RESUMO: O presente trabalho propõe uma análise dos fundamentos éticos e da base do Processo Civil Cooperativo no Estado Constitucional. Em um primeiro momento, haverá uma breve análise da concepção originária dos direitos fundamentais, especialmente dos principais direitos fundamentais processuais, seguindo-se da evolução histórica dos mesmos, através das chamadas “dimensões de direitos fundamentais”, bem como as implicações decorrentes de sua concepção atual. Haverá também uma análise da relação existente entre processo e constituição. Em um segundo momento, propõe-se uma análise conceitual do Princípio do Contraditório, garantia fundamental insculpida no rol do art. 5º da Constituição da República e seu papel no Processo Civil Cooperativo, no Estado Constitucional, ao lado da boa-fé objetiva e da lealdade processual. Após, haverá uma análise doutrinária e jurisprudencial das funções e dos deveres anexos da boa-fé objetiva. Seguindo-se a isso, propõe-se um estudo acerca da mudança de perspectiva no modelo atual de processo, ocorrido em razão de uma alteração de comportamento dos atores do processo, fato que resultou na construção de um novo modelo, qual seja, o cooperativo. O objetivo do trabalho, portanto, resume-se à demonstração da importância do Princípio do Contraditório e dos deveres éticos de conduta para a moderna concepção do Processo Civil Cooperativo, que encontra espaço no atual Estado Constitucional.
Palavras-chave: Boa-Fé Objetiva. Direitos e Garantias Fundamentais. Estado Constitucional. Princípio do Contraditório. Processo Civil Cooperativo.
ABSTRACT: The present work proposes an analysis of the bases of Civil Procedure in the Constitutional State Cooperative, wich is: guarantee the fundamental right to Contradictory. At first, there Will be a brief analysis of the original conception of fundamental rights, followed by the historical evolution of the same, through the so called “dimensions of fundamental rights”, well as the implications of their current conception. On a second step, we propose a conceptual analysis of the Principle do Contradictory, fundamental guarantee provided in the list of the art.5º of the Constitution of the Republic and its role in the Cooperative Civil Procedure in the Constitutional State. Following on this, we propose a study on the change of perspective in the current concept of process, a fact that resulted in the construction of a new model, wich is: the cooperative model. This study, therefore, summed up to demonstrating the importance of the Principle of Contradictory to the modern conception of Cooperative Civil Procedure, wich finds space in the current Constitutional State.
Key-words: Fundamental rights and Guarantees; Principle of Contradictory; Good-Faith Objectiva; Cooperative Civil Procedure.
INTRODUÇÃO
Para melhor compreensão acerca do tema proposto, é necessário que, primeiramente, sejam identificados os quatro estágios do processo civil, bem como a influência da cultura no Direito e em cada um deles, para que, a partir disso, seja mais simples o entendimento acerca da posição do direito fundamental à tutela jurisdicional no Estado Constitucional.
O Direito é, sobretudo, influenciado pelo momento histórico e pela sociedade em que está inserido, modificando-se constantemente ao longo do tempo. Por isso, afirma-se que “a mais ambiciosa aspiração de um ordenamento jurídico consiste precisamente em ser o eco verdadeiro e autêntico da cultura de uma nação” [2] e que a destinação institucional do direito “é a proteção dos valores éticos e históricos, valores culturais afinal, de uma nação” [3], sendo um processo de “contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos” [4].
ANÁLISE DA BASE ESTATAL E SEUS REFLEXOS FRENTE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Sobre o conceito do Direito, do ponto de vista sociológico, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco[5] afirmam que:
O direito é geralmente apresentado como uma das formas – sem dúvida a mais importante e eficaz dos tempos modernos – do chamado controle social, entendido como o conjunto de instrumentos de que a sociedade dispõe na sua tendência à imposição de modelos culturais, dos ideais coletivos e dos valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios.
