Sequestro relâmpago.

Reflexões quanto às suas penas e ao seu caráter ou não hediondo

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04/12/2019 às 14:48
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Este trabalho aborda o chamado “Sequestro Relâmpago”, que, desde a sua classificação, expressa, no ordenamento jurídico brasileiro, é objeto de críticas por parte da doutrina, sobretudo quando da análise de suas penas e de seu caráter ou não hediondo.

Resumo: Este trabalho aborda o chamado sequestro relâmpago, inserido apenas no ano de 2009 como figura típica no ordenamento jurídico penal brasileiro, e que, desde então, é objeto de críticas por parte da doutrina, sobretudo quando da análise de suas penas e de seu caráter hediondo. As discussões levantadas pelos estudiosos focam-se principalmente em cima de duas teses: (a) a primeira é de que faltaria harmonia entre as penas estabelecidas ao crime de sequestro relâmpago se comparadas com os outros crimes; e (b) a segunda é de que o legislador teria errado ao não considerar a forma qualificada, com lesão grave ou morte, do crime de sequestro relâmpago, como crime hediondo. Sopesando tais apontamentos doutrinários, busca-se com esta pesquisa analisar a conduta do denominado sequestro relâmpago, examinando-o em face do princípio da proporcionalidade das penas, além de averiguar a sua possível hediondez. A metodologia adotada está baseada no método dedutivo, com uma pesquisa de forma teórica e qualitativa, sendo utilizado, para tanto, material bibliográfico, especialmente pesquisas em livros, artigos, periódicos e sítios da internet, e documental legal. Pretende-se, portanto, com esta abordagem, analisar atentamente os posicionamentos doutrinários levantados em relação ao chamado sequestro relâmpago, especificamente quanto ao princípio da proporcionalidade das penas e do seu possível caráter hediondo.

Palavras-chave: sequestro relâmpago. Proporcionalidade das Penas. Hediondez.


INTRODUÇÃO

A partir do final da década de noventa, o brasileiro passou a conviver com mais uma modalidade criminosa, que gerou/gera grandes preocupações aos organismos de segurança e, principalmente, às suas vítimas em potencial.

O crime ocorre de maneira muito rápida e inesperada, sendo caracterizado pelo fato de a vítima, ainda que por um curto espaço de tempo, ficar privada de sua liberdade de locomoção e em poder do agente criminoso, motivo pelo qual foi denominada pela imprensa brasileira como sequestro relâmpago.

Com o objetivo de reprimir essa nova prática criminosa, foi decretada e sancionada a Lei n. 11.923/2009, porquanto na legislação penal brasileira ainda não havia a disposição expressa do delito como um tipo penal.

Ocorre que a aparente solução provocou ainda maiores discussões entre os especialistas em Direito Penal, especialmente por que muitos entendem que o dispositivo legal fere os princípios constitucionais aplicáveis à pena por estar em desproporção aos crimes do Código Penal brasileiro e, ainda, por não haver disposição clara se ele possui ou não caráter hediondo.

Considerando, então, que a matéria encontra divergência no meio acadêmico, pretende-se exercitar o debate, expondo os argumentos levantados pela doutrina acerca do tema, buscando, com isso, atingir uma maior compreensão quanto ao chamado sequestro relâmpago, em especial as suas potenciais inconsistências.


1. Estado Moderno e Direito Penal

Já no ano de 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck, defendeu em seu livro titulado Risikogesellschaft, que o mundo moderno convive com o que se chama de “sociedade de risco”, verdadeiras incertezas e inseguranças fomentadas pelo avanço tecnológico, industrial e pelas respostas sociais cada vez mais aceleradas, que reformulam a estrutura do próprio conceito de sociedade.1

As inúmeras transformações que ocorrem na sociedade contemporânea, nesse sentido, muitas decorrentes dos riscos inerentes ao avanço tecnológico, científico, da exploração da natureza e da globalização, induzem, direta e indiretamente, a população a pugnar a todo o momento por respostas irremediáveis e imediatas do Estado, buscando, com isso, soluções para os problemas que acometem o convívio social.

