Direitos fundamentais e a eficácia horizontal no ordenamento jurídico brasileiro

16/10/2016 às 19:25
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O presente trabalho ressalta uma análise mais atenta ao direito fundamentais no âmbito privado, ressaltando a trajetória dos direitos conquistados ao longo de nossa história e o respeito nas relações privadas, evitando eventual desequilíbrio e injustiça.

INTRODUÇÃO

É cediço que os direitos fundamentais foram palco de muitas conquistas ao longo de nossa história e, salutar que seja até os dias atuais, isso porque na medida em que a sociedade vai se desenvolvendo, novos direitos precisam ser implementados. Nesse cenário de controvérsias e, visando obstar o retrocesso dos direitos até então alcançados, é que a análise da eficácia horizontal desses direitos é imperiosa.  

Assim, o presente artigo, longe de esgotar o tema, verificará inicialmente os direitos fundamentais conquistados, bem como sua classificação e dimensões, necessários para compreender a posição do Poder Estatal frente aos direitos individuais, bem como aos sociais, os quais são indispensáveis para viver em uma sociedade dignamente e, consequentemente resgatar a paz, harmonia e equilíbrio social.

Desse modo, surgem os direitos de defesa e de prestação por parte do Estado, os quais exigem respectivamente a abstenção por parte do Poder Público para que o mesmo não interfira na esfera de liberdade do indivíduo, instaurando consequentemente uma relação de subordinação e, por outro lado uma atuação positiva, pois necessário implementar políticas públicas, visando efetivar a igualdade das pessoas no meio social e, nessa seara a dignidade da pessoa humana.

No entanto, o Estado não está só, além dessa relação de subordinação (eficácia vertical) existente em relação aos particulares, há ainda a relação entre os próprios particulares, isso porque há forças privadas que muitas vezes são até mais atuantes do que o próprio Estado e que poderia causar sério desequilíbrio nas relações particulares. É em face disso, a relevância do tema, palco de muitas controvérsias na sociedade contemporânea e, o que será analisado no presente trabalho.

 Por outro lado, será demonstrado pelos defensores da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais que tal relação não obsta a autonomia privada, tão almejada e conquistada em nosso ordenamento normativo, pelo contrário, protegerá, assegurando medidas para que não violem o equilíbrio contratual nas relações particulares.

É em vista disso que será analisada cuidadosamente as relações no âmbito privado, no que tange ao aspecto da igualdade e do equilíbrio entre as partes envolvidas para, se for o caso, aplicar a técnica da ponderação e impedir a violação dos direitos fundamentais.

1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 BREVE HISTÓRICO

Inicialmente impende ressaltar que os direitos humanos é a base de um Estado Social de Direito. Em vista disso a necessidade de maior aprimoramento quanto aos direitos já conquistados, os quais deverão adequar-se aos anseios da população em determinado local e época. É nesse sentido que as modificações vão surgindo em relação aos mais variados contextos, como os históricos, os sociais, os culturais e os ideológicos e, sempre cautelosos quanto à vedação ao retrocesso.

Desse modo, na medida em que os direitos humanos foram paulatinamente sendo implementados aos nossos sistemas normativos, tendo em vista as incessantes lutas e atrocidades praticadas pelo Estado, percebia-se que a dignidade da pessoa humana era o vetor e o direito humano maior, no caso o centro de todos os demais direitos, quais sejam: a liberdade, igualdade e solidariedade. (Trindade, 1997, p. 17).

 Foi na Inglaterra, uma das primeiras conquistas no que tange aos direitos da pessoa, no caso a Magna Chart em 1215 expedida pelo Rei João Sem Terra, consubstanciada pelos direitos civis e políticos, os quais preocupavam com as condições de vida das pessoas naquela época. (Lenza, 2011, p. 55).

 No entanto, foi no século XVII e XVIII que os direitos até então conquistados foram sendo materializados por meios de instrumentos normativos, assegurando com maior eficácia sua consagração. Insta consignar que nesse período, bem como no início do século XIX foram marcados pela resposta do Estado Liberal frente ao Absolutismo, fruto, assim, das revoluções liberais e norte-americanas. Nesse período passa a ser instaurada a separação do Estado e sociedade, sendo primordial a abstenção por parte do Poder Público em respeito à liberdade das pessoas.

Nesse contexto histórico, as teorias iluministas de Rosseau, Locke, Montesquieu, dentre outros, apresentaram relevante contribuição para a implementação dos direitos humanos, isso porque cravejava pela imposição de deveres por parte do Estado em relação às pessoas. Pautavam, assim, pela limitação de seus poderes, a fim de assegurar a liberdade de cada membro da sociedade, ressaltando a supremacia do individuo frente ao Estado.

 Tais ideias foram imprescindíveis para a realização de diversas conquistas na época, como a independência das colônias norte-americanas, principalmente para a Declaração dos Direitos da Virgínia (Bill of Rights, 1776), bem como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), fruto da revolução Francesa. Assim, as declarações foram formalmente documentadas e, serviram como ponto de partida para o desenvolvimento e afirmação dos direitos fundamentais.  No entanto, representavam mais afirmações políticas e filosóficas do que normas jurídicas. (Mendes, Coelho, 2007, p. 232).

Importante ressaltar que as distinções existentes entre a Declaração Francesa de 1789 e a Declaração Americana de 1776, respectivamente residia-se na igualdade entre os cidadãos e na liberdade das pessoas na sociedade, apesar de ambas proclamarem pelo dever de abstenção por parte do Poder Público, no que tange à liberdade dos indivíduos. (Dimitri, Martins, 2007).

Entretanto ao lado do dever de abstenção do Estado em relação ao respeito da liberdade dos indivíduos, surgem no século XIX e, posteriormente no século XX, as liberdades positivas, reais ou concretas. Nesse diapasão, ao Estado cabia o dever de atuação, articulando meios, instrumentos para assegurar a igualdade material. Tal desiderato teve como marco a Revolução Francesa, com a luta do proletariado na defesa dos direitos sociais, quais sejam: saúde, alimentação, educação, moradia.  Nesse cenário surgia imposição de prestações, tarefas e deveres, tendo como destinatário o Poder Público. Impende destacar que a Constituição do México (1917) e a de Weimar (1919) foram as precursoras no que tange à fixação dos direitos sociais. (Lenza, 2011, p. 56).

