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Farmácias de manipulação: ISS ou ICMS?

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23/11/2016 às 15:00
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5. Considerações Finais:

Antes de se concluir o presente trabalho, deve-se imiscuir em questão de grande relevo para o ensaio.

Pois bem, conhece-se da tese do Supremo Tribunal Federal, qual decide, em síntese, pela taxatividade da Lista anexa à LC 116/2003. É o julgamento:

"EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO QUE CONSIDEROU LEGÍTIMA A EXIGÊNCIA DO TRIBUTO NA OPERAÇÃO DE FORNECIMENTO DE ALIMENTOS E BEBIDAS CONSUMIDAS NO PRÓPRIO ESTABELECIMENTO DO CONTRIBUINTE, DE CONFORMIDADE COM A LEI N° 6.374, de 1. DE MARÇO DE 1989. ALEGADA AFRONTA AOS ARTS. 34, §§ 5 e 8., DO ADCT/88; 146, lll; 150, 1;155,1 B E § 2.,lX e XII; E 156, IV, DO TEXTO PERMANENTE DA CARTA DE 1988. Alegações improcedentes. Os dispositivos do inc. I, b e do par.2., inc.IX, do art. 155 da CF/88 delimitam o campo de incidência do ICMS: operações relativas a circulação de mercadorias, como tais também consideradas aquelas em que mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios (caso em que o tributo incidirá sobre o valor total da operação). Já o art. 156, IV, reservou a competência dos Municípios o Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza (ISS), não compreendidos no art. 155, I, b, definidos em lei complementar. Consequentemente, o ISS incidira tão somente sobre serviços de qualquer natureza que estejam relacionados na lei complementar, ao passo que o ICMS, além dos serviços de transporte, interestadual e intermunicipal, e de comunicações, terá por objeto operações relativas a circulação de mercadorias, ainda que as mercadorias sejam acompanhadas de prestação de serviço, salvo quando o serviço esteja relacionado em lei complementar como sujeito a ISS. Critério de separação de competências que não apresenta inovação, porquanto já se achava consagrado no art. 8., §§ 1 e 2., do Decreto-lei n. 406/68. Precedente da 20 Turma, no RE 129.877-4-SP”. (Itálico não consta do original).

O posicionamento, inclusive, é criticado por diversos doutrinadores de escol, dos quais destacamos a Professora Misabel Abreu Machado Derzi (10), e o Professor Aires F. Barreto (11), que respectivamente disseram:

“em resumo, nenhuma lei complementar é exaustiva da competência municipal, pois a constituição não outorgou aos Municípios competência para tributar os serviços previsto em lista, mas, ao contrário, os serviços de qualquer natureza; assim como não outorgou competência à União para tributar, por meio do IPI, as operações industriais, descritas em lei complementar taxativa, nem tampouco outorgou aos Estados Federados, competência para impor o ICMS sobre operações mercantis, taxativamente enumeradas em lei complementar (...) É inegável que a lei complementar não poderá limitar, reduzir e controlar a competência dos Municípios. Por isso mesmo, a ‘taxatividade da lista’ resume-se às hipóteses de conflito de competência, mas a lei complementar não exaure o âmbito da competência municipal, razão pela qual qualquer serviço, estranho à lista, que não configure um aspecto misto de fornecimento de mercadorias mais prestação de serviços, é tributável pelo Município. Nem se suponha que sessa seja uma discussão desnecessária ou inútil. O comércio eletrônico abriga um leque de atividades mal exploradas e mal definidas, que virtualmente podem expandir o alcance das leis tributárias impositivas municipais”.  

