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Reflexões sobre a advocacia, em seu contexto de indispensabilidade à administração da Justiça

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28/05/2004 às 00:00
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6) O policiamente ético da Advocacia

A análise crítica de sua atuação leva a indagar se a Ordem dos Advogados do Brasil passa ou não por um sério dilema: é órgão de fiscalização ou entidade de defesa dos advogados ?

Com alguma freqüência se vê na TV propagandas de candidatos às Seções e Subseções que colocam como plataforma eleitoral "a defesa intransigente dos advogados".

Esta postura, que afeta parte da OAB não é nova e levou, inclusive, a OAB a propor, em 1953, um projeto de lei que proibia a sindicalização dos advogados, como pontifica José Maria e Silva:

O problema é que os interesses da profissão acabam se sobrepondo aos interesses da sociedade, gerando o corporativismo. A Ordem dos Advogados do Brasil é quem mais padece dessa doença — a OAB é extremamente corporativa. A começar por sua própria constituição. Filha da ditadura de Getúlio Vargas, que a criou por decreto, a OAB, em seu corporativismo, chega a ser totalitária. Como o feroz Jeová bíblico diante do aterrorizado povo hebreu, a OAB diz aos seus filiados: "Não terás outros deuses diante de mim". E, na prática, proíbe seus filiados de terem sindicatos, contrariando, frontalmente, a Constituição da República, que garante o livre associativismo. Em 1953, a OAB chegou a elaborar um anteprojeto de lei, apresentado à Câmara dos Deputados por um parlamentar, conferindo prerrogativas sindicais a si mesma e proibindo os advogados de serem filiados a qualquer sindicato. Diante de sua flagrante inconstitucionalidade, o projeto acabou sendo arquivado.

Hoje, na legislação que rege o exercício da Advocacia, prevê-se laconicamente a existência de sindicatos de advogados. Mas, na prática, eles não existem. Como reconhece o advogado Ruy de Azevedo Sodré, no livro A Ética Profissional e o Estatuto dos Advogados, quando viu que não seria possível impedir, por lei, a sindicalização do advogado, a OAB preferiu lançar mão de outra estratégia — deixou "aberta a porta da sindicalização", mas, ao mesmo tempo, tornou-a "de um lado vazia, de outro onerosa" (p.569). As palavras entre aspas são do próprio Ruy Sodré, que, aliás, foi o autor intelectual do anteprojeto rejeitado. Todavia, mesmo arvorando-se a ser também sindicato, a ponto de tentar ferir a Constituição com esse objetivo, a OAB, quando se mete nos Tribunais de Justiça, inclusive no Supremo, através do quinto constitucional, garante que seus representantes jamais pensam em interesses classistas — só no bem do Brasil.

Só mesmo os filhos do acaciano Rui Barbosa para acreditarem nesse conto da carochinha. É mais do que óbvio que os conselhos profissionais são incompatíveis com a atividade sindical. Por uma razão muito simples: o conselho representa a profissão, enquanto o sindicato representa o profissional — e quase sempre os interesses da profissão (que devem ser os da sociedade) ferem os interesses do profissional (que tendem a ser os do seu bolso). Ora, a função do sindicalista (que se ocupa de salário) é incompatível com a função do conselheiro (que se ocupa de ética). (...) [4]

Entretanto, a Ordem dos Advogados do Brasil deve servir, principalmente, para colocar ORDEM na Advocacia, ou seja, não é uma associação de classe, que pode (e deve) ser corporativa (e defender de forma intransigente); é uma Autarquia [5], criada por Lei Federal, destinada a regular o exercício de uma função essencial à administração da justiça, uma verdadeira Corregedoria da Advocacia.

Nessa ótica é que, por vezes, se vê um afrouxamento de alguns dos Tribunais de Ética, principalmente em épocas de eleição na Autarquia [6], com referência, inclusive, a advogados utilizados pelo tráfico em atividades ilícitas e que sofreram punições levíssimas [7].

As questões éticas devem ser tratadas com rigor e rapidez (como deveriam sê-lo também, pela Magistratura, pelo Ministério Público e pelo Serviço Público em geral). Embora um erro não justifique outro, é questionável o direito da OAB em criticar o corporativismo do Ministério Público e da Magistratura, diante da postura que adota ante os advogados, bastando recordar que por detrás de um Juiz ou policial corrupto há, de regra, um advogado corruptor [8].