Outra grande contribuidora na formação dos direitos humanos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, isso porque celebrou não só os direitos e garantias individuais, como também os direitos sociais, passando tais direitos do status de princípios para valores universais. Ademais, foram vários os países signatários, atribuindo, assim, um caráter universal, sendo palco da própria estrutura e organização de muitos Estados.

 Por outra vertente, no ordenamento jurídico brasileiro, desde a Constituição do Império de 1824, já manifestavam a preocupação quanto aos os direitos fundamentais, tanto é que uma parcela expressiva de tais direitos foi formalizada nessa época.  No entanto, foi com o advento da Constituição de 1891 que foi assegurado o instituto do habeas corpus.

Nesse sentido, Pedro Lenza,( 2011, p. 56):

Podemos destacar então, nesse primeiro momento, na concepção do constitucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes valores: individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo. Essa perspectiva, para se ter um exemplo, influenciou profundamente as constituições brasileiras de 1824 e 1891.

Posteriormente com a Constituição de 1934 foram consagrados os institutos da Ação Popular e do Mandado de Segurança, além do implemento de alguns direitos sociais, como o direito à subsistência e dever de assistência aos desamparados, tendo como referência a constituição do México de 1917 e a de Weimar de 1919. (Lenza, 2011, p. 56).

Com o advento da Constituição de 1988, os direitos e garantias fundamentais adquirem o status necessário para uma adequada e justa convivência social e humanitária. Desse modo, foi a primeira constituição que consagra em seu texto os direitos fundamentais já no título II, dividindo em capítulos, os quais foram discriminados da seguinte forma: Capítulo I (Individuais), Capítulo I e II (Coletivos), Capítulo II  (Sociais), Capítulo III (Nacionalidade) e Capítulo IV (Políticos). Diferente das constituições anteriores, as quais se preocupavam primeiramente com a estrutura e organização do Estado.

Nesse sentido, Sarlet (2001): “A Constituição Federal de 1988 é a primeira a dispensar aos direitos fundamentais o tratamento que lhe é adequado em virtude de sua inegável relevância e indiscutível indispensabilidade”.

Ademais, em seu contexto conseguiu reunir os direitos de primeira, segunda e terceira dimensão, bem com o rol de direitos considerados como cláusulas pétreas, obstando eventual retrocesso quanto aos direitos até então encartados em nossa constituinte. Insta consignar, outrossim, o caráter globalizado, o totalitarismo constitucional e o dirigismo comunitário de nossa Constituição atual, adequando, assim, aos anseios da sociedade moderna. (Lenza, 2011, p. 59). 

                                  

1.2 DEFINIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Inicialmente, impende ressaltar a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais. Os primeiros correspondem aos direitos que foram reconhecidos no âmbito internacional, tendo como alicerce a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Em outra vertente, direitos fundamentais seriam os direitos já consagrados e incorporados por meio de um sistema normativo referente a cada Estado, atento a uma determinada época e peculiaridades.

Nessa senda, muitos doutrinadores, dentre eles Gilmar Ferreira Mendes define os direitos fundamentais como sendo a base de um Estado Democrático de Direito. Assim, tais direitos quando incorporados ao nosso ordenamento jurídico, nos permite concretizar pelo menos duas situações, ou seja, a possibilidade de pleitearmos por nossos direitos quando ameaçados ou violados pelo Estado, bem como nos permite a formação do elemento fundamental da ordem constitucional objetiva. (Mendes, 2004).

Nesse sentido, o posicionamento de Alexandre de Moraes:

Ressalte-se que o estabelecimento de constituições escritas está diretamente ligado à edição de declaração de direitos do homem. Com a finalidade de estabelecimento de limites ao poder político, ocorrendo a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário. (Moraes, 2011, p.33).

Em vista disso, conclui-se de forma singela que os direitos fundamentais correspondem às normas encartadas em nosso ordenamento jurídico e que nos permitem assegurar a dignidade da pessoa humana, base de todo o sistema normativo, por meio do qual se irradia todos demais direitos. Por outro lado, a consagração de tais direitos imporá limites aos poder estatal em prol da liberdade dos indivíduos, bem como fixará deveres ao Estado nos casos em que a desigualdade material impera, isso porque viver dignamente não é só proporcionar a liberdade da pessoa, é mais, é também garantir um mínimo de aparato indispensável para que a pessoa possa viver, conviver ou mesmo sobreviver de forma humana. 

      

1.3 DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS

É comum verificarmos em diversas obras o termo “gerações” e “dimensões”, o que não estariam incorretas ambas as expressões. No entanto, em uma visão mais crítica percebemos que o termo “dimensões” é mais apropriado e cumpri sua missão com mais propriedade, isso porque como veremos a seguir os direitos humanos foram sendo conquistado paulatinamente ao longo da história, o que veda a exclusão de um direito consagrado em detrimento de outro, pelo contrário, os direitos vão se somando, garantindo, assim, maior concretude e proteção de direitos primordiais, como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. (Novelino, 2008, p. 227).    

Ademais, a ordem cronológica das dimensões é apenas para fins didáticos, isso porque nem sempre os direitos foram sendo efetivados nessa sequência. Em face disso, o que é relevante de todo o exposto é compreendermos a sucessão de tais direitos e não a substituição. Ademais são direitos tidos como indivisíveis e interdependentes.

Desse modo, passaremos a analisar as três dimensões dos direitos humanos, os quais foram surgindo de acordo com os anseios da sociedade em cada momento. Impende salientar que até a terceira dimensão não há quaisquer divergências doutrinárias sobre o assunto, diferentemente das posteriores, razão pela qual vamos nos atentar as três primeiras.

