenvolvimento da criança e do adolescente, deve o Estado cobrar o efetivo cumprimento da legislação, fiscalizando constantemente a realização de seus preceitos, além de criar políticas públicas para dar condições ao menor de se desenvolver de forma satisfatória. Não se pode imaginar a atuação da família e da sociedade em favor do menor sem a intervenção do Estado, motivo pelo qual este é apontado como o maior responsável pela efetiva aplicabilidade do Art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. (COÊLHO, Bruna Fernandes).
                 A importância da doutrina da Proteção Integral como princípio jurídico é poder oferecer à população infanto-juvenil os seus direitos básicos e os proteger de qualquer ameaça ou violação, sem que sejam supridos em nome do seu bem-estar.
                 É a participação do tripé família/sociedade/Estado para que as suas crianças e adolescentes tenham igual oportunidade de alimentação, saúde, educação, lazer, profissionalização, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. 5 O AFETO COMO PRINCÍPIO DO DIREITO DE FAMÍLIA Afetividade não é tratada de forma expressa como princípio no texto constitucional não perde a sua categoria de princípio fundado no macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Na Constituição Brasileira há dois tipos de princípios, os expressos e os implícitos. Os expressos constam do texto constitucional e os implícitos surgem de uma interpretação harmonizadora das normas constitucionais. Para Calderón (2013, p. 102-103), “uma das principais consequências do fenômeno da constitucionalização do direito foi a alteração sobre a concepção, sentido e papel conferido aos princípios, que de meros coadjuvantes passaram a protagonistas deste novo cenário jurídico”. Desse modo, as regras descrevem fatos e condutas que incididas, geram a aplicação da regra por meio da subsunção e se a matéria em questão não estiver completamente integrada no relato da regra ela não pode incidir. Já os princípios possuem uma maior abstração, por não especificar uma determinada conduta, incidem em indeterminadas situações. No entanto, por existir princípios que aparentemente se contradizem, o intérprete ao aplicar no caso concreto irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, preservando o máximo de cada um, na medida do possível e sua aplicação, portanto, será através de uma interpretação harmoniosa, porém, graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato. No contexto da criança e do adolescente essa interpretação deverá atender o melhor interesse daquele petiz. Com as constantes mudanças ocorridas na sociedade que passou a desenvolver características próprias, trazendo à tona a necessidade de reflexão sobre a forma de realização do direito na atualidade e principalmente do direito de família é de todo normal o surgimento de novos princípios e mesmo sem previsão constitucional, a sensibilidade dos aplicadores do direito que sob uma perspectiva hermenêutica valorativa envolve a relevante tarefa de exprimir o espírito de justiça para a solução de casos concretos, afirmando o papel do Direito solucionador de conflitos com a finalidade de dar uma resposta a uma demanda concreta. Em que pese o fato do princípio da afetividade não constar no rol dos princípios fundamentais, possui fundamento constitucional, principalmente por ser inerente ao ser humano, e de fato, não seria algo mais pertinente à subjetividade do homem do que o sentimento de afeto e que certamente, é o núcleo central das famílias. A nossa Lei Maior elegeu como valor supremo do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e esta deverá informar todas as relações jurídicas e submeterá ao seu comando toda a legislação infraconstitucional, assim leciona TEPEDINO (1997. 47-48). “O princípio da dignidade da pessoa humana é o ápice do nosso ordenamento jurídico”. A Constituição de 1988 é expressamente clara quando explicita que o seu objetivo é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. No direito das famílias a solidariedade é tida como o princípio basilar da família brasileira, pela maioria dos doutrinadores e nesse contexto Maria Berenice Dias (2010. p. 67), afirma que: "A solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de acentuado conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A pessoa só existe enquanto coexiste"
Enfatizando ainda, o princípio da solidariedade que está intimamente ligado ao binômio solidariedade – afeto, a Civilista afirma que: “o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade” (2006, p. 61).
À luz dos mandamentos constitucionais o Código Civil de 2002 e as alterações por ele fixadas - já eram incorporadas na realidade social - assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), fazem da família hoje um núcleo descentralizado, democrático e baseado na solidariedade familiar.

6 O ABANDONO AFETIVO E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
             A Constituição Federal de 1988, em seu artigo primeiro alçou o princípio da Dignidade da Pessoa Humana ao altíssimo patamar de fundamento da República Federativa do Brasil, atentando para os anseios e necessidades da pessoa.
