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A relação entre os direitos fundamentais e os direitos humanos.

Uma análise à luz da República Federativa do Brasil de 1988

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Quais as dificuldades em relação de concretização dos direitos humanos e fundamentais?

Sumário: Introdução. 1. Da nomenclatura e do mínimo existencial dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. 1.1. Nomenclatura. 1.2. Reserva do possível x mínimo existencial. 2. A evolução dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. 2.1. Da importância de conhecer a evolução. 2.2. Direitos humanos no plano internacional, pós positivismo e reaproximação do direito e da moral. 2.3. Dos direitos fundamentais e a Constituição Federal brasileira de 1988. 2.4. Dos pressupostos dos direitos fundamentais: Estado de Direito e dignidade humana. 2.5. Do termo gerações x dimensões. 2.6. Das diversas dimensões. 2.7. Distinção e características dos direitos humanos e fundamentais. 2.8. Quanto à atuação dos sujeitos nos direitos humanos. 2.8.1. Sujeito ativo. 2.8.2. Sujeito passivo. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

O presente estudo pretende demonstrar a importância fulcral do surgimento dos direitos humanos e fundamentais, com escopo de limitar e controlar os abusos do poder do Estado, bem como assegurar aos cidadãos uma vida mais digna.

A escolha da tese justifica-se por diversos fatores.

No Brasil, após 21 anos de ditadura militar (no dia 5 de outubro de 1988), foi promulgada uma nova Constituição, tão avançada nesses temas que foi denominada de Constituição cidadã.

Ela inseriu, inclusive, um rol dos direitos fundamentais como “cláusulas pétreas”, sendo direitos e garantias que não podem serem abolidos ou sofrer diminuição do seu núcleo essencial, somente podendo avançar em sua positivação, aumentando o rol dos direitos ou seu alcance (“efeito Cliquet”).

Todavia, em contraposição a positiva normatização, a concretização e efetivação desses direitos são os maiores problemas, gerando a erosão constitucional, a inefetividade e a descrença popular nas leis e nos órgãos públicos.

Nesse contexto, busca-se compreender por que existem dificuldades em relação à efetivação e a concretização desses direitos humanos e fundamentais elencados no plano do direito internacional e pela Constituição Federal de 1988.

Como fundamento dos debates ao longo deste estudo, compilou-se doutrinas, artigos jurídicos, análises de legislação e os entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Por óbvio, uma pesquisa jurídica nunca é completa sem observar atentamente as doutrinas, leis e jurisprudência – tanto as clássicas, quantos as modernas, as majoritárias, as minoritárias.

Utilizou-se o método dedutivo baseando-se no estudo de teoria e refinações de conceito.

O trabalho foi dividido em dois capítulos temáticos.

No primeiro capítulo, discorrer-se-á acerca de conceitos e expressões de termos ligados diretamente ao tema. Sem a explanação dessas definições, haveria o risco da não percepção de detalhes importantíssimos para o perfeito entendimento da pesquisa. A título de exemplo, as definições dos direitos humanos e fundamentais são processos dirigidos à obtenção de bens fundamentais para assegurar uma vida digna. As razões que levam as pessoas a lutarem pela conquista de tais direitos estão vinculadas ao fato de uns terem mais facilidade para obtê-los, enquanto outros tem mais dificuldade, gerando os (inevitáveis) conflitos sociais.

Além disso, no capítulo inicial se explica ao eterno embate entre mínimo existencial e reserva do possível, com a recente decisão do STF.

Em seguida, no segundo capítulo, apresentar-se-ão os objetivos, requisitos, princípios e efeitos dos direitos humanos e fundamentais dentro das decisões do ordenamento jurídico. Este não deve restringe-se apenas à criação desses direitos, mas essencialmente reconhecê-los e transformá-los em normas jurídicas, com o intuito de garantir a sua efetividade, para não serem “leis mortas”.

Destrincha-se também o desenvolvimento dos direitos humanos e fundamentais nos séculos XX e XXI, analisando o surgimento de normas que enfatizavam a necessidade de respeitar a vida humana e os principais motivos que impedem os sistemas jurídicos de assegurar a dignidade da pessoa humana. Além de abordar os aspectos relacionados aos direitos fundamentais no mundo globalizado, enfatizando as principais dificuldades relacionadas à sua efetivação, tanto no aspecto fático e financeiro, quanto jurídico.