Percebe-se que atualmente o ser humano vive em um momento sem paciência, não tolerando esperar, observar e aguardar por um desfecho efetivo para os problemas sociais. No Brasil, em particular, não é de agora a irritação por parte do povo em relação a tudo que necessita de certos detalhes e “burocracias necessárias”, ou, até mesmo, de certas concentrações e reflexões mínimas, que objetivam a aplicação com maior eficiência de medidas para conter os avanços dos riscos sociais.2

Sendo o Brasil um país sem grandes desenvolvimentos “concretos”, banhado por má distribuição de renda, desigualdade social desenfreada, alto índice de violência, faz surgir a ideia de que a solução para os problemas sociais e para a redução da criminalidade está no recrudescimento de figuras criminosas, por meio do Direito Penal.

Esse desejo, porém, muitas vezes irresponsável, não passa de uma falsa percepção da realidade, porquanto essas tendências abusivas que recaem sobre o Direito Penal, como “a única salvação” para os problemas sociais, estão, muitas vezes, desguarnecidas de prévios estudos criminológicos e de política criminal, podendo provocar sérias lacunas, desequilíbrios e violações a diretrizes norteadoras do ordenamento jurídico brasileiro.3

Exemplo dessa “onda imediatista” pode ser extraído do final da década de noventa, quando o Brasil, em meio à sua habitual criminalidade, convivia com uma nova modalidade criminosa, caracterizada pela ação de um infrator, que, para subtrair bens da vítima ou para obter vantagens patrimoniais desta, a mantinha em situação de restrição de liberdade. Tal conduta, pelo seu alto índice de repetição durante aquele período, passou a incitar o surgimento da expressão de apelo midiático e uso no jargão policial e forense de sequestro relâmpago.4

Havia evidente descompasso entre acontecimentos e resposta do Estado, que assim o fez com a promulgação da Lei n. 11.923/2009, tipificando, expressamente, o chamado sequestro relâmpago no Código Penal brasileiro.

As discussões sobre o assunto, porém, não pararam com a promulgação da referida lei, sobretudo porque especialistas e estudiosos da área do direito passaram a apontar a tipificação do chamado sequestro relâmpago como uma solução despreparada – e porque não desesperada – encontrada pelo Estado para abrandar a agitação popular.

Vale lembrar, por outro lado, que o renomado professor Norberto Bobbio já dizia que, hoje, o problema fundamental em relação aos direitos do homem não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los.5

É, aliás, a partir dessa concepção que serão guiadas as próximas seções para buscar abordar e esclarecer as principais críticas doutrinárias em relação ao chamado sequestro relâmpago.


2. Origem da expressão sequestro relâmpago

Além dos “atropelos” do Estado para dar respostas aos crescentes riscos sociais, outro problema que desponta na realidade brasileira é o distanciamento entre o direito posto e a dinâmica social. As constantes transformações sociais, assinaladas pelo progresso cultural, industrial e tecnológico fomentam uma verdadeira “fábrica de lacunas legislativas”, forçando o operador do direito a praticar os mais variados “malabarismos jurídicos” para contrabalançar com os espaços sem respostas claras.

Não é novidade que o Brasil convive com uma crescente criminalidade. Tanto os altos índices numéricos de crimes como a diversidade de ações criminosas, causam ainda mais incertezas quando da aplicação da lei penal cuja principal compilação formada no ano de 1940 não se mostra suficiente para salvaguardar a proteção de todos os novos bens jurídicos.

Nos últimos tempos, por outro lado, certo modo de agir criminoso despertou a atenção de todos por sua eficácia e habitualidade. A conduta, que, em regra, busca o saque de dinheiro em caixas eletrônicos, caracteriza-se pelo seguinte modus operandi: o agente, com a intenção de pressionar a vítima para a entrega de seus bens, restringe a sua liberdade por curto espaço de tempo, somente até o momento em que assegure a posse mansa e pacífica da coisa subtraída. Com tal modo de agir o transgressor sente-se seguro e sabe que a rentabilidade é praticamente certa, possuindo confiança de que não será perseguido enquanto a vítima não for libertada para comunicar o crime.

Como destacado, no final da década de noventa esse tipo de ação passou a ser identificado pela imprensa brasileira de sequestro relâmpago em face do estreito lapso de tempo em que a vítima é privada de sua liberdade.