Portanto, o direito é um conjunto de normas obrigatórias que regem as relações dos homens em sociedade, impondo-lhes modelos de comportamento e meios para que se solucionem os conflitos gerados quando não há a adaptação da conduta à norma pré-estabelecida.
A afirmação de que o direito é o produto da cultura de cada sociedade na qual está inserido, é ainda mais contundente quando analisado do ponto de vista do direito processual, pois esse é “o ramo do conhecimento jurídico mais próximo do mundo da vida” [6], uma vez que, através da sua atuação mais próxima da sociedade, sofre ainda mais essa influência cultural.
Isso porque quando surge qualquer espécie de conflito e o exercício da função jurisdicional é provocada (e como a jurisdição se dá através do processo), pode-se dizer que o processo é o instrumento por meio do qual os órgãos jurisdicionais atuam para pacificar as pessoas conflitantes, eliminando os conflitos e fazendo cumprir o preceito jurídico pertinente a cada caso que lhes é apresentado em busca de solução. [7]
Tendo o direito processual normas natureza instrumental e o escopo principal de realização da justiça, nada mais natural, portanto, que sofra as influências da experiência e do momento cultural vivido pela sociedade em que resta inserido. Dessa forma, a lei processual irá eleger os procedimentos adequados a cada situação da vida, de acordo com as necessidades e prioridades de cada situação concreta. [8]
Aqui se insere a importância do procedimento adotado, pois é nele que estão retratados no processo todos os elementos que formam a cultura e a civilização de um povo, tais como os costumes religiosos, princípios éticos, hábitos sociais e políticos, e grau de evolução científica[9].
Razão assiste ao Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira quando assevera que:
Não só as formas externas, por meio das quais se desenvolve a administração da justiça, mas também os métodos lógicos empregados para o julgamento exibem valor contingente, a ser estremado consoante as circunstâncias de dado momento histórico, influenciado ainda a conformação do processo.[10]
Portanto, diz-se que o processo é um “instrumento de regulação social” [11], ao mesmo tempo em que a lei processual tem como função determinar “as minúcias por meio das quais se realiza a justiça” [12].
A título de exemplificar a capacidade que a sociedade tem de atingir o direito processual, pode-se citar a influência liberal da Revolução Francesa, sobre o direito francês, que com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade implementou a rígida separação dos poderes do Estado, passou a conceder publicidade à todos os atos processuais e regulamentou mais rigidamente os poderes do juiz.
Além disso, foi nesse momento histórico que se deu a separação das atividades cognitiva e executiva, que mais tarde influenciou o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, além de outras legislações modernas. [13]
Por isso o processualista tem a profícua missão de “[...] individuare le correnti culturali del suo tempo e di trarne le conseguenze per la costruzione di um processo adeguato ad esse”. [14]
Assim, a fim de melhor analisar a evolução histórica das correntes culturais que atingiram diretamente o processo civil ao longo do tempo no que tange à sua metodologia, é possível proceder a classificação de quatro linhas de pensamento, as quais serão analisadas a seguir, quais sejam: o praxismo, o processualismo, o instrumentalismo e por fim, a contemporânea vivência do quarto momento histórico, que está inserido Estado Constitucional: o formalismo-valorativo.
O praxismo, também denominado fase sincretista ou procedimentalista, foi o primeiro dos estágios, o qual pode ser analisado como sendo uma fase pré-processual, a qual corresponderia à pré-história do direito processual civil, tempo em que para se referir ao processo, dizia-se “procedura” e não “diritto processual civile”[15]. Esse momento é caracterizado pela ausência de autonomia do direito processual. Direito e ação confundem-se, não se falando ainda em direito processual civil, apenas em procedimento.[16]
No ensinamento de Mitidiero[17], “[...] a jurisdição era encarada como um sistema posto para a tutela dos direitos subjetivos particulares, sendo essa a sua finalidade precípua [...]”. E nas palavras de Dinamarco[18], "tinha-se, até então a remansosa tranquilidade de uma visão plana do ordenamento jurídico, onde a ação era definida como o direito subjetivo (ou: o resultado da lesão ao direito subjetivo) [...]”.