Na conclusão, debate-se todo o narrado e a possível solução para melhor efetivar os direitos humanos e fundamentais.

O presente estudo tenta demonstrar a importância de tais direitos e destacando que uma sociedade somente atingirá seu auge quando efetivá-los. E para isso, há a necessidade da participação popular nos processos, tanto cumprindo os direitos, quanto exigindo o respeito estatal.


1. DA NOMENCLATURA E DO MÍNIMO EXISTENCIAL DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 – NOMENCLATURA

De início, antes de maior aprofundamento, vale distinguir os conceitos de direitos humanos, fundamentais e do homem.

Em síntese, percebe-se a existência de uma verdadeira confusão terminológica que assola a doutrina. Podemos registrar, por exemplo, autores que usam nomes tão díspares quanto “direitos humanos”, “direitos humanos fundamentais”, “liberdades públicas”, “direitos dos cidadãos”, “direitos da pessoa humana”, “direitos do Homem”.

São nomenclaturas que fazem parte do vocabulário da população em geral. Apesar da enorme incidência dos assuntos pertinentes a estes direitos estarem, quase cotidianamente, em voga na mídia, estampando chamadas principais em jornais impressos, revistas e passagens em telejornais, tais conceitos são corriqueiramente usados de forma incorreta.

Quanto a isso, é preciso sedimentar uma terminologia adequada, a fim de evitar problemática terminológica e ambiguidade de interpretações ao longo do estudo.

A primeira nomenclatura que surgiu foi a dos direitos do homem (direitos naturais ou natural law), de cunho jusnaturalista. Defendidos desde a Grécia antiga, a exemplo de Sócrates, Platão e Aristóteles, através da ideia de universalização e do organizacionismo. Independe de positivação, sendo inerentes a todos os homens, intrínsecos à natureza humana, bastando a condição de ser humano. Com o advento do iluminismo e o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos, se popularizou a expressão direitos do homem.

Os direitos fundamentais são os direitos naturais positivados nas Constituições Estatais, em um determinado ordenamento jurídico (Constituição Brasileira, Lei Fundamental Alemã etc.). A Carta Magna do Estado, através de sua vontade política, escolhe determinados direitos para positivar. São aqueles direitos reconhecidos e positivados na Constituição de um determinado Estado, existindo, dessa maneira, pretensões de territorialidade.

Já os direitos humanos é a positivação dos direitos através de Tratados ou Convenções Internacionais. A aspiração é pela universalidade, elevando a normatização ao plano internacional. São direitos atribuídos à humanidade em geral, por meio de tratados internacionais (Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, 1948, por exemplo).

No contexto, perceber-se os Direitos Humanos como um agrupamento de direitos e princípios reunidos pelo objetivo de representar defesa para a vida honrada da pessoa humana. Isso implica em afirmar a sustentabilidade da universalidade do ser humano respeitando, também, a especificidade de cada pessoa.

Essa terminologia adota, além do embasamento doutrinário majoritário, é corroborada pela Constituição Federal brasileira. Quando trata de assuntos internos, a Constituição costuma se referir a “Direitos e garantias fundamentais” (a exemplo do “TÍTULO II, DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS”), ao passo que, quando trata de tratados internacionais, se refere a direitos humanos (art. 5º, § 3º).

Tal distinção é referendada pela doutrina amplamente majoritária, conforme ensinamento de Sarlet1:

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

Estas três vertentes de direitos explicitadas estão sempre em evolução e transformação, a fim de acompanharem o desenvolvimento da sociedade – cada vez mais global e rápida.

Alguns estudiosos, como o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, entendem que estamos na era da modernidade líquida, ou seja, a lógica do consumo substituiu a lógica da moral. Cada vez mais as pessoas são valoradas pelo que compram e não pelo que são. Com isso, as relações sociais, econômicas e de produção ficaram frágeis, fugazes e maleáveis - como os líquidos.