Quando um Juiz, Promotor, delegado de polícia ou outra autoridade oficia à OAB, não o faz, salvo por exceção, como forma de vingar-se ou de demonstrar uma superioridade ou hierarquia inexistentes. Em muitos casos contudo, a Autarquia assim se comporta, absolvendo contra a prova dos autos (é emblemático um caso de patrocínio sucessivo em que o advogado utilizou-se de documentos deixados pelo antigo cliente contra o próprio; absolveu-se ante a informação de que teria feito "no interesse da justiça", argumento por óbvio que excluiria a existência do ilícito penal, em qualquer circunstância).

É necessário rigor no policiamento ético, limitado apenas pela independência que é tão necessária à Advocacia quanto à Magistratura. Esse rigor e o caráter público da atividade da OAB, impõe que se trate na forma da lei penal, as absolvições ou condenações em processos administrativos, que se façam contra a lei e a prova dos autos. O corporativismo, seja do Judiciário, do Ministério Público ou da Advocacia é sinônimo de prevaricação e assim deve ser tratado. É falacioso o entendimento que o direito dos ofendidos ou autoridades esgote-se na denúncia e não na punição, como se fosse esta uma faculdade da Instituição (Judiciária, OAB ou MP).

Em um regime democrático, como se garante um quinto constitucional nos Tribunais, metade formado pela OAB e metade pelo Ministério Público, idêntica proporção deveria ser observada nos Conselhos de Ética da OAB, em relação a advogados que fossem juízes e Promotores aposentados. Note-se que também o Conselho Nacional de Justiça, em fase de discussão legislativa, prevê a participação dos advogados, que, entretanto, continuam imunes à interação com os outros operadores jurídicos [9]. Aliás, a democracia só se satisfaz em um sistema de freios e contrapesos, checks and balances. Deste modo, estaria resguardada a instituição contra os arroubos corporativistas e também contra as acusações, muitas vezes injustas, de sua ocorrência.

A OAB com sua longa história de luta democrática, pela moralidade, pela seriedade dos poderes constituídos, não pode deixar-se contaminar pelo vírus do corporativismo que torna relativos os padrões éticos, abala a confiabilidade institucional e serve de justificativa aos vícios que corajosamente denuncia.

Os advogados sérios e honestos, verdadeiros paladinos da justiça, não podem ter sua reputação maculada, pelos que há muito esqueceram que a justiça é uma vocação e não um balcão de negócios; pelos que colocam o cliente, o Judiciário, os servidores, o Ministério Público, como meros obstáculos a vencer na defesa egoística dos próprios interesses, os únicos que lhes importa.

O povo costuma julgar pelo gênero e não pelo espécime, quando aponta o erro. A toga, a beca, a farda e a batina, costumam ser meios fáceis para que se considere toda uma categoria maculada, pelos erros de um ou de uns poucos.

Daí porque é necessário demonstrar que as instituições não compactuam com os vícios de seus membros e demonstrá-lo de forma irrefutável, relegando os advogados desonestos ou ineptos (assim como os demais operadores jurídicos) às anedotas (10, após alijá-los da categoria que pretenderam macular.

A OAB precisa portanto, assumir a condição sua condição fiscalizadora, de correição da Advocacia, executando com maior rigor o policiamento ético da classe dos advogados, para que estes sirvam, com perfeição e sem máculas à administração da justiça.


7) O controle externo da Advocacia

Tema em voga hoje é a necessidade de controle externo do Judiciário, afirmando-se que, a democracia o exige e que sua prática não traduzirá prejuízos à sua necessária independência.

A Ordem dos Advogados do Brasil é ardente defensora do controle externo do Judiciário e do Ministério Público, quando os argumentos que utiliza podem e devem, com igual rigor, justificar o controle externo da Advocacia, como bem adverte Maria e Silva:

Apenas uma instituição no Brasil não tem qualquer espécie de controle — a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB está acima da Constituição. Ela tem o direito de integrar os supremos poderes da República, mas não admite o dever de ser fiscalizada como todos os demais poderes. Enquanto os demais conselhos profissionais, como o Conselho Federal de Medicina, e até o Judiciário e o Legislativo se submetem à fiscalização do Tribunal de Contas da União, a OAB não dá satisfação a ninguém — ela jamais aceitou ter suas contas vistoriadas pelo TCU. No entanto, essa mesma instituição que se recusa a ser fiscalizada, terá assento no Conselho Nacional de Justiça — o órgão inconstitucional que está sendo criado pelo Executivo para controlar o Judiciário e oprimir a nação. [11]

Quando se fala em controle externo, a Ordem dos Advogados do Brasil costuma afirmar primeiro que sua função sui generis de fiscalização da sociedade contra-indica qualquer instrumento que possa lhe causar temor e em segundo lugar, o caráter privado da Advocacia.