Prossegue o ilustre jurista, em diferente obra, lecionando que, nesse período:
Os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer consciência de princípios, sem conceitos próprios e sem a definição de um método. O processo mesmo, como realidade da experiência perante os juízes e tribunais, era visto apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentido: confundiam-no com o mero procedimento quando o definiam como sucessão de atos, sem nada se dizerem sobre a relação jurídica que existe entre seus sujeitos (relação jurídica processual), nem sobre a conveniência política de deixar caminho aberto para a participação dos litigantes (contraditório). [19]
Vale destacar que estão localizadas nessa primeira linha de pensamento processual, todas as fases do direito romano, tanto a fase clássica, quanto a fase pós-clássica, além de toda a história jurídica do Brasil enquanto colônia de Portugal, abrangendo o período colonial e monárquico.[20]
Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco preceituam que:
Até meados do século passado, o processo era considerado simples meio de exercício dos direitos (daí, direito adjetivo, expressão incompatível com a hoje reconhecida independência do direito processual). A ação era entendida como sendo o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, adquiria forças para obter em juízo a reparação da lesão sofrida. Não se tinha consciência da autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza substancial e eventualmente ligando os sujeitos do processo. Nem se tinha noção do próprio direito processual como ramo autônomo do direito e, muito menos, elementos para sua autonomia científica. Foi o longo período de sincretismo, que prevaleceu das origens até quando os alemães começaram a especular a natureza jurídica da ação no tempo moderno e acerca da própria natureza jurídica do processo. [21]
Dessa forma, conclui-se que nesse período, o direito processual era um direito adjetivo ao direito material, sendo ignorado o fato de que o processo civil seria uma ciência autônoma, sendo, portanto, processo sinônimo de procedimento.
É no cientificismo, ou processualismo ou, como também, por vezes é lembrada, fase conceitualista ou autonomista do direito processual, que, com a obra de Oskar von Bülow[22], a qual é tida como a “certidão de nascimento do direito processual civil”[23], o direito processual passa a ser conhecido como ramo diverso do direito, deixando de ser mera técnica (procedimento), para ser ciência (ramo autônomo).
Novamente, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco[24] preceituam que:
A segunda fase foi autonomista, ou conceitual, marcada pelas grandes construções científicas do direito processual. Foi durante esse período de praticamente um século que tiveram lugar as grandes teorias processuais, especialmente sobre a natureza jurídica da ação e do processo, as condições daquela e os pressupostos processuais, erigindo-se definitivamente uma ciência processual. A afirmação da autonomia científica do direito processual foi uma grande preocupação desse período, em que as grandes estruturas do sistema foram traçadas e os conceitos largamente discutidos e amadurecidos.
Prosseguem:
Faltou, na segunda fase, uma postura crítica. O sistema processual era estudado mediante uma visão puramente introspectiva, no exame de seus institutos, de suas categorias e conceitos fundamentais; e visto o processo costumeiramente como mero instrumento técnico predisposto à realização da ordem jurídica e material, sem o reconhecimento de suas conotações deontológicas e sem a análise dos seus resultados na vida das pessoas ou preocupações pela justiça que ele foi capaz de fazer.
Dessa forma, a ação passa a ser vista como um direito autônomo, o qual não se confunde com o direito material, sendo, a partir de então, dirigida contra o Estado e as normas processuais passaram a integrar o direito público[25].