             Esse princípio em virtude da sua relevância do contexto do ordenamento jurídico pátrio, recebeu merecidamente da doutrina a alcunha de super princípio, macro princípio e princípio dos princípios.
Como não poderia ser diferente, sob a influência da Lei Maior foi instituído o Novo Código Civil Brasileiro, através da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que diferentemente do Código Civil anterior este protagonizou a marcha do direito privado em direção à valorização da pessoa como protagonista e centro fundamentador dos diversos institutos previstos no novo diploma, afirmando seu objetivo de despatrimonialização e repersonalização do direito civil, uma vez que na vigência do Código revogado suas bases eram assentadas em um modelo por vezes extremamente preocupado com o patrimônio e altamente individualista em detrimento da pessoa e do mínimo necessário para sua digna existência.
Demonstrada, portanto, a mudança de parâmetros havida por ocasião da vigência do Código Civil de 2002, torna-se indispensável a alteração do pensamento acerca do núcleo familiar e de sua finalidade, devendo-se atentar para a promoção do bem estar e dignidade de seus membros, em detrimento de sua consideração como um fim em si mesmo.
             Assim prevê o Código Civil o instituto do poder familiar, cujo exercício cabe aos pais e esse instituto em análise congrega mais do que direitos dos pais em relação aos filhos, congrega muito mais deveres daqueles para com estes, sempre com vistas ao seu pleno desenvolvimento e como forma de proteger aqueles que não gozam de maturidade suficiente para fazê-los por si próprios e neste sentido prevê o art. 1.634, inciso I, do Código Civil que compete aos pais, em relação à pessoa dos filhos, “dirigir-lhes a criação e educação” (Brasil, 2010).
Portanto, no que tange especificamente ao dever de direção da criação de seus descendentes de primeiro grau resta ao genitor prover-lhes não só suas necessidades materiais, obrigação essa que pode ser cumprida com o pagamento de provisionais, cabendo-lhe, também, o suprimento de sua formação, conferindo à criança ou adolescente o arcabouço psicológico necessário baseado nos laços afetivos para o enfrentamento das situações cotidianas que se lhe apresentarão no futuro, com as quais poderá tornar-se um adulto sem traumas e inteiramente apto à construção de uma família também embasada no afeto. Para reafirmar o ora exposto valemos da lição de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 363), que aduz: Incumbe aos pais velar não só pelo sustento dos filhos, como pela sua formação, a fim de torná-los úteis a si, à família e à sociedade. O encargo envolve, pois, além do zelo material, para que o filho fisicamente sobreviva, também o moral, para que, por meio da educação, forme seu espírito e seu caráter.
              A partir de uma concepção Constitucional que elevou a dignidade da pessoa humana ao maior patamar da estrutura estatal brasileira e a criança e o adolescente no contexto atual têm prioridade absoluta na ordem constitucional, que busca tutelar a condição de vulnerabilidade e fragilidade do jovem e da criança, por se tratarem de sujeitos em formação psíquica, física e intelectual e que estão em constante desenvolvimento.
A par da ofensa à integridade física e psíquica decorrente de um crescimento desprovido do afeto paterno, o abandono afetivo se apresenta também como ofensa à dignidade da pessoa humana, para melhor elucidar esse contexto temos a lição de Edson Fachin (2006. p. 631):
              Sobre a dignidade da pessoa humana pode-se afirmar que – no sentido em que é compreendida contemporaneamente como princípio fundamental de que todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras – não foi constituída como valor fundamental desde os primórdios da história. Ou seja, não derivou de algum direito ideal constituído previamente ao ordenamento jurídico e válido perenemente. Ao contrário, a sua validade e eficácia, como norma que foi elevada acima das demais regras e princípios, derivam da necessidade própria da sua integração e sua proteção nos sistemas normativos.