A 1ª Dimensão refere-se aos direitos civis e políticos, com marco no fim do século XVIII e meados do século XIX. Fruto das revoluções liberais francesas e norte americanas, primou pela liberdade individual, mais especificamente da classe burguesa. Esse período foi marcado pela separação entre Estado e sociedade, atribuindo supremacia ao aspecto privado. Diante disso, é imperioso concluir que ao Poder Público cabia uma atuação passiva, ou mesmo negativa de não intervir na esfera da liberdade do indivíduo, exceto em situações de anormalidade, mas sempre amparado pelos comandos normativos.

Por sua vez, a 2ª Dimensão refere-se aos direitos econômicos, sociais e culturais, diferentemente da primeira dimensão, porém não a excluindo. Teve como marco o fim do século XIX e início do século XX, pautado pela luta do proletariado em vista da revolução industrial, em que o trabalho passava a ser desumano, em vista das condições em que os trabalhadores estavam sujeitos. Diante disso, buscava-se nessa época melhores condições de trabalho, saúde, educação, alimentação, moradia, ou seja, prestação positiva por parte do Poder Estatal, visando melhores condições de vida para a população, almejando por justiça e maior equilíbrio social.  (Mendes, Coelho, Branco, 2007, p. 233).

Já os direitos de 3ª dimensão concernentes à solidariedade, em especial o direito de desenvolvimento à paz e ao meio ambiente, consagrou-se no fim do século XX. Nesse período, o direito não tinha como o indivíduo, o grupo ou mesmo o Estado em evidência e, sim, o gênero humano, no caso as gerações presentes e futuras. Desse modo, surgem os direitos ou interesse difusos, coletivos e individuais homogêneos, os quais tiveram origem na revolução técnico-científica, relacionada com a revolução dos meios de comunicação e transportes. Ademais, tal período foi pautado pelo direito ao desenvolvimento e progresso ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, à comunicação e à paz.

Ademais, é de se ressaltar que a solidariedade imbuída na terceira dimensão não é simplesmente solidariedade humana e, sim social, ou seja, há maior preocupação quanto à cidadania inclusiva. É nesse cenário que se faz necessária a distinção entre solidariedade cristã e jurídica, sendo a primeira referente ao ato espontâneo de ajudar o próximo, temos como exemplos as doações à Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, a segunda refere-se à contribuição que somos obrigados a fornecer. Assim, não somos obrigados a sentir solidários, porém é salutar exigir que as pessoas ajam solidariamente de acordo com o direito posto e, um dos vários exemplos encontrados nesse tipo de solidariedade, é o sistema da seguridade social.

Ante tudo que foi exposto, percebemos que os direitos fundamentais conquistados em várias etapas de nossa história foram se consagrando pouco a pouco, mas foi com a Constituição de 1988 que teve o seu ápice assegurando direitos até então não implementados. Por outro lado, ponderamos que os direitos fundamentais são sujeitos às alterações, isso porque a sociedade vai se desenvolvendo e outros interesses vão surgindo para melhor ser adequados aos anseios da coletividade.                     

2 DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 EFICÁCIA VERTICAL E EFICÁCIA HORIZONTAL

De início, é importante ressaltar que ao Estado foram incumbidas duas funções primordiais no que tange à efetivação dos direitos fundamentais até então conquistados, os quais se não realizadas com empenho e competência desencadeará na injustiça e desequilíbrio social.

Desse modo, antes de adentrar ao termo “eficácia” é relevante analisar as atribuições destinadas aos Poder Público para o desempenho de tal mister. A primeira, como já mencionados em outras ocasiões consiste na “abstenção” por parte do Poder Público em intervir ou mesmo impedir o exercício do direito de liberdade do indivíduo, direitos fundamentais de primeira dimensão, ou seja, são os direitos tidos como subjetivos, os quais confere ao indivíduo a garantia de defesa contra o Estado, pois estabelece limites ao Poder Público. (Canotilho, 2000, p. 1216).

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Entretanto, não é só, outra atribuição tão importante quanto para a garantia da pacificação social, é a análise objetiva dos direitos fundamentais. Nesse aspecto estaria, agora, tratando não apenas do caráter individualista no que tange ao exercício dos direitos fundamentais, mas também em uma concepção comunitária, o qual poderia resultar em consequências para todo o ordenamento jurídico.

Em face do exposto, leciona Daniel Sarmento:

 A teoria contemporânea dos direitos fundamentais afirma que o Estado deve não apenas abster-se de violar tais direitos, tendo também de protege seus titulares diante de lesões e ameaças provindas de terceiros. Este dever de proteção envolve a atividade legislativa, administrativa e jurisdicional do Estado, que deve guiar-se para a promoção dos direitos da pessoa humana.  Tal aspecto constitui um dos mais importantes desdobramentos da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e, está associado à ótica emergente do Welfare State, que enxerga no Estado não apenas um “inimigo” dos direitos do homem, que por isso deve ter suas atividades limitadas ao mínimo possível (Estado mínimo), mas uma instituição necessária para a própria garantia destes direitos na sociedade civil. (Sarmento, 2004, p. 160 – 161).

Desse modo, a garantia dos direitos fundamentais está não só nos contextos públicos, como também no âmbito privado. Em vista disso, o Poder Público tem que estar preparado para atuar também nessa seara sem atingir a autonomia privada nas relações particulares, isso porque a violação e ameaça dos direitos também estão nesse contexto. Outrossim, não se pretende excluir a dimensão subjetiva, pelo contrário uma complementa a outra e fornece subsídios para assegurar de modo ainda mais eficaz os direitos fundamentais.

Nesse sentido, ainda o ilustre doutrinador:

Hoje garantir os direitos do homem significa protegê-los nos mais diferentes contextos, públicos ou privados. O Estado, que apesar das múltiplas crises que enfrenta ainda é o principal garantidor dos direitos fundamentais, tem de criar novas instituições e remodelar as já existentes, sem o que não estará a alturas desta que constitui a sua mais importante missão. Se os direitos fundamentais se irradiam para as relações privadas, e se cabe ao Estado protegê-los quando forem violados por terceiros, este Estado tem que estar devidamente aparelhado para desincumbir-se desta sua função. Tem de formular e implementar as políticas públicas necessárias, pois mesmo a garantia dos direitos individuais de matriz liberal não tem hoje como prescindir de comportamentos ativos do Estado para a sua salvaguarda. (Sarmento, 2004, p.161).