Esse fato social teve ao longo dos tempos várias iniciativas e tentativas para descrevê-lo. Hugo José Lucena de Mendonça afirma em artigo de sua autoria, que o sequestro relâmpago fundamenta-se, primordialmente, na restrição da liberdade da vítima pelo agente, não importando se a privação possui ou não tempo inferior àquela que se denota no tipo penal do sequestro propriamente dito.6

O professor Damásio Evangelista de Jesus, por sua vez, sustenta que “o impropriamente denominado sequestro relâmpago retrata a hipótese de o autor, mediante grave ameaça, constranger a vítima a lhe entregar o cartão magnético e lhe fornecer a senha, acompanhando-o a caixas eletrônicos de bancos para sacar dinheiro”. O autor revela, ainda, dúvida em relação à real tipificação do famigerado sequestro relâmpago, perguntando se “o fato configura roubo (Código Penal, art. 157) ou extorsão (art. 158)?”7

Também não é bem definido o posicionamento adotado pelo doutrinador Alexandre Cunha Campos, que ora compreende o sequestro relâmpago como delito de extorsão (artigo 158, do Código Penal brasileiro) ora como delito de extorsão mediante sequestro (artigo 159, caput, do Código Penal brasileiro).8

Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, já no ano de 2009, esclarecia com proficiência a discussão, destacando como correta a classificação do crime de sequestro relâmpago como modalidade de extorsão. Confira-se:

Não se trata, naturalmente, de um roubo, com restrição à liberdade (art. 157, § 2.°, V, CP), pois esta hipótese retrata um curto espaço de tempo em que o agente detém o ofendido, somente para se assegurar da posse mansa e pacífica da coisa subtraída. Não é o caso de falar em extorsão mediante sequestro (art. 159, CP), pois este caso espelha a privação da liberdade com o aguardo da percepção do resgate, significando um tempo marcante de negociação. Surge, pois, a situação descrita no § 3.° do art. 158, servindo para adequar os casos que o agente priva a liberdade da vítima por algum tempo, em período suficiente para constrangê-la a lhe fornecer algum bem.9

Embora tais questionamentos tenham ficado apenas para registro histórico doutrinário-jurisprudencial, porquanto, com a promulgação da Lei n. 11.923/2009, o impasse foi resolvido, sendo o crime de sequestro relâmpago tipificado como uma nova modalidade de extorsão, as discussões e reflexões que marcaram o final da década de noventa e se estenderam até o início do ano de 2009 são importantes para se alcançar uma melhor compreensão acerca do tema.

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3. A busca pela tipificação do crime de sequestro relâmpago

“Não há crime sem lei anterior que o defina” (art. 1°, primeira parte, do Código Penal).

O direito penal brasileiro, nesse sentido, “é preso a dogma constitucional que assegura a todos o direito de não ser acusado por conduta delituosa, se a mesma não for prescrita em lei anterior ao seu cometimento.” 10

Antes de a Lei n. 11.923/2009 ter entrado em vigor, a legislação brasileira não fazia qualquer referência em relação à conduta vulgarmente chamada de sequestro relâmpago, fazendo com que os legisladores fossem forçados a interpretar os tipos penais já existentes no ordenamento jurídico e adequar a nova ação criminosa a eles.

Era observado, por sua vez, que a referida ação criminosa estava muito próxima dos crimes de roubo, extorsão e extorsão mediante sequestro. A sua definição, porém, não era pacífica entre os doutrinadores e em julgamentos no âmbito dos Tribunais brasileiros, possuindo três classificações diferentes para o referido delito:

  • (a) ora entendia-se que o sequestro relâmpago não passava de delito de roubo majorado pela restrição da liberdade da vítima;

  • (b) ora entendia-se como crime de extorsão, sendo a restrição da liberdade considerada como circunstância judicial desfavorável ao ofendido; e

  • (c) ora entendia-se como crime de extorsão mediante sequestro, reputando a privação da liberdade como elementar do tipo.11

De fato, dependendo do modo de operação utilizado pelo agente, havia a possibilidade de o chamado sequestro relâmpago ser enquadrado em uma das três hipóteses.12