              O Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente está intimamente ligado ao princípio maior, que é o princípio da dignidade da pessoa humana e inclui-se nesse rol de proteção à criança e o adolescente e com atenção especial por tratar-se de pessoas que em estado incompleto de desenvolvimento e necessário se faz dispensar especial respeito à sua condição de vulnerabilidade, é tanto que todos são responsáveis pelo seu desenvolvimento sadio, a família, a sociedade e o Estado. Coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente regular de forma específica, trazendo normas de conteúdo material e processual, de natureza civil e penal, obrigando toda a legislação reconhecer as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos, visando resguardar a integridade física, moral e psíquica, preservando o direito previsto constitucionalmente de proteção à dignidade humana aos menores como seres em formação e desenvolvimento que o são. O artigo 18 do Estatuto da Criança e do adolescente regulamenta especificamente o disposto no artigo 227 da Constituição Federal ao afirmar ser dever de todos velar pela dignidade das crianças, pondo-as a salvo de quaisquer tratamentos desumano, violento, aterrorizante ou constrangedor. Dessa forma não é exagero dizer que o legislador situou neste artigo 18 do referido Estatuto da Criança e do adolescente o ponto crucial da doutrina da proteção integral, que implicitamente é elevado à condição de princípio da proteção integral da criança e do adolescente, cujo fundamento está precisamente numa dignidade inerente que as pessoas em desenvolvimento partilham com as demais pessoas humanas, entretanto, com prioridade absoluta. No artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil, a proteção da criança e do adolescente é tratada como princípio basilar de direitos humanos, para ilustrar a importância desse princípio veremos a lição de Isabella Henriques: Inaugurando a Doutrina de Proteção Integral da criança, o referido artigo definiu com clareza que todos os direitos da criança não deveriam ser apenas assegurados, como acontece com qualquer outro direito constitucional. Algo de novo e transformador consolidou-se nas linhas do texto constitucional, determinando às crianças brasileiras um novo status e, portanto, um novo direito. Em uma junção única de palavras, inexistente em qualquer outro lugar na Constituição, consolidava-se, há 25 anos atrás, o direito da criança à Prioridade Absoluta. A doutrina por ser o conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico, etc. Possui uma ideia central ou valor, desenvolvidos por princípios e regras. Não é termo exclusivo do mundo jurídico, mas comum às diversas ciências sociais.
              Diante dessas considerações o abandono afetivo viola o Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente que está normatizada no artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil e regulamentado na Lei nº 8.069/1990, em perfeita integração com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e este princípio afasta todos os valores individualistas mantidos até então por uma sociedade puramente patriarcal, atribuindo à sociedade moderna como um todo, mas principalmente ao seio familiar, a obrigação de assistir uns aos outros.
Para uma maior compreensão da afetividade como princípio implícito do direito de família necessário se faz a consulta não só ao Código Civil e à Constituição Federal, faz-se necessário remeter aos demais integrantes do sistema jurídico que são as leis infraconstitucionais esparsas que tratam do direito das famílias. Muitas dessas leis trouxeram expressamente contidas nos seus textos a afetividade e o afeto, para melhor compreensão citaremos algumas leis nesse sentido:
                 A Lei Federal nº 11.340/2006 faz remissão expressa à relação afetiva como incidência de suas ordenações, quando expressa que a configuração da violência doméstica e familiar contra a mulher por ação ou omissão, que cause morte, sofrimento de toda natureza e dano patrimonial ou moral, no âmbito da família, formada por indivíduos que entre outros requisitos estão ligados por afinidade, como também em qualquer relação íntima de afeto, o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de haver coabitação.
                 Na lei Federal 11.698/2008, define novos requisitos para a definição do regime de guarda, sendo um deles o afeto. Esta Lei altera expressamente os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2008).
                Na Lei Federal nº 12.010/2009, cita expressamente a afetividade como critério de identificação da família extensa ou ampliada (art. 25, parágrafo único) e também como critério de identificação da família extensa ou ampliada (art. 25, § único) e também como fator relevante na definição da família substituta (art. 28 § 3º). (BRASIL, 2009), assim como na Lei Federal nº 12.318/2010 que regula e traz punições aos casos de Síndrome da Alienação Parental, que prejudiquem a relação de afeto com um dos genitores - art. 3º. (BRASIL, 2010)
É inegável a percepção expressa na caracterização das relações que os institutos querem proteger que é o afeto. Restou claro a proteção da afetividade na relação parental nas mencionadas leis infraconstitucionais que protege e valora a afetividade e até prever medidas repressivas para atos injustificados que afrontem as relações parentais afetivas.

