Análise sobre a (in)compatibilidade dos institutos da tentativa e do dolo eventual

16/10/2016 às 10:05
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Discussão acerca do cabimento do instituto da tentativa em crimes cometidos com dolo eventual.

  

É possível a tentativa de homicídio cometida com dolo eventual?

            Primeiramente, destaca-se que a questão de fundo consiste na discussão acerca do cabimento da tentativa nos crimes cometidos com o dolo eventual. Para tanto, é imprescindível apresentar os dois institutos.

            A tentativa está prevista no artigo 14, inciso II, CP:

Diz-se o crime:

(...) II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

 

Parágrafo único - Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

 

            Segundo Bittencourt, citando Aníbal, a tentativa deve conter todas as fases do iter criminis, menos a consumação. Capez afirma que a tentativa é a não consumação de um crime, depois de iniciada a execução, por circunstâncias alheias à vontade do agente. Sobre a punição da tentativa, o Código Penal adota a teoria objetiva em que não se pune a intenção, mas sim o efetivo percurso do iter criminis pois, em regra, deixa de fora da punição os atos preparatórios - aqueles prévios à execução. Ressalta-se, ainda, que o iter criminis só é possível em crimes dolosos, porque em crimes culposos é impossível se cogitar, preparar e executar algo que não se tenha vontade de produzir.

           

            O dolo, por sua vez, consiste na vontade manifestada pela pessoa de realizar a conduta. Capez destaca que o dolo envolve os meios utilizados e as conseqüências secundárias da atuação do próprio agente. A partir da análise do artigo 18, I, do Código Penal, interpreta-se que as teorias da vontade e do assentimento são as adotadas para aferir o dolo, já que é tanto a vontade de realizar um resultado, quanto a deitarão do risco de produzi-lo. No primeiro caso, temos o dolo direto, e no segundo caso o dolo indireto. Este subdivide-se em dolo eventual e dolo alternativo, sendo que ambos representam uma certa insegurança em relação ao resultado que se pretende produzir.

            No caso do dolo eventual (foco das considerações para este estudo), o sujeito representa o resultado como de produção provável, e embora não queira propriamente produzi-lo, admite a sua eventual produção. Portanto, é assunção de risco de produzir um resultado lesivo a um bem juridicamente protegido, ou seja, o agente não se importa com a sua ocorrência. É difícil de se identificar, já que não se afere a vontade de produzir o resultado, e sim apenas a consciência de que este resultado possa vir a ocorrer.

            Feitas estas considerações, passa-se a uma análise conjunta dos institutos por situações em que apareçam simultaneamente.

            Eugênio Raul Zaffaroni acredita serem institutos compatíveis. Ele afirma que a tentativa requer sempre o dolo, direto ou eventual, já que o nosso ordenamento jurídico não distinguiu a sua aplicação.

                     "A circunstância de se considerar a tentativa como um crime incompleto, não impede que nela exista uma ofensa ao bem jurídico.

                     (...) A tentativa requer sempre o dolo, isto é, o querer do resultado. Não há razão alguma para excluir o dolo eventual da tentativa.".

 

            O autor ainda completa, exemplificando:

                     "O dolo da tentativa é o mesmo dolo do delito consumado, isto é, o querer do resultado morte é o mesmo, tenha a bala causado a morte ou não.".

 

            Compartilha do mesmo entendimento, Guilherme Nucci, sendo contundente:

 

        "É perfeitamente admissível a tentativa com o dolo eventual, embora seja de difícil comprovação no caso concreto.". (178)

           

            Rebatendo os argumentos de quem acredita serem dois institutos incompatíveis, o autor desenvolve:

 

"(...)            Segundo a lei penal brasileira, configura-se a tentativa quando o agente deu início à execução de um crime que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, motivo pelo qual ele pode ingressar no estágio de execução movido pela assunção do risco e não necessariamente por uma vontade clara e direta de atingir o resultado.

(...) para a realização completa do tipo, em nível subjetivo, exige-se que o dolo envolva todos os elementos objetivos.

(...) não se trata de analogia 'in malam partem' nem tampouco de incompatibilidade do querer do agente com o conhecimento da sua própria vontade em face da idoneidade dos meios utilizados. (...) Há, em nosso entender, zonas cinzentas do querer, totalmente compatíveis com a previsão legal do dolo eventual. Em outras palavras, é perfeitamente viável a atuação do agente que, buscando determinado resultado, admite como possível a ocorrência de outro que, embora não desejado diretamente, é assimilado, acolhido, sufragado, ainda que camufladamente.