Para demonstrar a indisfarçável controvérsia existente entre os estudiosos criminalistas e os julgadores em relação às três correntes, extrai-se do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais acórdão cujo voto enquadrou o chamado sequestro relâmpago como sendo roubo majorado pela privação da liberdade da vítima. Confira-se:

Extorsão mediante sequestro - Desclassificação para crime de roubo - Possibilidade - Sequestro Relâmpago - Lei n.º 9.426/96. Havendo a privação da liberdade da vítima para viabilizar ou facilitar uma subtração patrimonial pré-ordenada - o que se denominou vulgarmente como "Seqüestro Relâmpago" - ter-se-á a figura típica do art. 157, § 2º, V, do CP, introduzida pela Lei n.º 9.426/96, e não o delito do art. 159, do CP, onde a constrição do status libertatis do vitimado se faz como meio à obtenção de vantagem futura (resgate ou preço).

(BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Criminal n. 425.989-0. Comarca de Caxambu, MG. Apelantes: Guilherme Dias Saldanha Marinho e Daniel Luciano da Silva. Apelado: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Rel. Antônio Armando dos Anjos, j. em 16 mar. 2004, Dj. 27 mar. 2004. Acesso em: 18 nov. 2019. Disponível em: www.tjmg.jus.br).

Como se pode observar, seria cabível a tese de que o sequestro relâmpago era considerado como crime de roubo majorado pela privação da liberdade da vítima, quando o agente, para subtrair coisa alheia móvel, necessitava restringir a liberdade do ofendido.13

Tal posicionamento, aliás, vinha conquistando força nos mais variados Tribunais brasileiros (cf. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Habeas Corpus n. 70025419250, Comarca de Canoas, RS, Oitava Câmara Criminal. Impetrante: Felipe da Silva Borba. Paciente: Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal da Comarca de Canoas. Rela. Fabianne Breton Baisch, j. em 13 ago. 2008, Dj. 30 set. 2008. Acesso em: 17 nov. 2019. Disponível em: www.tjrs.jus.br; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Criminal n. 70004695755, Comarca de Porto Alegre, RS, Câmara Especial Cível. Apelante: Geverson Eduardo Gonçalves Silvino. Apelado: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Rela. Maria da Graça Carvalho Mottin, j. em 27 ago. 2002. Acesso em: 17 nov. 2019. Disponível em: www.tjrs.jus.br; BRASIL. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo. Apelação-Reclusão n. 1.409.317-1, Comarca de Guarulhos, SP, 11° Câmara. Apelantes: Noel dos Santos Lima e Valmir (ou Walmir) dos Santos (ou Valdecir Rodrigues Alves). Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Rel. Luís Soares de Mello, j. em 19 abr. 2004, DJ 7 out. 2007. Acesso em: 18 nov. 2019. Disponível em: www.tjsp.jus.br; e BRASIL. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo. Apelação-Reclusão n. 1.438.153-9, Comarca de Cotia, SP, 12° Câmara. Apelantes: Flávio Marcelo Soares, Marco Antônio de Macedo Miranda e Nilton de Macedo Miranda. Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Rel. Antônio Celso Pinheiro Franco, j. em 31 mai. 2004, DJ 7 out. 2007. Acesso em: 18 nov. 2019. Disponível em: www.tjsp.jus.br).

Ainda assim, havia quem considerava que o chamado sequestro relâmpago correspondia ao delito de extorsão. Conforme esse entendimento, o sequestro relâmpago estaria configurado em extorsão quando, almejando obter indevida vantagem econômica, o agente, necessitando do auxílio da vítima, privaria a sua liberdade.14

Julgava-se, pois, o sequestro relâmpago como extorsão quando fosse imprescindível a atuação da vítima para que o delito se consumasse. A atuação da vítima, portanto, era considerada condição necessária para a obtenção da vantagem econômica.

Havia, por outro lado, quem sustentasse que o crime de sequestro relâmpago nada mais era do que o crime de extorsão mediante sequestro previsto no artigo 159 do Código Penal brasileiro. Exemplo desse entendimento é extraído de julgado proferido no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, in verbis:

Extorsão mediante seqüestro - Seqüestro relâmpago - Ofendido que é obrigado a acompanhar o acusado por cerca de 45 minutos, em tentativa de saques a 05 caixas eletrônicos, situados, em municípios da grande São Paulo. Confissão do réu preso em flagrante, que é compatível com o relato da vítima e testemunhas. Desclassificação para roubo tentado - Não cabimento - Hipótese de afronta ao artigo 159 do Código Penal. Crime que se consuma com o cerceamento de liberdade da vítima - Delito formal. Progressão de regime de pena - Não cabimento - Crime hediondo. Recurso desprovido.