Em vista do exposto,  passaremos a verificar os termos “eficácia vertical” e eficácia horizontal” objeto de nosso artigo e tão discutido na sociedade contemporânea.

Ao falarmos de eficácia vertical, logo pensamos na relação jurídica “hierarquizada” e de “subordinação”, em que se refere aos limites impostos ao Estado visando assegurar a liberdade do indivíduo. Nesse contexto não há divergências, pois fruto dos direitos conquistados de primeira geração.

No entanto, a discussão é em torno da eficácia horizontal, tanto é que existem várias teorias acerca do tema. Nesse diapasão, com o avanço do Estado e da sociedade ao longo da história, foi percebendo que as ameaças não eram advindas apenas do Poder Estatal, mas também no âmbito privado em inúmeros setores, como: mercado, empresa, sociedade civil, família. Em vista disso, a necessidade da proteção cada vez maior dos direitos fundamentais também nessa seara, tendo em vista a desigualdade jurídica e material que assolam a sociedade nos dias de hoje, acarretando a injustiça e desarmonia social.

É em face disso o entendimento de Gilmar Ferreira Mendes, ao afirmar que os direitos fundamentais possuem um aspecto objetivo, isso porque ao Poder Público cabe não só proteger e assegurar tais direitos, como também efetivá-los, ou seja, atuar de modo coercitivo a fim de que sejam respeitados no âmbito privado. Ademais realça o nobre jurista que é por meio da análise do aspecto objetivo que se extrai os valores básicos da ordem jurídica e social, os quais deverão ser verificados em todos os setores da vida civil. (Mendes, 2007, p. 174).

Ressalta ainda Mendes que no âmbito privado há uma relação de isonomia entre as partes, respaldada pela autonomia privada, o que diante da violação de direitos fundamentais, imprescindível a utilização da técnica da ponderação entre os valores envolvidos, visando a harmonização e o equilíbrio entre eles. Nesse aspecto, a compatibilidade entre o direito fundamental e a autonomia privada é salutar.

Apesar da necessidade de verificar com mais cautela a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, isso porque as relações privadas também são fontes de violação de tais direitos, o tema é controvertido, ensejando, inclusive, várias posições a respeito, é o que veremos ao longo de nosso estudo.

2.2 ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais teve em meados do século XX seu marco histórico, sendo a Alemanha, o país precursor da inserção dessa teoria em seu ordenamento jurídico diante da análise de um caso em concreto que chegou ao Tribunal Constitucional Federal. 

 Insta consignar, desse modo, o caso-líder dessa teoria, ou seja, o “Caso Luth”, ocorrido na Alemanha em 1950, em que Erich Luth, o então presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, crítico do cinema, passou a boicotar o filme Unsterbliche Geliebte, tendo como diretor Veit Harlan. O filme foi difundido na época do nazismo. Assim, visando a cessação do boicote, Harlan ingressou com uma ação no Tribunal Estadual Hamburgo, respaldado pelo Código Civil vigente na época, logrando êxito em conseguir que o boicote parasse.

No entanto, inconformado com tal decisão, Luth interpôs recurso constitucional perante a Corte Constitucional Alemã, razão em que a Corte acabou dando provimento, justificando a decisão com base na impossibilidade de violação dos direitos fundamentais, mesmo quando o que está em pauta é a relação privada. É em face disso, que os tribunais ordinários também estariam vinculados aos direitos fundamentais diante de leis gerais, como o Código Civil, tal analisado sob a técnica da ponderação, sendo que diante da técnica utilizada o direito de livre manifestação de opinião sobressairia frente a interesses particulares.  (Mendes, 2006, Re n 201.819-8).

É fácil concluir, com base na decisão da Corte Alemã, como bem pondera Daniel Sarmento, que os direitos fundamentais possuem dupla dimensão: subjetiva e objetiva, sendo essa última de grande importância. Ademais, a Corte Alemã com base na decisão proferida reconheceu a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, atribuindo na técnica de ponderação maior valor às normas constitucionais em detrimento das normas jurídicas, o que atingirá, inclusive, as relações privadas, diante do descumprimento de eventual direito fundamental no âmbito dessas relações, o que não é difícil de ocorrer. (Sarmento, 2004, p. 134).

Desse modo, é certo que com a decisão da Corte Constitucional, grande parte das cortes constitucionais europeias passou a admitir a vinculação dos direitos fundamentais também no âmbito privado, mesmo porque ela complementa a dimensão subjetiva, atribuindo maior eficácia à concretização dos direitos fundamentais e, consequentemente a justiça e a boa convivência social.  No entanto, tal discussão está longe de tornar pacífica, é o que veremos a seguir.

2.3 TEORIAS EXPLICATIVAS

2.3.1 TEORIA DA INEFICÁCIA HORIZONTAL

Essa teoria também surgiu na Alemanha, como forma de rechaçar a teoria da eficácia horizontal, face à decisão da Corte Alemã em que reconhecera a vinculação dos direitos fundamentais também nas relações privadas.

Segundo essa teoria, também conhecida como doutrina da “State Action”, os direitos fundamentais seriam os direitos de defesa, considerados de primeira dimensão, em que seriam pleiteados tão somente contra o Estado, mesmo porque, afirmavam aos adeptos dessa teoria que durante a elaboração da lei fundamental alemã não se discutia a vinculação dos atos privados aos direitos fundamentais, já que tudo girava em torno do Estado. Ademais, havia a proximidade da experiência nazista. (Sarmento, 2004, p. 226).

No entanto, o ilustre doutrinador afirma ainda que essa teoria praticamente desapareceu na Alemanha, diante das reiteradas decisões da Corte Constitucional Alemã reconhecendo a vinculação dos direitos fundamentais nas relações particulares.