              7 O AFETO E A CONVIVÊNCIA FAMILIAR COMO DEVER DE CUIDADO

     À luz da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu a proteção da dignidade do ser humano como valor supremo, assegurando a todas as pessoas, indistintamente, a efetividade dos direitos e das garantias fundamentais. Temos, então, que o princípio da dignidade da pessoa humana é o núcleo da Carta Maior de 1988, sendo que dele derivam-se os demais princípios e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
Não caberia à Constituição Federal de 1988 despreocupar-se com a proteção das crianças e adolescentes. É neste cenário que o constituinte passa a tratar a criança e o adolescente também como sujeitos de direitos, tanto quanto os adultos. Tanto é assim que, no seu artigo 227, alterado pela EC nº 65/2010, a Constituição Federal aponta - não de forma taxativa - direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente, os quais devem ser promovidos sempre com absoluta prioridade.
                    A prioridade prevista pela norma busca especialmente tutelar a condição de vulnerabilidade e fragilidade das crianças e adolescentes, mormente por se tratarem de sujeitos em formação psíquica, física e intelectual, que estão em constante desenvolvimento. Ora, como se observa do mencionado diploma legal, não se excluem os pais do dever de efetivar a proteção de tais garantias constitucionais no âmbito das relações familiares.
                    Como importante marco deste novo enfoque dado aos direitos da criança e do adolescente destaca-se a Doutrina da Proteção Integral. As crianças e adolescentes foram postos a salvo de toda forma de negligência. Consagrada por meio da Convenção das Organizações das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças - aprovada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990, por meio do decreto n. 99.710 de 21 de novembro de 1990, preconiza a referida doutrina que as crianças e os adolescentes são detentoras de direitos da mesma forma como os adultos e gozam de prioridade imediata e absoluta com relação à proteção de seus interesses, os quais devem ser resguardados em qualquer circunstância, sempre devendo ser levado em conta o seu quadro de vulnerabilidade, dada a sua peculiar condição de desenvolvimento.
                    O Estatuto da Criança e Adolescente, instrumento basilar para a regulamentação das normas constitucionais de proteção da população infanto-juvenil, estabelece, no seu art. 3º, que às crianças e adolescentes devem ser asseguradas todas as oportunidades necessárias ao seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. O artigo 4º, por seu turno, preconiza uma série de direitos fundamentais que devem ser assegurados pela família, comunidade e sociedade em geral. O art. 5º põe a salvo a criança e adolescente de qualquer forma de negligência e opressão.
                  Não se pode olvidar que o próprio texto da Convenção reconheceu que a criança e o adolescente "para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão" (Brasil, 2009). Neste norte, importante trazer à baila o Princípio da Parentalidade Responsável, interpretado de acordo com as atuais diretrizes que regem o Direito de Família, as quais têm como pressuposto o fortalecimento da personalidade dos membros da família como prioridade, minimizando, assim, o seu aspecto meramente patrimonial. Entende-se por este princípio que os pais têm os deveres de assistir, criar e educar os filhos, decorrentes do exercício da autoridade parental. Estas atribuições estão definidas na Constituição Federal, no artigo 229.
                  Ademais, conforme redação do art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito da criança ou adolescente ser criado e educado no seio de sua família, assegurado também o direito à convivência familiar. Nas disposições acerca do exercício do poder familiar, discorre o Código Civil, no art. 1.634, I, que compete a ambos os pais dirigir ao filho a plena criação e educação. Extrai-se dos textos legais que a obrigação dos pais para com seus filhos ultrapassa os aspectos materiais e passa a ser centrada no afeto e na convivência familiar.
                    Como mencionado, no exercício da parentalidade responsável insere-se o dever de criar o filho. No entanto, o verbo "criar" torna-se um tanto quanto amplo neste cenário. Tal fato se dá porque a criança está em constante crescimento, ou seja, a cada atitude, a cada ação, a cada nova experiência ela está adquirindo novos conceitos e superando velhas barreiras.
                     O significado do verbo criar é, pois, acompanhar o filho neste constante crescer, desde o primeiro momento possível, alcançando-lhe não só os meios materiais para o seu crescimento, como também os de caráter emocional e afetivo. Isto porque o salutar desenvolvimento da criança e do adolescente envolve uma dinâmica entre as bases emocionais e os valores morais e pedagógicos que são adquiridos durante a infância, os quais advêm precipuamente das relações afetivas paterno-filiais, que afetam sobremaneira a construção do caráter do indivíduo, pois são os pilares da formação da sua personalidade. É inconcebível afastar da responsabilidade parental o dever de dar afeto, amparo moral e de conviver com o filho durante esta contínua fase de construção do ser humano.
