Crimes contra o estado de filiação

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Análise geral e crítica acerca dos Crimes contra o Estado de Filiação. Baseia-se numa análise bibliográfica das doutrinas dominantes sobre os aspectos gerais dos crimes. Aborda-se as peculiaridades de cada crime.

1 Introdução

            Ao talante do crescimento intelectual e dogmático, sempre proveitoso será a análise de qualquer conteúdo. Temas do Direito Penal, em vistas de tal ramo voltar-se para os bens mais importantes e caros ao desenvolvimento de uma sociedade, são assim suscitadores de uma rica discussão sobre seus pormenores.

É nessa seara que o trabalho em questão volta-se a uma análise técnico-geral e crítica sobre os Crimes contra o Estado de Filiação que, como a própria denominação deixa transparecer, são temas que mexem profundamente com o poder questionador dos olhos jurídicos. Assim é que nada mais proveitoso que uma análise dos crimes de Registro de Nascimento Inexistente, Parto Suposto e Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao Estado Civil de Recém-Nascido e Sonegação de Estado de Filiação a luz de seus pormenores e variadas posições dogmáticas.

2 Crimes contra o Estado de Filiação

            2.1 Registro de Nascimento Inexistente.

            O crime de Registro de Nascimento Inexistente figura como merecedor da atenção dos olhos do Direito Penal nos ordenamentos gerais desde o medievo, tendo sua tipificação em ordenamentos jurídicos como o romano. No ordenamento jurídico pátrio há a vigência criminal desde o Código Penal Republicano de 1890. O Código Penal atual de 1940 ainda põe como um relevante penal o crime de registro de nascimento inexistente como um crime contra o estado de filiação assim redigido no artigo 241:

Art. 241 - Promover no registro civil a inscrição de nascimento inexistente:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

            Obviamente incrimina-se a conduta de fazer-se registrar o nascimento de um ser inexistente ou porque a própria gravidez e parto foram simulados ou ainda porque o feto não sobrevivente fora registrado como vivo. Certo é que tal crime restará afastado em caso de erro de proibição e que este ainda absorve o crime falsidade ideológica pela sua especialidade. Destarte, nota-se que o crime volta-se a proteger o bem jurídico da segurança do estado de filiação e da fé pública nos documentos oficiais.

            Sujeitos ativos e passivos poderão ser qualquer pessoa de qualquer dos gêneros. Podem incluir-se como sujeitos ativos do crime o médico fornecedor de declaração falsa, caso saiba da falsidade do ato, em vistas do instituto do concurso de pessoas. Sujeitos passivos, por sua vez, são especificamente todas as pessoas prejudicadas pelo registro falso, além de mediatamente ser o Estado. A consumação criminal se dá com efetivo registro falso e a tentativa é plenamente admitida.

Questão interessante quanto ao crime de Registro de Nascimento Inexistente condires na sua amplificação hermenêutica para a inclusão também na esfera criminal a conduta de registrar-se não só nascido inexistente mas também o registro de natimorto. A construção legislativa apenas faz menção expressa a incriminação da conduta de registrar "nascimento inexistente". É de se notar, todavia, que em caso de recém-nascido natimorto o nascimento de fato existiu, apenas o recém-nascido não é apto ao registro. Logo, a lei expressa poderia tornar-se uma limitadora em relação a incriminação da conduta do registro de natimorto se o princípio da taxatividade penal fosse levado às suas últimas consequências. Acertada é, portanto, a posição do doutrinador Luiz Regis Prado (2011, p. 750) ao ampliar a interpretação penal para além daquilo que a lei penal diz expressamente.