(BRASIL. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo. Apelação Criminal n. 00890201.3/5-0000-000. Comarca de São Bernardo do Campo, SP. Apelante: Alberto Rodrigues. Apelado: Ministério público do Estado de São Paulo. Rel. José Raul Gavião de Almeida, j. em 3 ago. 2006, Dj. 31 ago. 2006. Acesso em: 18 nov. 2019. Disponível em: www.tj.sp.gov.br).

Nesse caso, o crime de sequestro relâmpago seria considerado como extorsão mediante sequestro quando a privação da liberdade da vítima tivesse como fim a obtenção de vantagem econômica dependente do comportamento de terceiro, servindo tal restrição à locomoção do ofendido como forma de coação para a entrega da condição ou o preço do resgate impostos pelo agente.15

As dúvidas e as discussões, como visto, eram constantes e variadas, somente tendo termo – ao menos no âmbito do Poder Judiciário – com a sanção da Lei n. 11.923, de 17 de abril de 2009, que acrescentou parágrafo ao art. 158 do Código Penal brasileiro, caracterizando o chamado “sequestro relâmpago” como qualificadora do crime de extorsão.


4. A Lei

No dia 17 de abril de 2009 o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República, na época, Luís Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei n. 11.923, que, segundo ementa de apresentação, acrescentou parágrafo ao artigo 158 do Código Penal brasileiro, para tipificar o chamado sequestro relâmpago.

O referido dispositivo, nesse sentido, passou a vigorar da seguinte maneira:

Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:

Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade.

§ 2º - Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do artigo anterior.

§ 3º - Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente. (BRASIL, 2019b)

Embora em sua ementa seja mencionada a finalidade de tipificar o chamado sequestro relâmpago, a lei não criou um novo crime, tendo, apenas, acrescentado um novo modo de execução ou, melhor dizendo, uma nova qualificadora, ao crime de extorsão.

Tal afirmação pode parecer óbvia neste momento, mas, nos idos dos anos de 2009, o fato de ter constado a expressão “tipificar o chamado de sequestro relâmpago” no ementário da lei fez eclodir uma série de discussões acerca da criação ou não de um novo tipo penal no ordenamento jurídico brasileiro.

O professor Luiz Regis Prado, em particular, em seus primeiros comentários à nova lei, já sustentava o equívoco do legislador ao mencionar na ementa da Lei n. 11.923/2009 a expressão “tipificar o chamado sequestro relâmpago”. Para o autor, “na realidade, não houve uma efetiva tipificação de uma nova modalidade de sequestro, mas apenas a inserção de uma qualificadora para o delito de extorsão na hipótese de restrição da liberdade da vítima, sem qualquer delimitação conceitual”.16

O mesmo posicionamento era defendido pelos renomados professores Rogério Sanches Cunha e Luiz Flávio Gomes, que destacavam o deslize técnico na redação do ementário, assegurando que a nova legislação não teria considerado o sequestro relâmpago como um tipo penal autônomo, prevendo, apenas, uma nova qualificadora ao crime de extorsão em razão da privação da liberdade da vítima, sendo essa condição necessária à obtenção de vantagem econômica.17

Hoje não há dúvidas de que o chamado sequestro relâmpago é crime de extorsão qualificada. Reputá-lo como uma nova figura típica seria desconsiderar a boa técnica legislativa e a sua própria topografia textual.

Ainda que exista quem defenda – como o professor Luiz Regis Prado – que a lei não oferece uma melhor diferenciação entre os crimes de extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, extorsão mediante sequestro e roubo majorado pela privação da liberdade do ofendido18, é praticamente pacífico que não há confusão legal entre tais crimes, sendo amenizadas muitas das discussões que envolviam a capitulação do chamado sequestro relâmpago.