“Diante das dificuldades de traçar critérios gerais sobre conflitos, adotou o legislador formulação casuística e arbitrária. Quis simplifica um problema necessariamente complexo e terminou por incidir em inúmeras inconstitucionalidades. Seja na doutrina, seja na jurisprudência, em ambas têm prevalecido intepretação que vê as listas de serviços como taxativas. Tem-se entendido que a lei municipal é vinculada por estas listas. Essa exegese, data vênia, é contrária à Constituição, em suas mais fundamentais exigências. Abreviadamente, cabe assinalar que ela importa: a) supor superioridade formal da União sobre o Município; b) supor hierarquia entre lei complementar e lei ordinária; c) entender que o Município não é autônomo, nem que o art. 30, da Constituição encerra um magno princípio constitucional; d) reputar não escrito o preceito do inciso III, do art. 30 do Texto Constitucional; e) entender que a Constituição tem preceitos que atribuem e outros que depois retiram o que foi atribuído; invalidando outorgas por ela mesma dadas; f) negar coerência e lógica ao sistema constitucional; g) admitir que a Constituição é flexível e pode ser alterada por Lei Complementar; h) entender que as competências tributárias, constitucionalmente estabelecidas, podem ser ampliadas, reduzidas e até mesmo anuladas pela Lei Complementar; i) admitir que o Congresso pode suprimir (por omissão) a competência dos Municípios para criar o ISS”. 

Neste sentido, importa advertir que as atividades das Farmácias de Manipulação não devem apresentar simplória solução, na razão de incluir no item 4.07 da Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/2003, qual seja, serviços farmacêuticos, uma série de situações que, nem de longe, são obrigações de fazer. Deve-se, enfim, fazer valer os ensinamentos do Professor Aires F. Barreto, que sobre o tema dispõe (12):

“A expressão definidos em lei complementar não autoriza conceituar como serviço o que serviço não é. Admitir que o possa equivale a supor que, a qualquer momento a lei complementar possa dizer que é serviço a operação mercantil, a industrialização, a operação financeira, a venda civil, a cessão de direitos. Em outras palavras, que a lei complementar possa, a seu talante, modificar a CF; que a limitação posta pela CF à competência municipal para só tributar atividades configuradoras de serviço, não tem a menor relevância; que pode ser desobedecida pela lei complementar”.

Desta feita, não se pode ignorar que na empresa da Farmácia de Manipulação, coexistam atividades conceituáveis como obrigações de fazer, e obrigações de dar, não sendo correto inseri-las em um só bolo, em nome do princípio da praticidade, alijando tanto o fisco estadual, quanto o fisco municipal, de riquezas tributáveis. Vale lembrar, inclusive, que recentemente o princípio foi afastado, quando da apreciação do tema 201 – Leading Case RE 593849, pelo Supremo Tribunal Federal, qual referia-se a restituição da diferença de ICMS pago a mais no regime de substituição tributária. Afastou-se referido princípio, para possibilitar que o contribuinte do ICMS pago a maior, pudesse restituí-lo, caso o valor pago a título de ICMS não se consolidasse a posteriori, mas não só em virtude da inexistência da venda, como também quando realizada em quantia inferior a declarada para a substituição tributária.

É que a Constituição deve ser considerada, independentemente da prática – ou da facilidade prática – determinada nas relações sociais. Ela não deve, de certo, sob pena de não efetividade, ignorar a realidade social a qual inserida, mas não deve, da mesma forma, somente conformá-la, como se não possuísse qualquer força normativa. Em obra singular, traduzida pelo Professor Gilmar Ferreira Mendes, o Professor Konrad Hesse, entre inúmeros outros acertos, dispõe (13):

“Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwartt). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontadede Constituição (Wille zur Verfassung)”.   

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Sendo assim, se a Constituição Federal, nos termos do artigo 156, III, determina que compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não pode o legislador, tão pouco o poder judiciário, ampliar o escopo da norma para fazer inserir na riqueza tributária municipal, obrigação que não seja de fazer, ou oferecer ao fisco estadual, obrigação que não seja a de dar, em nome de eventual praticidade. Não é o fato da regra mencionada, em sua segunda parte, informar que os serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, seriam definidos em lei complementar, que encontra-se autorizada a realização do materialmente impossível, em verdadeira ficção jurídica, definindo como serviço aquilo que é obrigação de dar, e como produto aquilo que é obrigação de fazer, mirando-se a facilidade da procedimentalização da arrecadação.