Insta consignar, porém, que em alguns países como o Direito Constitucional na Suíça e, principalmente o direito norte-americano é que a teoria da ineficácia dos direitos fundamentais ganhou força. Tanto a doutrina, como a jurisprudência é pacífica em atribuir limitações apenas ao Poder Estatal, não vinculando os diretos fundamentais às relações privadas, mesmo porque para esses países se tal ocorresse atingiria a autonomia privada, salutar nessas relações. Por outro lado, é importante destacar que dado o caráter individualista da constituição americana e sua cultura jurídica, é que a doutrina do “State Action” é imperiosa até os dias atuais.

Entretanto, não podemos deixar de salientar que a referida teoria não proporciona um tratamento condizente no que tange aos direitos fundamentais, isso porque as ameaças de tais direitos se originam muitas vezes das relações privadas, no caso de grupos de pessoas ou mesmo de instituições privadas que acaba violando direitos consagrados por nosso texto constitucional, o que resultará em uma série de injustiças e desequilíbrio social e, a história só confirmou com veemência que tal posicionamento, qual seja a doutrina da “State Action”, não foi capaz de construir standards minimamente seguros e fidedignos na jurisdição constitucional americana. (Sarmento, 2004, p. 237). Assim, visando impedir tal desiderato, é que passaremos a expor a seguir as duas teorias referentes à eficácia horizontal.

2.3.2 TEORIA DA EFICÁCIA HORIZONTAL INDIRETA OU MEDIATA

Distintamente da teoria anterior, essa reconhece a vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas, porém, por intermédio de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados resguardados pelo legislador. Desse modo, no caso concreto o órgão jurisdicional decidirá sempre em consonância com valores referentes aos direitos fundamentais, comumente com a dignidade da pessoa humana.

É importante consignar, que mais uma vez a teoria em análise foi também difundida na Alemanha, tendo como a teoria predominante nesse país. Ademais ganhou notoriedade com o jurista alemão Gunter Durig com sua obra publicada em 1956, momento em que conseguiu muitos seguidores. Na sociedade contemporânea é adotada pela maioria dos juristas alemães, bem como pela Corte Constitucional Federal. (Sarmento, 2004, p. 238).

Por sua vez, é imperioso salientar que, segundo os adeptos dessa teoria, a vinculação direta dos direitos fundamentais na relação privada afetaria sobremaneira a autonomia privada, isso porque as relações seriam robotizadas pelo Direito Constitucional, impossibilitando a liberdade de contratação, ou mesmo das partes de fixarem as cláusulas almejadas nas tratativas comerciais, contratuais, familiares, dentre outras.

Nesse aspecto, a teoria não nega a relação de tais tratativas com os direitos fundamentais, no entanto tal ocorreria por intermédio do legislador, o qual é quem utilizaria a técnica da ponderação para assim atribuir maior segurança jurídica, sempre se atendo à autonomia privada. Por outro lado, ao Poder Judiciário caberia o dever de suprir os conceitos jurídicos indeterminados impostos pelo legislador, bem como a interpretação e aplicação das cláusulas gerais.

Ademais, seu dever de fiscalizar não seria menosprezado, pelo contrário, diante de eventual inconstitucionalidade das normas privadas com os direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional Federal, por meio do controle concentrado de constitucionalidade iria desempenhar seu mister, como ocorre em outros países, no caso Espanha e Itália. (Sarmento, 2004, p. 241).  

Por fim, é de se ressaltar que os inconvenientes a essa teoria seria as normas de direito privado sempre subordinadas aos direitos fundamentais, o que poderia causar certa insegurança jurídica, tendo em vista que o Princípio da Legalidade poderia não estar sendo observado diante da primazia dos direitos fundamentais. Ademais a doutrina é criticada por não atender de forma integral a implementação dos direitos fundamentais no âmbito privado, o que ficaria a mercê dos humores do legislador ordinário. A seguir, passaremos a analisar a última teoria sobre o tema.

2.3.3 TEORIA DA EFICÁCIA HORIZONTAL DIRETA OU IMEDIATA

Inicialmente cumpre ressaltar que apesar dessa teoria ter surgido na Alemanha, não teve grande acolhimento nesse país. Os maiores seguidores são países como Portugal, Espanha, Argentina e, Brasil.

Aos adeptos dessa teoria, diferentemente das anteriores, entendem que os direitos fundamentais por possuírem eficácia “erga omnes”, ou seja, “contra todos”, não há qualquer impedimento para que também deva ser cumprido diretamente no âmbito privado, isso porque os direitos fundamentais por possuírem status constitucional tem primazia em relação a qualquer outro direito, repita, inclusive nas relações particulares.

É em face disso que, qualquer pessoa, independentemente de intermédio do legislador poderia pleitear a proteção devida diante da ameaça ou mesmo em face da violação dos direitos fundamentais. É claro, sempre utilizando do juízo de ponderação por parte dos juízes diante de cada caso concreto para que preserve a autonomia privada, ou seja, a pedra de toque nas relações privadas.

Nesse sentido, o posicionamento de Virgílio Afonso da Silva, o qual preconiza que as relações privadas são imbuídas de peculiaridades que estão longe de serem encontradas no âmbito público, daí a necessidade de tratamentos distintos, mesmo porque o que impera naquelas relações é a autonomia privada, que dentro dos parâmetros legais e constitucionais devem ser observadas. É em vista disso que a aplicação dos direitos fundamentais entre Poder Público e indivíduo deve ser distinta, pois ao Estado cabe o papel de gerir o bem comum, sendo os particulares os destinatários. (Silva, 2005, p. 87).

Por outra vertente, Daniel Sarmento pondera que quanto maior for a desigualdade material entre as partes envolvidas em uma relação privada, mais forte será a proteção dos direitos fundamentais no caso e, mais ínfima a proteção da autonomia privada. Diferente, se a relação privada for respaldada pela igualdade formal e material entre os particulares, a proteção da autonomia privada prevalecerá, mesmo porque os direitos fundamentais não estariam sendo violados.  Diante do exposto, se faz indispensável a análise do grau de equilíbrio entre as partes na relação privada para a aplicar com maior ou menor intensidade os direitos fundamentais. (Sarmento, 2004, p. 248).