O professor Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, sempre sustentou que a inovação trazida pela Lei n. 11.923/2009, não acarreta conflito entre os crimes de roubo majorado pela restrição da liberdade de locomoção da vítima e de extorsão mediante sequestro, in verbis:

Em primeiro lugar, convém destacar inexistir qualquer conflito aparente de normas ou confusão legislativa pela simples vigência do disposto no art. 157, § 2.º, V, do Código Penal (“se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade”). Já sustentávamos anteriormente, conforme se constata nos comentários a esse dispositivo, ser inaplicável a causa de aumento do art. 157, § 2.º, V, ao caso do sequestro relâmpago. Para tal situação, seria necessária a tipificação em roubo seguido de sequestro, por ausência de outra figura específica. A partir da inclusão do § 3.º ao art. 158, passa-se ao tipo preciso de extorsão, cujo constrangimento é voltado à restrição da liberdade da vítima como forma de pressão para a obtenção de vantagem econômica. Não mais se aplica o concurso de crimes (roubo + sequestro), inserindo-se o caso concreto, denominado vulgarmente de sequestro relâmpago, na figura nova. Jamais houve confusão entre roubo e extorsão. Quando o agente ameaça a vítima portando uma arma de fogo, exigindo a entrega do automóvel, por exemplo, cuida-se de roubo. A coisa desejada, afinal, está à vista e à disposição do autor do roubo. Caso o ofendido se negue a entregar, pode sofrer violência, ceder e o agente leva o veículo do mesmo modo. Porém, no caso da extorsão, há um constrangimento, com violência ou grave ameaça, que exige, necessariamente, a colaboração da vítima. Sem esta colaboração, por maior que seja a violência efetivada, o autor da extorsão não obtém o almejado. Por isso, obrigar o ofendido a empreender saque em banco eletrônico é extorsão – e não roubo. Sem a participação da vítima, fornecendo a senha, a coisa objetivada (dinheiro) não é obtida. Logo, obrigar o ofendido, restringindo-lhe (limitar, estreitar) a liberdade, constituindo esta restrição o instrumento para exercer a grave ameaça e provocar a colaboração da vítima é exatamente a figura do art. 158, § 3.º, do Código Penal. Permanece o art. 157, § 2.º, V, do Código Penal para a hipótese mais rara de o agente desejar o carro da vítima, ilustrando, levando-a consigo por um período razoável, de modo a se certificar da inexistência de alarme ou trava eletrônica. É um roubo, com restrição limitada da liberdade, de modo a garantir a posse da coisa, que já tem em seu abrigo. Entretanto, rodar com a vítima pela cidade, restringindo-lhe a liberdade, como forma de obter a coisa almejada, contando com a colaboração do ofendido, insere-se na extorsão mediante restrição à liberdade. Finalmente, a nova figura também não se confunde com a extorsão mediante sequestro, tendo em vista que nesta última hipótese, a privação (destituir, tolher) da liberdade é mais que evidente, ingressando o ofendido em cárcere, até que haja a troca da vantagem como condição ou preço do resgate.19

A existência harmônica entre as três espécies de crimes, aliás, pode ser sustentada pelos seguintes argumentos:

  • (a) enquanto que no sequestro relâmpago a conduta é praticada mediante a restrição da liberdade da vítima, sendo esse cerceamento condição à obtenção de qualquer vantagem econômica, no crime de roubo majorado pela restrição da liberdade da vítima (art. 157, § 2°, inciso V, do Código Penal), esse cerceamento não é condição ou requisito à obtenção de coisa móvel; e

  • (b) enquanto que no “Sequestro Relâmpago a restrição da liberdade da vítima busca à obtenção de qualquer vantagem econômica, no crime de extorsão mediante sequestro (art. 159 do Código Penal) a privação da liberdade é mais evidente, ingressando a vítima em cárcere, sendo a vantagem condição ou preço de resgate.

A Lei n. 11.923/2009, portanto, apesar de certa atecnia legislativa quando de sua apresentação, conseguiu contornar anos de discussão acerca da tipificação do chamado sequestro relâmpago, deixando claro que o referido delito nada mais é do que uma qualificadora do crime de extorsão.

Sobre o autor
Maurício Piacentini

Especialista, na área do direito, em Ciências Penais "lato sensu".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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