Nas palavras de Daniel Mitidiero[26]:
O processualismo, deveras, nasce com o conceito de relação jurídica processual, sendo esse o objeto da ciência processual. A partir daí, a tarefa da doutrina cifra-se à racional construção do arcabouço de conceitos do direito processual civil. Não por acaso, pois, aponta-se como marco inicial do processo civil o direito racional, presidido pelas altas e abstratas ideias inerentes ao clima científico da modernidade, nem pode surpreender que já se tenha identificado na produção intelectual de Chiovenda um mentalismo conceitual exacerbado, já que o “doutrinarismo” dominou mesmo os primeiros tempos da história do direito processual civil (o que se deu, vale frisar, por absoluta necessidade, porque se tratava de fundar uma nova ciência, surgindo então a necessidade de se forjarem todos os instrumentos conceituais necessários a tal intento).
Vale aludir que o entendimento dessa linha de pensamento chegou ao Brasil em 1939 (ano da edição do primeiro Código de Processo Civil Brasileiro), através de grandes e eminentes processualistas, tais como o alemão James Goldschmidt, os italianos Enrico Tullio Liebman e Marcello Finzi e dos espanhóis Rafael de Pina, Santiago Santís Melendo e Niceto Alcalá-Zamora y Castillo, os quais acabaram por se exilar no Brasil por conta da perseguição decorrente dos regimes totalitários que emergiram na Europa após a Guerra Civil Espanhola e que precederam a Segunda Guerra Mundial. Com isso, a tragédia da guerra acabou por contribuir para o desenvolvimento do direito processual na América Latina.[27]
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a segunda metade da década de 40 e a década de 50 são marcadas pelo advento de novas Constituições na Europa, que no escopo de rechaçar os referidos regimes totalitários, nos novos textos constitucionais vieram contidos os princípios fundamentais, os quais são valores e objetivos essenciais perseguidos pelos Estados Democráticos de Direito. Aqui, pode-se ver a emergência das garantias constitucionais do processo, as quais expressam os direitos essenciais à atividade jurisdicional[28], sendo nesta oportunidade a primeira vez em que foi visualizada a relação entre Processo e Constituição (o que será analisado no item 2.3 do presente trabalho). Destaque-se que este é mais um exemplo da cultura sobre o direito e por isso, a importância de se fazer uma análise da perspectiva histórica.
A partir disso, ganha força a ideia de que o direito processual civil, como ramo autônomo, deve ser enfrentado como um instrumento a serviço do direito material, que esteja atento às necessidades sociais e políticas do seu tempo, passando a ter menor relevância as suas questões internas. A partir da evolução dessa linha de pensamento, surgiu uma nova fase do direito processual civil, a fase instrumentalista, que, mais tarde, no Brasil foi fortemente sustentada por Cândido Rangel Dinamarco, o qual superou a perspectiva puramente técnica de se encarar o processo civil.
O instrumentalismo, então, surgiu na Europa, a partir da segunda metade do da década de 70, através do movimento giustizia sociale e di libertà, liderado por Mauro Cappeletti. Nessa nova linha de pensamento do processo civil, passou-se a se preocupar com os resultados proporcionados pelo processo no mundo do que com ele próprio, tecnicamente. Nessa fase, houve uma maior preocupação com os óbices práticos, técnicos e financeiros, que impediam o efetivo acesso da sociedade à justiça.[29] Essa fase, portanto, tem como principal característica a conscientização de que a importância do processo está em seus resultados[30].
Novamente, não se pode deixar de citar os processualistas Antonio Carlos de Araújo Cintra e Ada Pellegrini Grinover, os quais, juntamente com o célebre Cândido Rangel Dinamarco[31], foram os “discípulos de Liebman[32]” e que mantiveram o Processo Civil em evolução no Brasil. Assim, prescrevem que:
A fase instrumentalista, é eminentemente crítica. O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados prático. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema de um ponto-de-vista dos produtores de serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária.