Aos críticos dessa teoria afirmam pelo menos três inconvenientes. Primeiramente uma restrição aos conceitos de Direito Privado já sedimentados nos ordenamento jurídico. Em um segundo aspecto, implicaria em uma ameaça à autonomia privada. E, por último que tal teoria seria inconciliável com o princípio da segurança jurídica e separação dos poderes.

No entanto, não é o que vem ocorrendo, a teoria em comento parece ser a mais adequada e condizente com os anseios da sociedade contemporânea, isso porque não será aplicada desenfreadamente a ponto de violar princípios, como a separação dos poderes e segurança jurídica, ao contrário, indispensável inicialmente atribuir tratamentos distintos entre a relação com o Estado (posição vertical) e a relação entre particulares (posição horizontal). 

Em seguida verificar-se-á o grau de equivalência das partes na relação privada, para com base nesse critério aplicar a técnica da ponderação pelos juízes, utilizando, assim, do Princípio da Proporcionalidade para fornecer a segurança jurídica e a justiça social tão almejado por todos em uma sociedade, não implicando, assim, em ameaça à autonomia privada, tampouco o conceito de Direito Privado.

Por outro lado, os direitos fundamentais conquistados ao longo de nossa história não poderiam ser deixados de lado, quando em uma relação seja pública ou mesmo privada forem ameaçados ou mesmo violados. É de se notar que em outras oportunidades concluímos que não só o Estado violam tais direitos, inúmeras vezes os particulares também o fazem e, não seria crível vendarmos os olhos só porque estaríamos lhe dando com a autonomia privada. Ora tal princípio, como é cediço, é a essência do direito privado, entretanto não pode sobressair aos direitos fundamentais conquistados com tanto sacrifício em nossa história e, atualmente consagrados em nosso texto constitucional, pois imprescindível para vivermos com harmonia e equilíbrio social em um Estado Democrático de Direito.

2.3.4 POSICIONAMENTOS ADOTADOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Antes de adentrarmos à teoria adotada pela doutrina e jurisprudência brasileira é interessante ressaltar o entendimento do ilustre alemão Robert Alexy, o qual enfatiza a necessidade de se encontrar uma teoria que harmonize os direitos fundamentais nas relações privadas. Para tanto, o nobre doutrinador propõe uma junção das três teorias já analisadas anteriormente.

Nesse sentido, Robert Alexy:

Até agora a polêmica sobre os efeitos perante terceiros foi em geral travada como se uma das três construções tivesse que ser a correta. Essa hipótese é falsa. É possível afirmar que cada uma das três construções destaca alguns aspectos das complexas relações jurídicas que são características dos casos de efeitos perante terceiros, e que se torne inadequada apenas quando se pretende que o aspecto destacado seja tomado como a solução completa. Somente um modelo que abarque todos os aspectos pode oferecer uma solução completa e, nesse sentido, adequada. (Alexy, 2014, p. 533).

    

Desse modo, segundo a teoria proposta por Alexy seria um prolongamento da teoria da eficácia direta e imediata com algumas peculiaridades, ponderando em três níveis, senão vejamos: No primeiro nível estaria a teoria do efeito mediato, em que o Estado representado pelos juízes teria a incumbência de coadunar os direitos fundamentais, considerados como valores objetivos de interpretação e aplicação com normas de Direito Privado. (Alexy, 2014, p. 533).

No segundo nível, os juízes deveriam ficar atentos aos deveres de proteção. Nesse diapasão, caso os magistrados quando fossem dirimir litígios nas relações privadas não aplicassem os direitos fundamentais, a parte prejudicada com tal decisão poderia pleitear seus direitos perante o Estado, isso porque um direito fundamental do cidadão fora violado.  (Alexy, 2014, p. 534).

No terceiro nível, incidiria a teoria da eficácia direta, ou seja, segundo Alexy a Constituição e os direitos fundamentais irradiam efeitos diretos no âmbito das relações privadas. Por conta disso, não violariam a autonomia privada, princípio fundamental no Direito Privado, isso porque o juiz no caso concreto utilizaria da técnica da ponderação. Nossa Carta Constitucional propõe várias soluções e, caberia em tese ao legislador optar por uma delas, sendo tal opção vinculativa ao juiz, pois caso não o fizesse ensejaria insegurança jurídica, inadmissível em nosso ordenamento jurídico.

No entanto, é de se ponderar que se o juiz no caso concreto perceber que a opção alvitrada pelo legislador viole direitos fundamentais, ao magistrado seria possível adequar sua decisão nas relações privadas aos anseios da constituição desde que utilizando para tanto do ônus da argumentação.   (Alexy, 2014, p. 538).

Nessa senda, segundo a visão de Daniel Sarmento, apesar de Alexy propor os três níveis para justificar sua teoria, esta resta em consonância com a teoria da eficácia direta. Assim, salienta (Sarmento, 2004, p. 266):

[...]. O fato de ele não excluir a eficácia indireta dos direitos fundamentais na esfera privada, nem tampouco a existência de deveres de proteção do Estado, em relação às ameaças a tais direitos provenientes de terceiros, não nos parece, nesse sentido, de maior relevância. Com efeito, a teoria da eficácia direta e imediata, como já se destacou acima, não é incompatível com os efeitos decorrentes das outras duas teorias, mas apenas agrega àqueles efeitos um outro, de indiscutível relevo prático: permite-se – seja-nos consentido repetir – a aplicação direta das normas constitucionais consagradora de direitos fundamentais sobre as relações privadas, independentemente  da mediação do legislador, ou da atividade de qualquer outro poder estatal.

Após essa breve análise sobre a proposta de Robert Alexy, passaremos a dispor sobre a posição jurisprudencial no sistema brasileiro.

Inicialmente é de se ressaltar que a Constituição de 1988, como sendo o alicerce de todo o nosso ordenamento jurídico, é a lei fundamental, não só do Estado, mas de toda a coletividade. É em vista disso que, diferente das constituições anteriores, já apresenta em seu bojo, mais precisamente no título II os direitos e garantias individuais, demonstrando a importância do tema ora analisado, o que denota a necessidade do respeito aos direitos conquistados ao longo de nossa história e, indispensáveis para vivermos dignamente.