É hora de admitir a complexidade das relações humanas, bem como das negociais, evitando soluções de aplicabilidade prática constatada, mas de rigor jurídico questionável. A Constituição possui força normativa!


6. Conclusão:

De tudo exposto, o que se pode notar é que variadas são as atividades exercidas pelas Farmácias de Manipulação, cada qual deflagrando, a título tributário, soluções diversas.

Vimos que, do conceito do artigo 3º da LEI Nº 13.021, DE 8 DE AGOSTO DE 2014, há uma zona não farmacêutica que pode, obviamente respeitando-se conceitos de postura e sanitários relacionados a atividade desenvolvida, ser explorada pelas Farmácias de Manipulação.

Ademais, extremamos as atividades realizadas por este tipo de negócio, para identificá-las em três vertentes. A primeira, com a manipulação resultando em objeto cuja característica é destinada a certo cliente, não podendo ser aproveitada por nenhum outro do que senão aquele. A segunda, quando o objeto é posto em prateleira e, embora manipulado, desconsidere a qualidade especial do adquirente. A terceira, quando posto em prateleira, podendo ser posteriormente manipulado. Vimos ainda que esta última hipótese admite a possibilidade de posterior manipulação, levando-se em conta a característica única do destinatário final, ou ainda, característica padrão de certo nicho de consumidores.

Resumidamente, assim, defendemos que a primeira e a terceira (esta no caso do objeto posteriormente manipulado só servir a determinado destinatário), são hipóteses de cabimento do ISS. E a segunda e a terceira (esta quando o bem é manipulado considerando certa parcela de consumidores, e não um em especial), do ICMS.


Referências:

1 Tema 379 - Imposto a incidir em operações mistas realizadas por farmácias de manipulação. Leading Case: RE 605552.

2 A técnica de estremar atividades, para que não se esconda a influência, e ainda, para que se renda a devida homenagem, foi amplamente utilizada pelo professor Aires F. Barreto em sua obra, ISS na Constituição e na Lei (3ª Edição, Editora Dialética, 2009. São Paulo).  

3 http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/conceito.htm#1.2 acesso em 14 de setembro de 2016.

4 http://www.saude.rs.gov.br/upload/1334257904_DVS%20-%20cosmeticos.pdf acesso em 14 de setembro de 2016.

5 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P - 35

6 Direito tributário brasileiro. Atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P - 734

7 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P – 277.

8 MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.389 - RELATOR MIN. JOAQUIM BARBOSA.

9 MELO, José Eduardo Soares de. ISS – Aspectos teóricos e práticos. 5ª Edição. Editora Dialética, São Paulo, 2008. P – 180 e 181.

10 Baleeiro, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P - 764 e 765.

11 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P -117.

12 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo. P - 110 e 11.  Itálicos no original. 

13 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft Der Verfassung. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Título em português: A força normativa da Constituição. Edição em português por Sergio                          Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991. P - 19. 


BIBLIOGRAFIA:

BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, Editora Dialética, 2009, São Paulo.

 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015

HESSE, Konrad. Die Normative Kraft Der Verfassung. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Título em português: A força normativa da Constituição. Edição em português por                   Sergio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991.

MELO, José Eduardo Soares de. ISS – Aspectos teóricos e práticos. 5ª Edição. Editora Dialética, São Paulo, 2008.

MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.389 - RELATOR MIN. JOAQUIM BARBOSA.

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Sobre o autor
Fernando Barroso de Deus

Advogado. Assistente Jurídico concursado do Município de Macaé. Especialista em Direito Tributário pela PUC-MG. Membro honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEUS, Fernando Barroso. Farmácias de manipulação: ISS ou ICMS?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4893, 23 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53230. Acesso em: 20 abr. 2024.

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