Continuam:
Para o desencadeamento desse novo método, crítico por excelência, foi de muita relevância o florescer do interesse pelo estudo das grandes matizes constitucionais do sistema processual. O direito processual constitucional, como método supralegal no exame dos institutos do processo, abriu caminho, em primeiro lugar, para o alargamento dos conceitos e estruturas e superamento do confinamento de cada um dos ramos do direito processual. Houve clima metodológico, então, para o desenvolvimento de uma teoria geral do processo, favorecendo o progresso científico do processo penal, historicamente muito menos aprimorado que o processo civil. A partir daí bastou um passo para o superamento das colocações puramente jurídicas e passagem à crítica sócio-política do sistema.
Diz-se que no decorrer dessa fase, tiveram três ondas renovatórias, a saber: a) uma consistente nos estudos para a melhoria da assistência judiciária aos necessitados; b)a segunda voltada para a tutela dos interesses supra-individuais, especialmente no tocante aos consumidores e à higidez ambiental (interesses coletivos e interesses difusos); c) a terceira traduzida em múltiplas tentativas com vistas à obtenção de fins diversos, ligados ao modo-de-ser do processo (simplificação e racionalização de procedimentos, conciliação, equidade social distributiva, justiça mais acessível e participativa etc.).
Os autores ainda citam os progressos obtidos por essa linha de pensamento no plano prático, tais como os Juizados Especiais Cíveis, os antigos Juizados de Pequenas Causas, onde há ampla assistência jurídico-judiciária, simplificação das formas e maior acessibilidade popular e a ação civil pública, que tutela os interesses supraindividuais. Além disso, as garantias constitucionais de mandado de segurança coletivo, o qual confere proteção a interesses homogêneos de pessoas integrantes de determinada categoria; da assistência jurídica aos necessitados; da ação direta de inconstitucionalidade legitimada e diversas entidades participativas, da exclusão das provas obtidas por meios ilícitos, etc. E por fim, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990), o qual estabelece tratamento processual especial aos vulneráveis.[33]
Ainda mencionam os juristas, sobre a fase instrumentalista do processo:
Sentem-se progressos também em sede pretoriana, com juízes e tribunais gradativamente conscientizados dos valores humanos contidos nas garantias constitucionais do contraditório e do devido processo legal e necessidade de tratar o processo, sempre, como autêntico, meio de acesso à ordem jurídica justa. Por exemplo, tem sido dado especial relevo à presunção da inocência do acusado, ao direito das partes ao processo e observância do procedimento, direito à prova, etc.[34]
Portanto, a partir disso, as palavras de ordem passaram a ser “efetividade” e “instrumentalidade”, havendo maior aproximação entre o direito processual e o direito material, e principalmente, busca dos valores constitucionais. Assim, “a neutralidade deixa de ser característica do direito processual, e a adequação[35] aos interesses substanciais ganha o espaço que há muito merecia, em razão do estabelecimento da premissa de que ‘[...] a ciência processual deve ser elaborada sempre à luz do direito substancial e em função dele’”[36].
Sobre a corrente instrumentalista do processo civil, leciona Cândido Rangel Dinamarco:
A perspectiva instrumentalista do processo assume o processo civil como um sistema que tem escopos sociais políticos e jurídicos a alcançar, rompendo com a ideia de que o processo deve ser encarado apenas pelo seu ângulo interno. Em termos sociais, o processo serve para a persecução da paz social e para a educação do povo; no campo político, o processo afirma-se como um espaço para a afirmação da autoridade do Estado, da liberdade do cidadãos e para a participação dos autores sociais; no âmbito jurídico, finalmente, ao processo confia-se a missão de concretizar a “vontade concreta do direito”. [37]
Portanto, o processo deixa de ter o seu foco principal na ação, para focar na jurisdição. Desenvolve-se a ideia de que o processo é quem serve à jurisdição, e não o contrário, como se pensava anteriormente. Dessa forma, a preocupação está muito mais ligada aos aspectos externos e com os reais objetivos sociais, políticos e jurídicos, daquele que outrora era visto como mero procedimento.