                     No contexto constitucional do tema, esse dever deve ser cumprido, levando-se sempre em conta a especial condição das crianças e adolescentes como seres em desenvolvimento, da necessidade que eles têm de uma orientação pedagógica, moral e esteio emocional, o que se faz na convivência, no acompanhamento, nos exemplos, enfim, na arte de conviver, que permite a concreta transmissão de valores familiares e construção de uma relação verdadeiramente afetiva.
                    Deste modo, a convivência familiar é direito dos filhos, e deve ser assegurada com prioridade pelos pais. Esta circunstância não pode ser alterada quando os pais são separados ou divorciados e apenas um dos genitores exerce a guarda do filho. Aquele que não está na companhia do filho deve procurar visitá-lo e aproximar-se. Tal encargo decorre do poder familiar, que é exercido por ambos os genitores independentemente da situação conjugal em que se encontram. O próprio ordenamento jurídico prevê a perda do poder familiar ao pai que deixar o filho em abandono. Rolf Madaleno, apesar de esclarecer que as visitas podem ser suspensas caso estejam causando prejuízo ao filho, afirma que elas representam um direito-dever dos pais, mas que "se vinculam muito mais ao direito dos filhos do que ao direito dos pais, pois para o filho em formação é de extrema importância a convivência sadia com seus genitores".
                    Logo, resta evidente que dentre as obrigações parentais previstas constitucionalmente encontra-se a convivência familiar, decorrente do princípio da parentalidade responsável. E deve-se ir mais além: essa convivência familiar precisa ser regrada pelo afeto e cuidado. Surge deste entendimento o princípio da afetividade no Direito de Família: as relações familiares constituídas através de laços de afetividade representam a base da sociedade, pois é por meio do afeto que damos sentido à existência humana, que aprendemos a respeitar o outro e que desenvolvemos nosso caráter. A ausência destes elementos na criação dos filhos produz sequelas emocionais que podem comprometer o desenvolvimento da personalidade da criança e adolescente, assim como a capacidade desse indivíduo vir no futuro constituir uma base familiar regrada pelo afeto, inclusive em relação a seus próprios filhos.
                    As palavras da psicanalista e advogada Gisele Câmara Groeninga (2010, p. 204-205) servem como base para o presente estudo, porquanto tratam da importância dos relacionamentos e dos vínculos que criamos ao longo da vida para a formação da nossa identidade.
                    Os psicanalistas, na investigação e interpretação da vida mental, revelaram no adulto a influência de sua infância; na criança, a influência de sua primeira infância; no bebê, a influência dos pais e, finalmente, revelaram que estas influências passam consciente e inconscientemente de geração em geração. Temos um passado de relacionamentos que se somam no presente da vida, moldando nossa forma de interpretar o mundo.
Neste contexto, destaca-se o chamado abandono afetivo, condição em que um dos pais deixa de ter o filho em convivência, não lhe prestando os devidos cuidados, e negando-lhe o afeto e o carinho. O abandono afetivo, certamente, viola a integridade da criança e do adolescente e causa prejuízos a sua personalidade.

8 O ABANDONO AFETIVO COMO DANO EXTRAPATRIMONIAL

    Para Calderón “tanto o direito de família como a responsabilidade civil são objeto de releituras contemporâneas, que se adaptam para melhor corresponder aos desafios da atualidade” (2013. p. 346). Os dois ramos do Direito Civil se aproximam e passam a se conectar intensamente, de forma inovadora, o que é vital para a compreensão dos julgados sobre o abandono afetivo.
                 Pode um pai ou uma mãe ser responsabilizados civilmente e condenados por abandonar o seu filho? A responsabilidade paterno-filial se resume ao dever de sustento e ao provimento material? O dever dos pais vai até o suprimento das suas necessidades imprescindíveis para a manutenção dos seus descendentes diretos? Ou vai além do dever de cuidado, com uma participação mais efetiva dos pais na vida dos filhos e contribuindo para o seu crescimento e desenvolvimento sadio?
                  A responsabilidade paterno-filial não se resume no provimento material da criança ou adolescente, está afeta ao dever de cuidado que está explícito na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 9.068/1990 (ECA). Esse dever de cuidado perpassa pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que é o fundamento maior do ordenamento jurídico pátrio, tendo como princípio implícito e não menos importante a afetividade, que é o pilar do direito das famílias. Segundo Paulo Lôbo (2011, p 70):
                  Esse é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, tendo primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Ainda, conforme o autor, no âmbito familiar, o princípio da afetividade especializa os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, CF) e da solidariedade (art. 3º, I, CF), e interliga-se aos princípios da convivência familiar e da igualdade entre os cônjuges, companheiros e filhos.