(...) E frise-se: não interessa para a configuração da tentativa que a vontade seja direta, bastando que exista e haja previsão legal para punição de um crime por dolo eventual.".

 

            Cézar Roberto Bittencourt e Francisco Conde seguem o mesmo posicionamento referindo-se à teoria do consentimento, afirmando que consentir na ocorrência do resultado é uma forma de querê-lo. Defendem que a vontade que consente na ocorrência do resultado é dolo também:

        "Para esta teoria, também é dolo a vontade que, embora não dirigida diretamente ao resultado previsto como provável ou possível, consente na sua ocorrência ou, o que dá no mesmo, assume o risco de produzi-lo. A representação é necessária, mas não suficiente à existência do dolo, e consentir na ocorrência do resultado é forma de querê-lo.".

 

            Jurisprudência:

 

PENAL. PROCESSUAL. INÉPCIA DA DENUNCIA. AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO PARA A AÇÃO PENAL. CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL.POSSIBILIDADE DA FORMA TENTADA. "HABEAS CORPUS". RECURSO. 1. NÃO HA QUE SE DIZER INEPTA A DENUNCIA QUE PREENCHE TODOS OS REQUISITOS IMPOSTOS PELO CPP, ART. 41.2. A AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO PARA A AÇÃO PENAL NÃO PODE SER VERIFICADA NA ESTREITA VIA DO "HABEAS CORPUS"; SO APOS O REGULAR CURSO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PODERA SE CHEGAR A CONCLUSÃO SOBRE SUA EFETIVA PARTICIPAÇÃO. 3. ADMISSÍVEL A FORMA TENTADA DO CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL, JÁ QUE PLENAMENTE EQUIPARADO AO DOLO DIRETO; INEGÁVEL QUE ARRISCAR-SE CONSCIENTEMENTE A PRODUZIR UM EVENTO EQUIVALE TANTO QUANTO QUERE-LO.4. RECURSO CONHECIDO MAS NÃO PROVIDO.

 

(STJ - RHC: 6797 RJ 1997/0065157-6, Relator: Ministro EDSON VIDIGAL, Data de Julgamento: 16/12/1997, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 16/02/1998 p. 114)

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA LESÃO CORPORAL. IMPOSSIBILIDADE. DOLO EVENTUAL E TENTATIVA. COMPATIBILIDADE. DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA. AUSÊNCIA DE PROVA. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DE USO DE MEIO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O PROSPERA A TESE DEFENSIVA DE DESCLASSIFICAÇÃO, SEJA PORQUE OS CRIMES PRATICADOS COM DOLO EVENTUAL ADMITEM A FORMA TENTADA, SEJA PORQUE O CONJUNTO PROBATÓRIO NÃO EVIDENCIA, DE PLANO, TER O RECORRENTE, POR ATO VOLUNTÁRIO, DESISTIDO DO PROCESSO EXECUTÓRIO. 2. A AUSÊNCIA DE INDÍCIOS QUE EVIDENCIE TER O AGENTE AGIDO COM PROPÓSITO DE IMPOSSIBILITAR A DEFESA DA VÍTIMA IMPÕE A EXCLUSÃO DA REFERIDA QUALIFICADORA DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. 3. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

 

Trecho do voto:

"Improcedente a tese sustentada pela defesa de incompatibilidade do dolo eventual com a tentativa.

A tentativa, nos termos do art. 14, II, do Código Penal, fica configurada quando, iniciada a execução, o crime só não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Na hipótese dos autos, a vítima foi atingida em regiões letais (nuca e região torácica) e o crime apenas não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do recorrente.

Ademais, de acordo com a teoria finalista da ação, tanto faz ter por fim o resultado (dolo direto), ou algo que leve, necessária ou possivelmente, ao resultado (dolo eventual). O doutrinador Nélson Nery, citado na obra de Cleber Masson, leciona que:

Se o agente aquiesce no advento do resultado especifico do crime, previsto como possível, é claro que este entra na órbita de sua volição: logo, se, por circunstância fortuitas, tal resultado não ocorre, é inegável que o agente deve responder por tentativa. É verdade que, na prática, será difícil identificar-se a tentativa no caso de dolo eventual, notadamente quando resulta totalmente improfícua (tentativa branca). Mas, repita-se: a dificuldade de prova não pode influir na conceituação da tentativa. (Direito Penal Esquematizado, Parte Geral, Ed. Método, pág. 544). (....)"