Após terem sido apontados os três principais estágios de evolução do direito processual até então, para melhor compreender a quarta linha de pensamento, é necessário que haja uma brevíssima análise das modificações das organizações políticas sofridas pelos Estados ao longo dos anos, que nos trouxe ao atual Estado Constitucional.
Na Europa, antes da Segunda Guerra Mundial, na segunda metade do século XVIII, tem início o processo de codificação do direito, o qual continua durante o século XIX. Foi esse período que marcou a passagem do Estado Absoluto, caracterizado pela supremacia da vontade do monarca, para o Estado de Direito, mais tarde chamado Estado Liberal de Direito, onde a lei é fonte quase que exclusiva do direito e às Constituições não é reconhecida força normativa.
Após a Segunda Guerra Mundial, com o fim das ditaduras de direita, tais como ocorreram na Espanha e em Portugal, houve a percepção de que as maiorias podem se aliar às barbáries (tal como havia acontecido na Alemanha). Além disso, deram-se conta que a simples obediência à lei não evita a arbitrariedade, seja ela pública ou privada. A prova disso é que os regimes totalitários, como o de Adolf Hitler, basearam-se na lei para cometer suas atrocidades.
Ou seja, apesar de todas as crueldades, o princípio da legalidade não foi ferido. Por isso, após a Segunda Guerra, as constituições europeias vieram dotadas de mecanismos de defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, inclusive contra o legislador.
Foi assim que o princípio da legalidade abriu espaço para a supremacia da constituição e houve a passagem do Estado Liberal de Direito para o Estado Constitucional, também chamado de Constitucionalismo Pós-Moderno, o que, além de modificar a forma de se pensar o direito como um todo, inevitavelmente veio a atingir também o direito processual.
Deste modo, mais tarde, a evolução da terceira linha de pensamento desembocou nos dias atuais, em meio a este Estado Constitucional, e deu lugar ao quarto estágio do processo, ora em curso, o qual foi brilhantemente denominado pelo Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira como “formalismo-valorativo”.
Cabe ressaltar que importante setor da doutrina, também concordando com a superação do instrumentalismo como fase metodológica do processo civil brasileiro, prefere falar em “neoprocessualismo[38], ao invés de formalismo-valorativo[39] [40] (no item 2.2 será analisado como o neoprocessualismo foi influenciado pelo neoconstitucionalismo). Também já se defendeu uma evolução do instrumentalismo para o “instrumentalismo-processual.” [41] [42]
Fredie Didier Jr. alude às semelhanças e diferenças entre o formalismo-valorativo e o neoprocessualismo:
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), sob a liderança de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, costuma-se denominar esta fase do desenvolvimento do direito processual de “formalismo-valorativo”, exatamente para destacar a importância que se deve dar aos valores constitucionalmente protegidos na pauta dos direitos fundamentais na construção e aplicação do formalismo processual. As premissas deste pensamento são exatamente as mesmas do chamado “neoprocessualismo”. Embora seja correto afirmar que se trate de uma construção teórica que nasce no contexto histórico do “neoconstitucionalismo”, o “formalismo-valorativo” pauta-se, também, no reforço dos aspectos éticos do processo, com especial destaque para a afirmação do princípio da cooperação (examinado mais a frente), decorrência da cláusula geral da boa-fé processual.
O termo “neoprocessualismo” tem uma interessante função didática, pois remete rapidamente ao “neoconstitucionalismo”, trazendo de reboque todas as suas premissas metodológicas, além de toda produção doutrinaria a respeito do tema, já bastante divulgada. Demais disso, o termo “neoprocessualismo” também pode ser útil por bem caracterizar um dos principais aspectos deste estágio metodológico dos estudos sobre o direito processual: a redefinição das categorias processuais (marca do processualismo no final do século XIX e meados do século XX), a partir de novas premissas metodológicas (o que justifica o prefixo neo). [43]
O formalismo-valorativo, portanto, tem íntima conexão com o fenômeno do neoconstitucionalismo (a ser estudado no próximo item), sendo a faceta deste no direito processual, especialmente no que tange aos valores constitucionais processuais que passam, a partir de então, a ganhar força e aplicabilidade imediata.