                   Para um julgamento justo deve haver o sopesamento dos princípios da liberdade e da solidariedade, ou seja, a liberdade do genitor de exercer ou não os deveres de pai e o direito do petiz de ver seus anseios atendidos, partindo de uma concepção fundada nos direitos fundamentais da paternidade responsável e da proteção integral da criança e do adolescente. Para Calderón (2013, p. 344):
                   A solução dos casos de abandono afetivo exige a superação dessa possível tensão entre os princípios da liberdade e da solidariedade, mais a própria constituição indica a solução que deve prevalecer. Uma leitura de todo o sistema a partir de uma perspectiva civil-constitucional também desnudará os aportes que permitirão a construção da resposta adequada a cada caso concreto.
                    A temática do Abando Afetivo foi entendida pelo Superior de Tribunal de Justiça como passível de indenização civil e por ser inovadora nos tribunais é objeto de intensa discussão doutrinária e jurisprudencial, não sendo possível afirmar que há um entendimento pacífico sobre o tema, entretanto, as decisões vêm caminhando no sentido da reparação do dano extrapatrimonial.
                    Para o Direito a ausência injustificada do genitor causa dor psíquica e o consequente prejuízo à formação da criança, não só pelo abandono afetivo, também pelo dever de cuidado, da proteção e da referência que todo filho tem do pai, inclusive. O filho com a ausência da figura paterna tem o seu direito de convivência comunitária prejudicado em virtude da autoestima da criança está prejudicada. A criança recusa-se a participar dos eventos sociais, para não ser interpelado pelas outras crianças se ela não tem pai.
                    Frequentemente pais quando se separam da família independente das razões colocam o interesse na formação de uma nova família acima dos interesses dos filhos do relacionamento anterior e essa atitude de abandono gera um sentimento de humilhação e rejeição que transformam em causas de danos irreparáveis como complexo de inferioridade, que demanda acompanhamento médico e psicológico para reparação do dano causado pelo abandono afetivo. Com sensibilidade e maestria Ralph Madaleno (2013, p. 234) escreve: [...] justamente por conta das separações e dos ressentimentos que remanescem na ruptura da sociedade conjugal, não é nada incomum deparar com casais apartados, usando os filhos como moeda de troca, agindo na contramão de sua função parental e pouco se importando com os nefastos efeitos de suas ausências, suas omissões e propositadas inadimplências dos seus deveres. Terminam os filhos, experimentando vivências de abandono, mutilações psíquicas e emocionais, causadas pela rejeição de um dos pais e que só servem para magoar o genitor guardião. Como bombástico e suplementar efeito, baixa a níveis irrecuperáveis a auto-estima e o amor próprio do filho enjeitado pela incompreensão dos pais.
                      Nesse sentido o judiciário amparado no Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente vem julgando favoravelmente os casos concretos, restando provado o nexo de causalidade entre o abando afetivo e o dano extrapatrimonial causado.
                       O primeiro acórdão analisado trata de um pai que recorre de apelação provida em favor da filha. A decisão do E. Tribunal de Justiça de forma precursora naquela Corte concedeu a reparação pela relevância do abandono afetivo conforme ementa a seguir:
                       CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. Ministra Relatora. Brasília (DF). (STJ, Resp nº 1.159.242 - SP Relª Minª MINISTRA Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 24.04.2012. DJe 10.05.2012).
              Para a nova concepção do direito das famílias o novel julgado traz consigo algumas questões a saber: qual a intensidade de intervenção é admitida nesse espaço familiar na atualidade; a possível tensão entre liberdade e solidariedade nas relações familiares; de qual responsabilidade e afetividade se está a tratar; quais situações seriam passíveis de configurar o propalado abandono afetivo quais seriam seus requisitos necessários; como se comprovaria judicialmente; se haveria excludente de ilicitude na espécie; qual o sentido de cuidado que ancora o decisum; quais os critérios para fixação de eventual indenização.
               Mesmo não estando presentes todas as respostas para estas intrigantes questões, há que reconhecer que o julgado sustentou solidamente a possibilidade de condenação do genitor por abandono afetivo decorrente da ausência do dever de cuidado. Violando dessa forma o princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988, o conceito de família alargou-se deixando de ser um fim em si mesmo, deixou de ser apenas uma abstração jurídica, passando ser um instrumento de promoção da dignidade dos seus membros, pautada na afetividade e solidariedade dos seus integrantes. No nosso ver a família é o ninho que a criança nasce e dali é delineada a sua personalidade pelo carinho, pela atenção e pela convivência sadia.