            2.2 Parto suposto. Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao estado civil de Recém-Nascido.

            O crime ora analisado porta-se como uma figura já há muito batizada pelos ordenamentos jurídicos em geral. Nas ordenações Filipinas de 1603 já encontrava-se como uma conduta punível penalmente a conduta da mulher que simulasse a gravidez ou desse parto próprio como alheio. Em esfera pátria, houve a tipificação da conduta ora analisada já no Código Criminal do Império de 1830. Atualmente, o Código Penal de 1940 assim tipifica o crime de parto suposto no artigo 242:

Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Parágrafo Único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza :

Pena – Detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

            Ao se analisar o tipo penal é de observar-se que há a incriminação de quatro condutas diferenciadas. A primeira delas consiste em atribuir como próprio o parto alheio, em que a mulher simula estar grávida e entrar em trabalho de parto. A segunda conduta incriminada consiste em registrar filho alheio como seu. A terceira delas é a ocultação do recém-nascido que acaba impossibilitado por isso de assumir seus direitos inerentes ao estado civil. Por fim, a quarta conduta incriminada consiste em substituir um recém-nascido por outro em que acaba por se prejudicar os direitos ao estado civil de ambos. O crime de falsidade documental resta absorvido pelo crime em questão, além de ser a forma privilegiada aplicável a todas as condutas.

            O crime volta-se a proteger o bem da segurança do estado de filiação e a fé pública dos documentos oficiais. Sujeitos ativos ser qualquer pessoa exceto na conduta de dar parto alheio como próprio, em que apenas poderá ser mulher. Sujeitos passivos serão o Estado, herdeiros e pessoas lesadas com o falso registro. Trata-se de crime doloso com consumação com a realização efetiva de qualquer das condutas descritas no tipo, sendo a tentativa plenamente admitida.

Observação acertadíssima faz o doutrinador Luiz Regis Prado (2011, p. 754) quando aduz que o crime em questão trata-se de delito misto cumulativa. De tal sorte, é de entender-se que em vistas de tipificar-se como delito quatro condutas diferentes tais condutas quando praticadas mais de uma destas pelo sujeito ativo nao sao fungíveis. Assim é que praticando-se mais de uma conduta tipificada no artigo 242 do Código Penal o agente responderá por delitos diferentes em concurso conforme o artigo 69 do Código Penal e nao apenas pelo delito de Parto Suposto e Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao Estado Civil de Recem-Nascido.

Questionamentos, porém, hão de ser erigidos em relação ao fato de incriminar-se a conduta de dar parto alheio como próprio mas nao incriminar-se a conduta de dar parto próprio como alheio. Tratam-se condutas evidentemente de faces de uma mesma moeda em vistas de que para que exista alguém que pratique a conduta criminosa de dar parto alheio como próprio muito provavelmente existirá alguém que facilite isso ao praticar a conduta incriminada de dar parto próprio como alheio. Desgaste, é de se notar que ambas as condutas convergem para o ataque do mesmo bem jurídico com distinção apenas com relação ao sujeito passivo. Resta incoerente, portanto, a opção legislativa de se excluir do âmbito da reprimenda penal a conduta hoje nao incriminada, apesar de ser nota mente lesiva.

Opção acertada do legislador, porém, configura-se no fato da atual forma privilegiada do crime que poderá aplicar-se a qualquer das quatro condutas tipificadas. Aduz-se que se o crime de Parto Suposto ou Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao Estado Civil do Recem-Nascido for praticado por motivo de reconhecida nobreza poderá haver aplicação detenção de um a dois anos ou mesmo o afastamento da punibilidade com a inaplicação de qualquer pena. Faz-se evidente que o ordenamento jurídico repressivo agiu por bem ao buscar uma alternativa de proteção a aqueles que praticavam o crime com intenção apenas de conseguir o melhor para o recém-nascido. Assim é que mostra-se piedoso o tratamento penal quando se pratica o crime por compaixão, altruísmo ou mesmo solidariedade. Engloba-se assim aqui a tão comum figura da avo piedosa que registra seu neto como filho para livra-ló da mácula social de ser fruto de uma gravidez na adolescência.

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            2.3 Sonegação de Estado de Filiação.

            O delito ora analisado encontra-se previsto em ordenamento pátrio desde o Código Penal de 1890. Atualmente, permanece vigente no Código Penal de 1940 sob a égide do artigo 243, assim redigido:

Art. 243 - Deixar em asilo de expostos ou outra instituição de assistência filho próprio ou alheio, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de prejudicar direito inerente ao estado civil:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

            É de se notar, portanto, que a conduta incriminada é o abandono de filho próprio ou alheio em asilos em que por isso resta prejudicado os direitos dos recém-nascidos ao estado de filiação, visto que estes são abandonados sem que revele sua filiação ou mesmo com filiação falsa. Tal caractere é imprescindível, visto que apenas o abandono não é suficiente para caracterizar o delito em questão, em que poderá haver tipificação nos delitos de abandono de incapaz ou recém-nascido, a depender do caso concreto.