Ora, se o Judiciário que é um Poder do Estado, decorrendo de sua independência a própria noção de democracia, ou seja, da divisão de poderes, conforme lições de Locke (Segundo tratado sobre o governo) e Montesquieu (Espírito das Leis), embora Platão e Aristóteles (Política) já houvessem feito alusão a essa necessidade, senão condição essencial; com igual raciocínio se pode afirmar que, todos os entes que estejam abaixo do Poder do Estado, ou seja, sob o império da Lei e da Constituição, podem sofrer algum tipo de controle, o que não significa redução de suas funções ou administração de sua vontade. Não há democracia onde alguns sejam mais iguais que os outros, para usar as palavras de George Orwell (Revolução dos Bichos).

Quanto ao caráter privado, há de se recordar que não se pode confundir a autonomia da Advocacia com o caráter público de suas funções, indispensáveis à administração da Justiça. A Advocacia exerce um múnus que ultrapassa os interesses privados que possa representar, atingindo toda a sociedade, posto que a paz é fruto da justiça. O interesse público que a justifica e sustenta, não permite que o interesse privado (do advogado), que lhe é subjacente, possa ser monopolizado.

Não pode a Ordem dos Advogados do Brasil colocar-se, como faz em alguns casos, acima de qualquer vício ou críticas, estas refutadas de forma contundente e imediata. Quando a crítica é feita pelo leigo é apontada como uma forma de ignorância; quando é feita pelo Juiz ou pelo Promotor, é tida por um ultrapasse da competência, para ingresso em assuntos corporativos; quando feita por membros da própria classe é interpretada ou como uma apostasia ou como fruto de algum interesse velado (inclusive de política interna) [12].

Se o Judiciário e o Ministério Público precisam de controle externo, como se afirma com veemência nestes tempos, a OAB também precisa de controle externo, porque não congrega a classe isolada dos juristas santos, nem dos santos juristas, embora estes podem estar presentes, com as limitações humanas, em todas as carreiras jurídicas.

Sendo a Ordem dos Advogados do Brasil uma autarquia federal, que cobra contribuições compulsórias de todos quantos pretendam exercer o honroso encargo de advogado (já que a negar-se esta condição, não haveria como sustentar, juridicamente, a possibilidade de impor contribuições compulsórias, como requisito ao exercício profissional) [13], necessita assumir tal condição e prestar contas (à sociedade e ao Tribunal de Contas da União) dos valores que arrecada [14].

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Entretanto, seu controle externo não pode estar restrito ao controle da arrecadação e aplicação de suas receitas. Aliás este controle já vem sendo exercitado sobre o Judiciário desde priscas eras e não contenta a sociedade, nem a OAB.

O controle externo que se prega é o mesmo que se busca em relação ao Judiciário e ao Ministério Público, mormente sobre o exercício do policiamento ético (em acréscimo à gestão financeira das receitas).

O ideal seria que, ao invés de se falar em Controle Externo do Judiciário se buscasse o Controle Externo da Justiça, abrangendo o Judiciário, o Ministério Público, a Advocacia e até a Polícia, eliminando-se, pela possibilidade de revisão de decisões interna corporis que se manifestem corporativistas, tudo aquilo que faz a Justiça, como um todo, imperfeita.

Deste Controle Externo da Justiça, abrangendo também a Advocacia, decorreria o aperfeiçoamento da instituição em seu todo e em cada um dos seus segmentos, preservando-se as respectivas independências, ao mesmo tempo em que, garantiria à sociedade a absoluta isenção, atenção e seriedade com que qualquer mácula seria examinada.


8) O interinamento do quinto constitucional

O quinto constitucional, que prevê a participação de advogados e membros do Ministério Público nos Tribunais nasceu com uma idéia específica, qual seja, a de arejar o pensamento dos tribunais, muitas vezes formados por juízes no final de carreira, em alguns casos impermeáveis aos avanços doutrinários e temerosos em prejudicar a segurança jurídica, ao tomar posições de vanguarda.

Seu sentido perdeu-se, por completo os fins do instituto.