(TJ-DF, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 08/03/2012, 3ª Turma Criminal)

           

            Por outro lado, acredita serem institutos incompatíveis: Júlio Fabbrini Mirabete. Afirma que ao colocar em perigo a integridade corporal de alguém voluntariamente, sem querer causar a lesão, pratica o fato típico previsto no artigo 132. Quem põe em risco a vida de alguém, causando lesão e sem querer a sua morte, pratica lesão corporal de natureza grave, hipótese do artigo 129, parágrafo primeiro, inciso II. Ele afirma, portanto, que é a partir da análise do elemento subjetivo que se distingue o crime de homicídio do crime de lesão corporal. O ordenamento pune menos severamente quem assume o risco de produzir um resultado que acaba por não acontecer.

            Entre os defensores desta perspectiva, há quem alegue que para configurar crimes dolosos, é preciso que o agente passe por todas as fases do iter criminis, cogitando, preparando e executando. Isso é incompatível com o dolo eventual, porque nestes casos o agente não cogita nem prepara o crime.

            Concorda com este entendimento Rogério Greco ao afirmar:

       

        "A própria definição legal do conceito de tentativa nos impede de reconhecê-la nos casos em que o agente atua com dolo eventual. Quando o Código Penal, em seu art. 14, II, diz ser o crime tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, nos está a induzir, mediante a palavra vontade, que a tentativa somente será admissível quando a conduta do agente for finalística e diretamente dirigida à produção de um resultado, e não nas hipóteses em que somente assuma o risco de produzi-lo, nos termos propostos pela teoria do assentimento.

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            Diz-se que não há como punir a tentativa com dolo eventual sem violar a proibição "in malam partem". Isto porque quem visa outros fins e aceita o risco de produzir um resultado delituoso, não quer diretamente a produção daquele delito. Por incompatibilidade lógica: ninguém tenta fazer algo que não quer que aconteça.

            Jurisprudência:

TRIBUNAL DO JÚRI. TENTATIVA. HOMICÍDIO. DOLO EVENTUAL. INCOMPATIBILIDADE. O DOLO EVENTUAL, EM LINHAS GERAIS DEFINIDO COMO A ACEITAÇÃO, PELO AGENTE, DA PRODUÇÃO DO RESULTADO MAIS GRAVE, MAS QUE CONSCIENTEMENTE NÃO PRETENDE OBTER, É INCOMPATÍVEL COM O INSTITUTO DA TENTATIVA, QUE EXIGE O DOLO DIRETO. PROVIMENTO DO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DEFENSIVO.

(TJ-RS - RSE: 70052819752 RS , Relator: Newton Brasil de Leão, Data de Julgamento: 07/08/2013, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/09/2013)

“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TENTATIVA DE HOMICÍDIO PRATICADA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. DECISÃO DE PRONÚNCIA. FUNDAMENTAÇÃO DE POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DE DOLO EVENTUAL. RECURSO DEFENSIVO VISANDO A DESCLASSIFICAÇÃO DO FATO. ALEGAÇÃO DE INCOMPATIBILIDADE ENTRE O INSTITUTO DA TENTATIVA E O DOLO EVENTUAL. ACOLHIMENTO.

“A despeito de haver prova material do ilícito e indícios suficientes de autoria, embora seja questão assaz controvertida pela jurisprudência, este órgão fracionário hodiernamente confeccionou o entendimento de que o instituto da tentativa é incompatível com o dolo eventual. E assim, inexistindo qualquer possibilidade de incidência de 'animus necandi' na conduta denunciada, seja eventual ou direto, não é o Tribunal Popular competente para julgar o evento. Recurso provido.

(RSE Nº 70031620529, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 09/09/2009)

Bibliografia:

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito penal, volume 1 : Parte Geral. 11. Ed. Rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 200/202.

CONDE, Francisco Muñoz; BITTENCOURT, Cezar Roberto. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 157.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, p. 253/254.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 154.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9a Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,  2009, p. 178/180.

ZAFFARONI, Raúl Eugênio; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 1 - Parte Geral. 9 ed. Rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 603. 

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