Diante deste contexto, aumenta-se também a necessidade da incidência dos direitos humanos e fundamentais para regular as relações sociais, evitando injustiças, sejam por ação ou omissão, de entes públicos ou particulares.

Diante das complexidades dos direitos humanos e fundamentais, aliadas à resistência dos detentores de poder ao longo da história e das sociedades, o desenvolvimento dos direitos humanos e fundamentais não se deu em um mesmo e único momento histórico. De modo vagaroso, no transcorrer de uma evolução histórico-social, referidos direitos foram aparecendo e, gradativamente, disciplinados nos textos constitucionais e no Direito Internacional. E assim, esses direitos foram reunidos em diferentes grupos, denominados de gerações ou dimensões.

Por óbvio, as transformações culturais definem nossos modos de ser, agir e pensar. Cultura e política como catalizadores de transformação e de significados da temática dos Direitos Humanos vem se constituindo.

Ressalte-se que as mudanças desencadeadas pelos textos legais só encontram sentido se refletem os anseios e sentimentos coletivos, salvo exceções, que evitam segregações de minorias – como será trabalhado mais adiante.

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É muito importante que as pessoas se apropriem cada vez mais desses conceitos, da história e dos marcos constituídos. Compreender seus papéis sociais e as responsabilidades dos governos e do Estado é essencial para a efetivação e o avanço do processo (dinâmico e complexo) de transformação social.

Após séculos de avanços lentos, o momento do pós Segunda Guerra Mundial (com alta escalada de números de mortes, violências, racismo, genocídio, entre outros horrores) deu um empurrão social para uma aceleração na proteção de direitos mínimos, tanto como forma de direitos fundamentais, quando como humanos.

Diante da compreensão da ausência de regulamentações fortes protetoras de tais direitos anterior a Segunda Guerra, há o surgimento de inúmeras regras acerca da defesa dos Direitos Humanos e da defesa dos Direitos Fundamentais, bem como da acessão de uma cultura, radicalmente, opositora a qualquer tipo de violência.

Mergulhada nesse contexto, a Declaração Universal dos Direitos humanos proclamada em 1948 é reconhecida por ser uma referência básica a todo e qualquer princípio e direito expresso. Visto por sua tentativa de alinhar os países a um compromisso de defesa incondicional do direito de todos a uma vida digna em qualquer contexto que ela se encontre.

Esse contrato é um marco para a humanidade. Apesar de ser uma declaração e não um Tratado ou uma Convenção, sua importância é tamanha que a doutrina amplamente majoritária entende ter força cogente("hard law"), seja pela normatização, seja através do costume normativo. Poucos doutrinadores ainda defendem a ausência de coercibilidade ("soft law") da Declaração Universal dos Direitos humanos.

Neste momento cabe frisar que acompanho a doutrina majoritária, entendendo que o contexto da época de seu surgimento fez com que houvesse um cumprimento de seus preceitos automaticamente (mesmo que não integral ainda), confirmando que virou um costume, se estabelecendo como paradigma dos Direitos Humanos e representando o ideal de mundo e de ser humano. Algo como um processo de mudança necessário para transformar, constantemente, cada contexto de demanda no atender as alteridades do povo.

Frise-se que o Direito aceita o costume como Direito, desde que seja uma prática reiterada (aspecto objetivo) e dotada de convicção de obrigatoriedade (aspecto subjetivo).

Em contraponto ao avanço normativo, surgiram impasses na concretização, com diversos direitos não efetivados ou efetivados insuficientemente. Gerando, inclusive, problemáticas na esfera judicial, com embates nas concepções a favores do Ativismo Judicial e outras contrárias, defensoras da Autocontenção Judicial. Barroso, em defesa do ativismo, fez um resumo no sentido de que o Judiciário tem um papel iluminista, devendo empurrar a sociedade para um futuro melhor e mais justo.

Essa busca tem que ser pelo efetiva e socialmente justo, a fim de evitar uma Justiça dos poderosos. Afastar-se da ideia do filósofo Trasímaco que “Justo é o que favorece o poderoso”.

1.2 – RESERVA DO POSSÍVEL X MÍNIMO EXISTENCIAL

Uma das grandes polêmicas e dificuldades (a serem superadas) se trata da relação fática e concreta entre a reserva do possível e o mínimo existencial. A disponibilidade financeira do Poder Público e a necessidade do básico para a população.