Há vozes que defendem a extinção, pura e simples do instituto, por traduzir, inclusive, quebra da independência do Poder Judiciário, em razão das ingerências políticas que ocorrem, em muitos casos, para as nomeações. [15] Outros entendem que o ingresso nos Tribunais deveria se dar por concurso público, dentre advogados e Procuradores com larga experiência, o que não é uma idéia de todo afastável, se podendo elaborar um concurso específico, nos moldes dos realizados para a titularidade das cadeiras universitárias ou livre-docência. O notório saber jurídico assim seria realmente notório e traria para os tribunais ilustres juristas, o "crème de la crème", grandes doutrinadores que poderiam emprestar seus conhecimentos à jurisprudência, de forma mais efetiva e debruçar-se sobre casos práticos, para tornar a doutrina mais realista.

Entretanto entendemos que o melhor caminho seja outro [16], qual seja, seu caráter temporário (o que afasta a possibilidade de concurso, por todas as suas implicações) ou o, como preferimos o interinamento do quinto constitucional, por vários motivos.

Primeiro porque nem sempre a escolha recai sobre advogados que se destacam no meio advocatício e universitário, especialistas verdadeiros e cultores do direito. Em alguns casos o que prevalece é a maior mobilidade social e política do candidato, seu acesso aos poderes legislativo e executivo, embora haja não poucas exceções honrosas, que dignificam a Magistratura.

Em segundo lugar porque adquirem vitaliciedade simultaneamente à posse. O viço inicial da carreira, o desejo de transformar a jurisprudência e fazer seu aggiornamento se perde com os anos, pela mesma razão com que isso ocorre com os juízes de carreira.

Em terceiro lugar porque passam a almejar o exercício de cargos de direção em Tribunais (e é natural pela vitaliciedade) o que lhes impede de exercer seu caráter fiscalizatório interno, que também está na gênese do instituto.

A solução é tornar o quinto constitucional temporário e deslocá-lo geograficamente.

Poderia-se instituir, por exemplo, mandatos de três anos, em estado da federação necessariamente diverso da Advocacia, sucedido por uma ajuda-de-custo por cerca de um ano, para que pudesse retomar a Advocacia, desta feita com a experiência ampliada pela judicância.

Assim, por exemplo, um advogado do Rio Grande do Sul exerceria mandato de desembargador no Tribunal de Justiça do Ceará, onde sua inserção na lista tríplice dependeria mais de critérios técnicos (que políticos), o que acabaria por influir também na formação da lista tríplice [17].

Assim, além de levar para o nordeste as posições e doutrinas que campeiam por estas terras, traria, no retorno, as posições e doutrinas que vicejam no local da Corte em que atuou.

Uma outra vantagem adicional não pode ser desprezada. Os membros do quinto, sempre novos e desconhecidos, fariam com que as decisões administrativas dos tribunais afastassem qualquer traço de pessoalidade ou imoralidade, ante o temor de que o "estranho no ninho" tornasse pública a situação. O quinto se tornaria uma forma efetiva de fiscalização dos Tribunais, sem que sua independência fosse colocada em cheque.

O mesmo sistema poderia ser aplicado, com vantagem, ao Ministério Público, exceto quanto à ajuda de custo (já que retomadas as funções e os vencimentos normais). Vantagem porque permitiria ao parquet ter em seu corpo membros que já passaram pela Magistratura e conhecedores tanto de seus aspectos internos, como de suas agruras e seus defeitos [18].

Por fim, seria necessário excluir a possibilidade de ocupantes de cargos diretivos da OAB concorrerem às listas, por prazo mínimo de 03 anos, que é igual à quarentena proposta pela OAB para que juízes aposentados atuem, como advogados, junto aos tribunais de origem. Considerando-se ainda algumas competências privativas concedidas aos Procuradores-Gerais, inclusive o Procurador-Geral da República, seria salutar a vedação de que os ocupantes de tais cargos concorressem, a qualquer tempo, ao preenchimento de vaga nos Tribunais ou no STF. Isto ampliaria a independência e o destemor na atuação.

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Sobre o autor
José Ernesto Manzi

Desembargador do TRT-SC. Juiz do Trabalho desde 1990, especialista em Direito Administrativo (La Sapienza – Roma), Processos Constitucionais (UCLM – Toledo – España), Processo Civil (Unoesc – Chapecó – SC – Brasil). Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI – Itajaí – SC – Brasil). Doutorando em Direitos Sociais (UCLM – Ciudad Real – España). Bacharel em Filosofia (UFSC – Florianópolis – SC – Brasil), tendo recebido o prêmio Mérito Estudantil (Primeiro da Turma)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANZI, José Ernesto. Reflexões sobre a advocacia, em seu contexto de indispensabilidade à administração da Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 325, 28 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5244. Acesso em: 25 abr. 2024.

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