            É de se notar, portanto, que as condutas incriminadas voltam-se a proteger o bem jurídico da segurança do estado de filiação e a fé pública dos documentos oficiais, além de obviamente a proteção aos direitos civis do menor. Sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa de qualquer dos gêneros e sujeito passivo será o menor prejudicado e, mediatamente, o Estado. Trata-se de crime efetivamente doloso, consumado com a prática de qualquer dos atos previstos como crime. A tentativa é plenamente admitida.

Questão acertadíssima por parte da atividade legislativa voltou-se para o afastamento da antiga vedação de reconhecimento de filhos incestuosos ou adulterinos constante no artigo 358 do Código Civil de 1916. Restava, portanto, afastada qualquer possibilidade de serem tais filhos considerados ilegítimos como sujeitos passivos do crime de Sonegação de Estado de Filiação. A antiga vedação era evidentemente imbuída de notável arcaísmo em face de uma sociedade cada vez mais socialmente evoluída. Urgia-se assim que revigorada fosse a legislação no que concerne aos direitos civis por parte dos considerados filhos ilegítimos em vista de dever esses também serem portadores de todos os direitos garantidos a qualquer outro recém-nascido "legitimamente" concebido. Mais acertada nao poderia ser, desta maneira, a postura legislativa  de revogação do anterior dispositivo legal.

3 Considerações Finais

            Ao final da análise dos Crimes contra o Estado de Filiação é de se notar que o tema é, notadamente, terreno fértil para o espírito questionador que deve ser imanente a qualquer um que se proponha a entender seu conteúdo, apesar da maioria das explicações doutrinárias serem deveras simplificadas. O necessário princípio da segurança jurídica não pode prestar-se a tornar deveras rígido o entendimento jurídico, que deve ser uma ciência em constante oxigenação e construção dogmática para que efetivamente se proponha a finalidade a que lhe é destinada.

            Portanto, é de se notar que é necessário que se assevere uma proveitosa aliança entre os dispositivos jurídicos das doutrinas, legislações e decisões jurisprudenciais, sem que, contudo, sufoquem as tão proveitosas discussões sobre os temas em questão tendo em vista de estas portarem-se como importantes fatores de evolução jurídica. O Direito é movido as mais variadas transformações sociais e culturais, sendo assim tal realidade um fato intrínseco ao seu desenvolvimento. Destarte, a análise conjunta dos variados dispositivos jurídicos precisa tornar-se um hábito comum a todos os seus aplicadores.

           

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Registro de Nascimento Inexistente. In:_______. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 6. ed. v.4. São Paulo: Saraiva, 2012.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Parto Suposto. Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao Estado Civil de Recém-Nascido. In:_______. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 6. ed. v.4. São Paulo: Saraiva, 2012.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Sonegação de Estado de Filiação. In:_______. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 6. ed. v.4. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Vade Mecum. 13 ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

GRECO, Rogério. Registro de Nascimento Inexistente. In:_______. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 9. ed. v. 3. Niterói: Impetus, 2012.

GRECO, Rogério. Parto Suposto. Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao Estado Civil de Recém-Nascido. In:_______. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 9. ed. v. 3. Niterói: Impetus, 2012.

GRECO, Rogério. Sonegação de Estado de Filiação. In:_______. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 9. ed. v. 3. Niterói: Impetus, 2012.

PRADO, Luiz Regis. Registro de Nascimento Inexistente. In_______. Curso de Direito Penal Brasileiro. 9. ed. v.2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 543 – 558.

PRADO, Luiz Regis. Parto Suposto. Supressão ou Alteração de Direito Inerente ao Estado Civil de Recém-Nascido. In_______. Curso de Direito Penal Brasileiro. 9. ed. v.2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 543 – 558.

PRADO, Luiz Regis. Sonegação de Estado de Filiação. In_______. Curso de Direito Penal Brasileiro. 9. ed. v.2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 543 – 558.

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