              Forçado pelas transformações ocorridas na família no século XX o Direito Civil Brasileiro teve que se amoldar às transformações sociais. Com essas transformações a família que anteriormente se baseava no patrimônio e na procriação, passa para novas formas de convivência familiar pautas no afeto e na solidariedade dos seus membros. Na medida que a sociedade altera suas características centrais o direito deve adequar-se a essas transformações. A par dessas transformações, a doutrina e a jurisprudência sentiram uma carência na legislação e passaram a tratar de temas ainda sem expressão positivada.
               Considerando que a criança e o adolescente a partir da nova perspectiva de direitos concebidos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, a população infanto-juvenil foi alçada à condição de sujeito de direitos, com prioridade absoluta nas políticas sociais, pela condição peculiar de pessoas em desenvolvimento físico, psíquico e social, com atenção especial por parte da família, da sociedade e do Estado, em contraponto à doutrina da situação irregular que tratava o “menor” como objeto de proteção estatal apenas quando em situação de risco. Nesse ínterim, com o novel direito constitucional pautado no princípio maior da dignidade da pessoa humana, que passou a tratar o direito de família sob uma nova perspectiva, pautado na afetividade. É possível concluir que a Carta Magna de 1988 inovou profundamente o conceito jurídico da família brasileira, estabelecendo dentre as principais alterações a igualdade entre cônjuges, filhos, advindos ou não do casamento, o reconhecimento da união estável e da família monoparental e a proteção integral a crianças e adolescentes.
               Com as transformações ocorridas ao longo do tempo as relações familiares evoluíram para uma compreensão ética, solidária e afetiva, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros.
                A Proteção Integral da Criança e do Adolescente, estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição Federal de 1988 e posteriormente com o Estatuto da Criança e do Adolescente, elevaram a Criança e o adolescente à condição de prioridade nacional, reconhecendo-os como sujeitos de direitos fundamentais, com prioridade absoluta.
                O ECA apresentou-se como um diploma inovador capaz de transformar a lei em realidade e operar a mudança social pretendida pelo legislador. Conclui-se ainda, que o abandono afetivo viola o Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente que está intimamente e constitucionalmente ligado ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que é compreendido hodiernamente como o norteador do ordenamento jurídico brasileiro e do qual todos os demais princípios são derivados.
                  Como violação ao Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente é possível uma reparação por dano extrapatrimonial, ou seja, uma remuneração financeira por um dano causado, a conforme decisões do STJ. As decisões do Pretório Tribunal são pautas na responsabilidade objetiva do dano extrapatrimonial, não como uma compensação para reparação do dano moral, mais a partir de uma concepção de punição para o ofensor.
                   Nas correntes contrárias à indenização por dano moral por abandono afetivo surge a pergunta é possível monetarizar o afeto? Não se trata, de monetarizar o afeto, ou indenização do sofrimento, ou reparar a falta de amor ou desamor trata-se sobre tudo de imputar a responsabilidade pela conduta que evidentemente causa danos, penaliza, e deixa sequelas que perduram por uma vida toda. As decisões penalizam quem tem o dever não apenas legal, mais dever moral de cuidar, educar e direcionar a criança para um futuro, afinal, a paternidade ou maternidade, adoção, é um ato de livre escolha. O abandono também é caracterizado pela violação dos deveres morais contidos nos direitos fundados na formação da personalidade do filho abandonado.
                     A paternidade/maternidade responsável não é um conjunto de competência dos pais é um conjunto de deveres dos pais, ou seja, é um conjunto de deveres para melhor atender aos interesses da criança ou adolescente.
As relações jurídicas e a afetividade não são indiferentes, pois, é esta que aproxima as pessoas dando origem aos relacionamentos, que geram aquelas, emergindo a sócioafetividade.

REFERÊNCIAS
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TEPEDINO, Gustavo. A tutela das personalidades no Ordenamento civil – Constitucional brasileiro. In. Temas de direito civil. Rio de janeiro: Renovar, 1999.

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Sobre o autor
Jorge Dias de Souza

Advogado<br>Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz<br>Pós Graduando em Direito e Processo do Trabalho

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