Sendo o Estado Constitucional uma concepção que vai além do Estado Democrático de Direito, pois é uma evolução deste, o Estado deixa de ser soberano para dar lugar à Constituição, que vem a ser sua matriz, sua regra fundante. A partir de então, o Estado Constitucional, ao não mais permitir normas constitucionais como mero programa, evolui dos princípios constitucionais do processo civil para os direitos fundamentais processuais, que, como direitos subjetivos do processo, passarão a conformar toda a atividade jurisdicional.[44]
Dessa forma, o direito processual civil alcança os dias atuais com uma nova alteração no foco dos seus estudos, direcionando suas atenções agora ao processo, o qual, nos primórdios, havia sido visto como mero procedimento. Agora, na contemporaneidade, esse processo é revitalizado e qualificado pelo contraditório.
Segundo os ensinamentos de Guilherme Botelho:
A elevação dos direitos fundamentais processuais revitaliza a relação jurídica no Estado Constitucional. As partes passam a exercer frente ao Estado uma série de direitos inter-relacionados. Ao Estado não apenas incumbe o exame da afirmação a lesão ou ameaça de direito. Deve também, dar direito à postulação, direito a meios de prova adequados e direito ao cumprimento das decisões jurisdicionais favoráveis de modo mais eficaz e adequado ao direito material em voga. De outra parte, os deveres de lealdade e boa-fé das partes para com juiz também ganham destaque no momento em que a justiça do caso concreto passa a ser o maior dos escopos do processo. Daí porque se afirma que a característica de relação jurídica continua como partícipe do conceito-chave do processo, em que pese seja verdade que se trata de uma relação jurídica continuada que atua mediante atos de sucessão (logo um procedimento) em constante contraditório, como um direito de influenciar e atuar com eficiência no convencimento do juiz. [45]
Assim, conforme já foi referido, dessa nova ordem adveio a reaproximação do direito processual civil brasileiro aos valores fundamentais expressos na Constituição, tais como ética, moral e justiça, os quais são essenciais à sociedade e à busca pela justiça no caso concreto. Portanto, o Estado Constitucional é, acima de tudo, um Estado Ético.
Ainda sobre as particularidades da nova ordem vigente, prossegue o jovem jurista gaúcho:
Note-se, trata-se das mesmas características que serviam de alicerce à autonomia do direito processual. Nenhuma novidade de essência, portanto. Do instrumentalismo, o grande ganho é a reaproximação com o direito material e a adequação das normas processuais ao direito substancial afirmado. Pela consciência de que o direito processual não pode, nem deve ser neutro surge a necessidade de que as técnicas processuais se adaptem ao direito material a ponto de tornar efetiva a proteção jurisdicional. Da nova ordem constitucional, adveio a reaproximação do direito processual civil brasileiro aos valores fundamentais. Valores estes essenciais à sociedade, tais como ética, moral e justiça, que passam a integrar o interesse da doutrina processualística com maior frequência. [46]
Dessa forma, com essa ideia de pensamento, a juridicidade passa a ter preferência sobre a legalidade. Aliás, como bem assevera Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, “[...] o emprego de princípios, de conceitos jurídicos indeterminados e juízos de equidade, em detrimento de uma visão puramente formalista na aplicação do direito, haveria obviamente de se refletir no processo”.
Pode-se afirmar, portanto, que esse quarto momento processual, que se forma com o processo no centro das atenções, constitui-se de um verdadeiro espaço democrático para o debate jurisdicional que almeja o alcance da justiça nos diferentes casos. Esse novo modo de pensar constitucional já foi inserido pela doutrina e pela jurisprudência, fazendo-se presente no dia-a-dia do Judiciário.