A reserva do possível é a tese de que o Estado tem que prover as necessidades populacionais até o limite financeiro disponível, levando em conta toda a coletividade. Não teria como obrigar o Poder Público fornecer todas as necessidades de todos os administrados, por inviabilizar a existência do próprio Estado, sendo impossível do ponto de vista prático - a obrigação impossível não pode ser exigida.

Em resumo, a reserva do possível é o Estado não ser obrigado a garantir situações supérfluas, além do limite do razoável. Ocorre que a razoabilidade está tanto para garantir a reserva do possível, quanto para afastá-la. E esse afastamento é através, justamente, do mínimo existencial.

O mínimo existencial traduz a ideia de não haver relativização para um núcleo mínimo dos direitos fundamentais, essenciais para a vida humana, em especial, por exemplo, os vinculados aos direitos à saúde e à alimentação.

A falta destes núcleos mínimos leva a uma vida sem dignidade, contrariando a Dignidade da Pessoa Humana e o Estado Democrático de Direito, além de outros valores basilares.

Deve-se estar atento para não se confundir o mínimo existencial com mínimo vital. O primeiro é mais amplo, indo além da mera vida substancial (o mínimo vital). Salomão Ismail Filho2 define:

De fato, o mínimo existencial não trata apenas de garantir ao ser humano um “mínimo vital”, mas um mínimo de qualidade vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no plano individual (perante si mesmo) e social (perante a comunidade onde se encontra inserido).

Herrera e Machado3 afirmam:

O “mínimo existencial” é um conjunto de direitos básicos que integram o núcleo da dignidade da pessoa humana, formados pela seleção dos direitos sociais, econômicos e culturais, e, por terem efetividade imediata, deveriam ser sempre garantidos pelo poder público, independentemente de recursos orçamentários (obstáculo financeiro relativizado.

No mesmo sentido, já decidiu o STJ:

O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na "vida" social.

STJ. Resp Nº 1.185.474 – SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 20/04/2010.

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Ou seja, se, de um lado, a reserva do possível pode limitar a atuação estatal, com a obrigação impossível não podendo ser exigida, devido à insuficiência de recursos orçamentários, do outro, a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, não cabendo ao administrador público preteri-los em suas escolhas.

Atualmente, no Brasil, está consolidado no STF4 o entendimento de que ao reserva do possível tem que ser limitada, pelas peculiaridades do caso concreto, pelo mínimo existencial. Como exemplo, pode-se citar as decisões do STJ5 e do STF6 da necessidade de reforma nos presídios (grifo meu):

Constatando-se inúmeras irregularidades em cadeia pública — superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade para a permanência de presos, notadamente em razão de defeitos estruturais, de ausência de ventilação, de iluminação e de instalações sanitárias adequadas, desrespeito à integridade física e moral dos detentos, havendo, inclusive, relato de que as visitas íntimas seriam realizadas dentro das próprias celas e em grupos, e que existiriam detentas acomodadas improvisadamente —, a alegação de ausência de previsão orçamentária não impede que seja julgada procedente ação civil publica que, entre outras medidas, objetive obrigar o Estado a adotar providências administrativas e respectiva previsão orçamentária para reformar a referida cadeia pública ou construir nova unidade, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.

S TJ. 2ª Turma. REsp 1389952-MT, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 3/6/2014 (Info 543).

É lícito ao Poder Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da CF, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes.

STF. Plenário. RE 592581/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 13/8/2015 (Info 794).

Márcio Calvacante7 detalha brilhantemente os fundamentos do STF e do STJ nos julgados supracitados (grifo meu):

Vejamos os fundamentos que amparam o deferimento do pedido do MP:

Violação a direitos fundamentais

A situação em análise revela clara violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial e à garantia constitucional de que o Poder Público deverá respeitar a integridade física e moral do preso (art. 5º, XLIX, da CF/88).

Quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais.

Nesses casos, não é possível que o Poder Público invoque a discricionariedade administrativa.

Em suma, tanto o STF quanto o STJ reconhecem que, em casos excepcionais, é possível o controle judicial de políticas públicas.

