A Constituição brasileira promulgada em 1988 contemplou e deu guarida a inúmeros direitos dentre os quais a privacidade e a intimidade, previstos em seu rol de direitos individuais, desde então muito invocados e amplamente utilizados.
O direito, como ciência, é mutável e passa por processos adaptativos, moldando-se ao talante das necessidades da época em que vige, sob pena de, em não o fazendo, experimentar a não efetividade de suas normas. Nesse passo, não somente regras passam por mutações, mas também os conceitos de institutos jurídicos devem ser analisados e delineados em consonância com a realidade social em que vigem.
As alterações e conformações da legislação com a demanda social não são novidade, sendo mesmo conhecido de todos o quanto nossa Constituição Federal sofreu mudanças desde sua inauguração no ordenamento jurídico pátrio e também o quanto leis, e demais espécies normativas, são confeccionadas e modificadas todos os dias.
De igual forma, conceitos jurídicos passam por mutações para se adequarem à realidade do tempo em que vigem, sendo este o caso do conceito de privacidade e intimidade, creio eu, os quais não podem ser vistos sob o mesmo prisma da época em que foram editados, haja vista a existência de uma imensa fenda denominada internet, separando aquela geração desta.
Nesse contexto em que nos encontramos atualmente, cunhado pela insígnia da exacerbada exposição virtual, depara-se com o dilema jurídico de se definir os sensíveis lindes dos conceitos de privacidade e intimidade, cuja tarefa é árdua e demanda um olhar complexo, em cotejo com outros institutos jurídicos.
A necessidade humana de aprovação e aceitação, seja ela própria ou alheia, remonta a sua própria existência, encontrando variáveis que oscilam do exagero ao ostracismo e tem estreita relação com a vaidade humana. É algo intrínseco do ser e dele indissociável.
Essa necessidade de se sentir admirado, desejado e querido ganhou enorme – e porque não dizer exacerbada - dimensão com o florescer da internet e de suas infinitas possibilidades, manifestadas em blogs, vlogs, redes sociais, canais de vídeos, dentre muitas outras opções de interação. Criou-se um universo paralelo, uma verdadeira second life em que se aflora e manifesta um alter ego reprimido – ou não.
Com a miríade de possibilidades disponíveis na rede, a vida pessoal passa a ser uma vitrine em que se expõe desde inocentes fotos de almoços de domingo com a família até mesmo vídeos íntimos de conotação sexual: blasonar é o fim almejado.
Observa-se que a internet popularizou e disseminou algo que era muito restrito a um seleto grupo de pessoas ascendentes socialmente: projeção e ostentação. Aquilo que era circunscrito aos periódicos de entretenimento como as ditas “revistas femininas” – termo pejorativo que comumente se designa esses trabalhos jornalísticos de gosto pouco sofisticado ou instrutivo – tornou-se acessível a qualquer pessoa, bastando a esta escolher qual a forma que deseja ver sua intimidade exposta. E a celeuma se instaura.
O que clamar em defesa da própria intimidade e privacidade quando indivíduos, sem um propósito lógico ou racional, lançam fotos de seus filhos na web e a elas atribui legendas com informações detalhadas sobre a rotina destes; o que argumentar em defesa do ser que fotografa o próprio patrimônio e o expõe de maneira deslumbrada na web? Não é possível conceber-se como natural e fruto de uma nova concepção cultural algo que pode trazer transtornos de ordem pessoal, prejuízos morais e até mesmo materiais.
O árduo trabalho do operador do direito cinge-se na apuração da conduta ofensiva à privacidade e intimidade, os quais, por vezes, são violados pela própria vítima, diariamente e deliberadamente, na medida em que esta se propõe a divulgar sua vida, num diário virtual, sem o desejável filtro do bom senso.
A plataforma virtual funciona como um escape para a pobre e fosca realidade cotidiana, tecida de desilusões e frustrações não assimiladas; uma passarela em que desfilam toda a sorte de misérias íntimas, sequiosas de aplausos e aceitação alheia, elementos estes que se constituem no alimento da vaidade humana.
O bom senso, ou ainda, o discernimento daquilo que é possível expor sem que se possa flagelar a própria intimidade é muito singular e não cabe dentro de estreitas bordas delineadas em conceitos jurídicos fechados e estanques, devendo-se levar em conta - sempre – a realidade pessoal da vítima, seu contexto de vida e o valor que atribui às suas reservas pessoais.
Por fim, encerra-se esse breve texto, com o sentimento de que o homem - enquanto ser conflituoso e dual - transfere e exterioriza referidas características às suas relações de forma que, ao mesmo tempo em que clama pela defesa e proteção de sua intimidade e privacidade, dela se dispõe habitualmente e voluntariamente, o que permite concluir que complexo é o ser humano, não o direito.