E, neste passo, poderá ser estabelecido um marco legislativo infraconstitucional, se aprovado o Projeto do Novo Código de Processo Civil, o qual foi apresentado no Senado da República em junho de 2010 (Projeto de Lei do Senado nº 166/2010) e, lá aprovado, foi remetido à Câmara dos Deputados em dezembro daquele ano (Projeto de Lei nº 8046/2010, apensado ao Projeto de Lei nº 6025/2005).
Dito Projeto traz um capítulo dedicado à aplicação dos princípios informadores do direito processual civil, com destaque ao princípio do contraditório. Note-se, contudo, que o contraditório está sendo considerado como uma efetiva possibilidade de influenciar no convencimento do julgador, mediante equivalente e equilibrada oportunidade de intervenção das partes, e não como um mero direito de contramanifestação, visão essa já superada[47] (o direito fundamental ao contraditório será analisada mais a fundo nos próximos itens).
De todo modo, sobressai de todos o direito fundamental à tutela jurisdicional[48], pois será através dele que o processo será analisado como um todo, tendo em vista que as normas processuais nada mais são do que a regulação do modo do exercício daquele direito.
Desde que o Estado tomou para si, com exclusividade, o exercício do poder jurisdicional, sendo-lhe privativa a função de pacificar com justiça todos os conflitos de interesses de uma determinada sociedade, proibindo a vingança privada, foi necessário que houvesse a garantia do acesso à justiça por todos os cidadãos.
Assim, sempre que houver conflito de interesses ou existente uma pretensão resistida, o indivíduo tem o direito de acionar o Estado-Juiz, a fim de que este decida conforme os ditames do ordenamento jurídico vigente. Essa função do Estado de dizer o direito no caso concreto é denominada jurisdição, onde está presente a noção de que o Estado sempre deve atuar mediante o devido processo legal.
O processo é o instrumento através do qual a jurisdição atua, tratando-se de uma garantia, que deve ser norteada por todos os ditames constitucionais. Nas palavras de Guilherme Botelho[49], “o direito à tutela jurídica é o verdadeiro elo entre o direito material e o processo e atua como um princípio síntese de todo o ordenamento jurídico-processual civil brasileiro, sendo o grande propulsor do processo qualificado, único capaz de atender às exigências do Estado Constitucional.”
Assim, o Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, também conhecido como Princípio do Direito de Ação, está prevista no art.5º, inciso XXXV da Constituição Federal, o qual prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”[50].
Apesar de o principal destinatário desta norma seja o legislador, a previsão constitucional atinge a todos indistintamente. Dessa forma, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão. Ou seja, todos têm o direito de acesso a justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativamente à um direito, contemplando os direitos individuais, difusos e coletivos[51].
Segundo Nelson Nery Jr.:
Pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio. Quando a tutela adequada para o jurisdicionado for medida urgente, o juiz, preenchidos os requisitos legais, tem de concedê-la, independentemente de haver lei autorizando, ou, ainda, que haja lei proibindo a tutela urgente. [52]
Fredie Didier Jr. sinaliza que este princípio também pode ser referido como Princípio da Máxima Coincidência possível. Nas suas palavras:
Trata-se de velha máxima chiovendiana, segundo o qual o processo deve dar a quem tenha razão o exato bem da vida a que ele teria direito, se não precisasse se valer do processo jurisdicional. O processo jurisdicional deve primar, na medida do possível, pela obtenção deste resultado (tutela jurisdicional) coincidente com o direito material.[53]
Por isso, o direito ao processo é o mais basilar e democrático de todos os direitos de qualquer ordenamento jurídico, especialmente no Estado Constitucional, em que se enquadra o formalismo-valorativo.
CONCLUSÃO
Realizada tal análise verifica-se que o processo é o meio pelo qual os direitos fixados no texto constitucional são garantidos. Logo, deve o processo primar pela tutela dos direitos fundamentais, a fim de dar aplicabilidade a máxima Chiovendiana, bem como garantir confiabilidade a estrutura do ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS
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