Ademais, como bem enfatiza Virgílio Afonso da Silva, nossa carta maior determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Desse modo, visando garantir os direitos encartados em nossa constituição, impera o princípio da máxima efetividade, ou seja, na interpretação dos direitos fundamentais é salutar a maior efetividade possível no cumprimento de sua função social, corroborando também para a aplicação de tais direitos ao âmbito privado. (Silva, 2005, p. 57).

Por outro lado, é de se ponderar que em um país, como o Brasil em que as desigualdades assolam o cotidiano das pessoas, os direitos fundamentais não podem deixar de serem observados, tanto no que tange ao Estado, como nas relações privadas. É óbvio que nessas últimas com mais cautela, utilizando das técnicas de ponderação, como já ressaltado anteriormente, para compatibilizar as normas fundamentais com as de direito privado para assim conseguirmos alcançar a tão almejada justiça e equilíbrio social.

É em vista disso, que são inúmeros os entendimentos de nossos tribunais, os quais não são em alguns casos tão recentes quanto à aplicação da teoria da eficácia imediata ou direta, senão vejamos:

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DA EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F.,1967, ART. 153, parág. 1º, C.F.,  1988, ART.5º, caput. I. Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o estatuto do pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados,cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153 parág. 1º ; C.F., 1988, art. 5 º, caput). II. A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg) – Pr, Célio Borja, RTJ 119/465. III. Fatores que autorizam a desigualdade  não ocorrentes no caso. IV.  R.E. conhecido e provido. (STF, RE-161243-6/DF, 2ª turma, Rel. Ministro Carlos Veloso, DJ 19.12.1997).

Nesse sentido:

RECURSO DE REVISTA. REINTEGRAÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV. A dispensa arbitrária e discriminatória do empregado portador do vírus HIV gera direito à reinteração, em face dos princípios constitucionais que asseguram o princípio da dignidade da pessoa humana e vedam as práticas discriminatórias Recurso de revista a que se nega provimento. (RR – 396800-41.2001.5.12.0028, Relator Ministro Gelson de Azevedo, data de Julgamento: 18/05/2005, 5ª Turma, Data de Publicação: 03/06/2006.

               E, ainda:

COLISÃO DE DIREITOS E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE INICIATIVA E DIREITO À PRIVACIDADE. EXCESSOS DE PODER DO EMPREGADOR. EMPREGADOS SUBMETIDOS À SITUAÇÃO VEXATÓRIA E HUMILHANTE EM VISTORIA DENTRO DA EMPRESA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, VIABILIDADE. Indiscutível a garantia legal de o empregador fiscalizar seus empregados (CF/88, art. 170, caput, incisos II e IV), na hora de saída do trabalho, de forma rigorosa, em se tratando de atividade industrial ou comercial de medicamentos visados pelo comércio ilegal de drogas. A fiscalização deve dar-se, porém, mediante métodos razoáveis, de modo a não expor a pessoa a uma situação vexatória e humilhante, não submetendo o trabalhador à violação de sua intimidade (CF/88, art. 5º, X). Exigir que o trabalhador adentre a uma cabine, dentro da qual deva ficar completamente nu para ser vistoriado por vigilantes da empresa, caracteriza violência á sua intimidade. A colisão de princípios constitucionais em que de um lado encontra-se a livre iniciativa (CF/88, art. 170) e de outro a tutela aos direitos fundamentais do cidadão (CF/88, art. 5º, X) obriga o juiz do trabalho a sopesar os valores e interesses em jogo para fazer prevalecer o respeito à dignidade da pessoa humana. Recurso de revista não conhecido. (RR – 578399-36.1999.5.03.5555, Relator juiz Convocado: José Antônio Pancotti, Data de Julgamento : 10/03/2004, 4 ª Turma, Data de Publicação: 02/04/2004).

Por fim, mas não pretendendo esgotar o assunto:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO ORDINÁRIA. DECLARAÇÃO DE NULIDADE E INEXIGIBILIDADE DE MULTAS CONDOMINIAIS. CONTRARRAZÕES. INTEMPESTIVIDADE. NÃO CONHECIMENTO. AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO. VIOLAÇÃO DE NORMAS INTERNAS DO CONDOMÍNIO. IMPOSIÇÃO DE SANÇÃO PECUNIÁRIA EM DESFAVOR DO CONDOMÍNIO INFRATOR. AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE. TEORIA DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS TAMBÉM NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS. 1. Não devem ser conhecidas as contrarrazões de apelação apresentadas fora do prazo de 15 dias previstos pela lei processual civil, porquanto intempestivas. 2. Não merece conhecimento, por inobservância do disposto no párag. 1º do art. 523 do Código de Processo Civil, o agravo retido interposto pela parte autora. 3. Embora as entidades condominiais possuam autonomia para gerir seus interesses e sua organização (inclusive impondo sanções administrativas e pecuniárias aos seus condôminos), é certo que esse espectro de autonomia não é absoluto e comporta restrições orientadas, a fim de respeitar e prestigiar os direitos fundamentais encartados na Constituição Federal. 4. Por força da aplicação da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais não representam limitações única e exclusivamente oponíveis ao Estado, passando a alcançar, também, as relações privadas. 5. As relações privadas existentes entre condomínio e condomínios são também alcançadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, de forma que a imposição de penalidades contra condôminos, mesmo encontrando guarida legal, deve imperioso respeitar as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal). Não respeitadas tais garantias, as sanções impostas pelos condomínios padecem de nulidade. Apelação não conhecida e não provida. Agravo retido não conhecido.  (TJ-DF – Apelação Cível APC 20100112192574, Data da publicação 11/11/2015).

Essas, além de tantas outras só confirmam a construção dogmática dos tribunais superiores no que tange à aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito privado, sempre buscando resgatar a justiça, o equilíbrio e a pacificação social. 

   

NOTAS CONCLUSIVAS 

O presente trabalho foi elaborado tendo em vista a necessidade de verificarmos a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, isso porque muitas vezes os direitos fundamentais são ameaçados ou até violados na esfera privada, o que provocaria a injustiça e o desequilíbrio social.

Desse modo, procurou-se no presente trabalho demonstrar primeiramente a conquista dos direitos fundamentais ao longo de nossa história, sendo fruto das atrocidades e das arbitrariedades ocorridas no passado, ressaltando que mesmo na sociedade contemporânea as conquistas ainda persistem, isso porque o mundo está em constante desenvolvimento, o que exige a implementação de novos direitos adequados ao avanço da sociedade.

Como salientado acima, em decorrência dos abusos cometidos pelas autoridades superiores, os direitos fundamentais foram sendo efetivados em nosso ordenamento jurídico paulatinamente, tendo como marco inicial e cerne de todos os direitos, a dignidade da pessoa humana, pois foi por meio dela que se irradiou todos os demais direitos, agora, constitucionalmente reconhecidos, mormente pela Constituição Federal de 1988, a liberdade, igualdade e fraternidade.

Nesse sentido, a liberdade considerada como o direito de 1ª Dimensão surgiu como forma de limitação do poder estatal, ou seja, conhecida como direito de defesa, o Estado deveria repeitar a esfera de liberdade do indivíduo, rechaçando a atuação arbitrária cometida por ele. Nessa senda eventual restrição da liberdade somente dentro dos parâmetros legais.

Por outro lado, pautado ainda pela dignidade da pessoa humana, não bastaria apenas coibir a atuação do Estado frente aos particulares no que tange à sua liberdade, indispensável também proporcionar aos particulares a igualdade entre as partes para assim desfrutar de sua liberdade com garantias asseguradas constitucionalmente. Igualdade, essa, não apenas formal, mas também material. É nesse contexto, o surgimento dos direitos de 2ª Dimensão, no caso, direitos de prestação por parte do Poder Público para a garantia do mínimo existencial aos necessitados.

Já os direitos de 3ª Dimensão foram inseridos em nosso ordenamento constitucional, como forma de assegurar as gerações presentes e futuras. Desse modo, a proteção nesse aspecto é em relação aos direitos coletivos em sentido amplo, o qual engloba os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneros. 

No entanto, pautados ainda no anseio da efetivação dos direitos fundamentais, foram percebendo que a ameaça ou mesmo a violação de tais direitos não se originava apenas do Estado em uma relação verticalizada, mas também dos particulares, isso porque no âmbito das relações privadas, apesar da autonomia privada, que é a essência dessas relações, os direitos fundamentais estavam sendo notoriamente violado, o que fomentou a discussão em torno do tema partindo-se da Alemanha na década de 50.

É em face disso que foram surgindo teorias para justificar a inserção ou não dos direitos fundamentais nas relações privadas. Primeiramente a teoria da ineficácia horizontal, visando realçar a relação apenas de subordinação, qual seja, ao Estado caberia a observância de tais direitos, visto que ele foi quem restringira a liberdade das pessoas em um passado de arbitrariedades e, assim  somente ele teria a possibilidade de continuar restringindo na sociedade contemporânea. Entretanto, essa teoria foi rechaçada por diversos países, sendo que poucos a aderiu, dentre eles a doutrina americana.

A segunda teoria, denominada como eficácia horizontal indireta ou mediata, com um maior número de adeptos em relação a anterior, reconhece que mesmo nas relações privadas, a observância dos direitos fundamentais deve ser atendida, mas respaldados por uma atividade legislativa, vinculando o particular de forma indireta.  Nesse sentido os defensores dessa teoria, não deixando de observar a autonomia privada, afirmam que caberia ao Judiciário preencher as lacunas deixadas pelo legislador, bem como não admiti-las por inconstitucionalidade caso fossem incompatíveis com os direitos fundamentais.

Já a terceira teoria, com grande número de adeptos, dentre eles a doutrina e jurisprudência brasileira, é conhecida como eficácia direta ou imediata, isso porque tem nos direitos fundamentais a base, o alicerce de todos os demais direitos, razão pela qual devem ser respeitados com primazia, vale dizer tão imprescindível a efetivação de tais direitos que não há necessidade da autuação legislativa para sua aplicação.

Desse modo, como foram expostas oportunamente, inúmeras são as decisões de nossos tribunais reconhecendo a aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito privado, pois se tal não ocorresse imperaria a injustiça e o desequilíbrio nessas relações, inadmissíveis em nosso ordenamento jurídico. É claro que a técnica da ponderação e o princípio da proporcionalidade são severamente utilizados, até mesmo para não atingir a autonomia privada tão realçada pelos adeptos da teoria da ineficácia horizontal.

É nessa linha que a teoria da eficácia horizontal direta é aplicada, ou seja, com muita cautela para que incida um equilíbrio nas relações, mormente, naquelas em que há maior desigualdade entre as partes, dentre elas, as relações consumeristas em que, como é cediço, os consumidores estão em situação de desvantagens, até porque a condição de vulnerabilidade já é absolutamente presumida. Ora, como aplicar a autonomia privada nessa seara sem concomitantemente observar os direitos fundamentais?

É em decorrência disso que em determinadas situações, principalmente nas em que a desigualdade é mais acentuada, o Estado deverá atuar no âmbito privado para que os direitos considerados como a base estrutural de um Estado Democrático de Direito não seja violado.

Diante de tudo que foi exposto, essa última teoria parece ser a mais adequada com os anseios da justiça, do equilíbrio e da tranquilidade social, desde que aplicada com seriedade, dentro dos parâmetros legais e acima de tudo utilizando do princípio da proporcionalidade para não descaracterizar a autonomia privada e, consequentemente a insegurança jurídica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

CANOTILHO, J.J, Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000.

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MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2011.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Método, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2.ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2001.

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.

SILVA, Virgílio Afonso Da. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997.

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Sobre a autora
Michele Vilela Bulgareli

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Mestranda em Direitos Fundamentais pelo Centro Universitário Fieo, Osasco. Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera-UNIDERP. Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-UNIDERP. Colaborada no livro Vade Mecum Delegado Polícia Civil, Editora Rideel.

Informações sobre o texto

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