Inexistência de ofensa à separação dos poderes

Não há ofensa ao princípio da separação dos poderes. Isso porque a concretização dos direitos sociais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa.

Seria distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.

Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, não existe empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.

Inexistência de ofensa à previa previsão orçamentária

Não há que se falar em ofensa aos arts. 4º, 6º e 60 da Lei n.°4.320/64 (que preveem a necessidade de previsão orçamentária para a realização das obras em apreço), na medida em que o MP pediu, na ação civil pública, que o Estado incluísse previsão orçamentária para as obras solicitadas. Logo, não se desrespeitou a regra que determina a previsão orçamentária das obras.

Não aplicação da teoria da reserva do possível

Não se pode invocar a teoria da reserva do possível, importada do Direito alemão, como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias.

Realmente as limitações orçamentárias são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada.

Na verdade, o direito alemão construiu essa teoria no sentido de que o indivíduo só pode requerer do Estado uma prestação que se dê nos limites do razoável, ou seja, na qual o peticionante atenda aos requisitos objetivos para sua fruição.

De acordo com a jurisprudência da Corte Constitucional alemã, os direitos sociais prestacionais estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. Ocorre que não se podem importar preceitos do direito comparado sem atentar para Estado brasileiro. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência digna. Por esse motivo, o indivíduo não pode exigir do Estado prestações supérfluas, pois isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica.

Todavia, a situação é completamente diversa nos países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil, onde ainda não foram asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna. Nesse caso, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem razão (supérfluo), pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro.

É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto a um outro princípio, conhecido como princípio do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir.

Por esse motivo, não havendo comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político.

Outro exemplo interessante, didático e de fácil compreensão destes embates, com resolução judicial, trata-se da decisão do STF8 acerca do dever do Estado em proceder a reformas e adaptações necessárias de modo a permitir o acesso de pessoas com restrição locomotora à escola pública, cabendo ainda à Administração o dever em adotar providências que viabilizassem essa acessibilidade. Observou-se que a acessibilidade, quando se tratasse de escola pública, seria primordial ao pleno desenvolvimento da pessoa. A igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, respeita a Dignidade da Pessoa Humana e a busca de uma sociedade justa e solidária.

A base jurídica para essas decisões foram o Decreto 6.949/2009 (plano interno), os artigos art. 205, art. 206, I, e 227, § 2º, da Constituição Federal (plano interno) e da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (plano externo). Frise-se que este Tratado foi incorporado ao cenário normativo brasileiro segundo o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição, tendo status de emenda constitucional.

Compreendeu-se que a reserva do possível não poderia ser usada como fundamento para privar segmentos vulneráveis (pessoas com deficiência) de uma inclusão mínima e básica: o acesso educacional. Se o Estado falha em como inserir tal grupo em um ambiente escolar, como poderia acreditar em qualquer benesse na existência do Estado – em qualquer uma de suas vertentes de fundamento de existência, a exemplo da Teoria do Contrato Social de Locke.

O STF adota a teoria substancialista. Esta define que o Poder Judiciário pode (e deve) intervir em favor dos direitos fundamentais, assumindo um compromisso com os Princípios Constitucionais. Lênio Luiz Streck9 define:

“Na perspectiva substancialista, concebe-se ao Poder Judiciário uma nova inserção no âmbito das relações dos Poderes de Estado, levando-o a transcender as funções de Checks and Balances”.

Vale a pena trazer a ementa do STJ10 detalhando a relação entre a reserva do possível e o mínimo existencial, destrinchando detalhadamente todo o debatido neste capítulo. Destaca-se que é entendimento reiterado, citando precedentes do STF e do STJ. Cita-se (grifo meu):

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – ACESSO À CRECHE AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS – DIREITO SUBJETIVO – RESERVA DO POSSÍVEL – TEORIZAÇÃO E CABIMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO COMO TESE ABSTRATA DE DEFESA – ESCASSEZ DE RECURSOS COMO O RESULTADO DE UMA DECISÃO POLÍTICA – PRIORIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – CONTEÚDO DO MÍNIMO EXISTENCIAL – ESSENCIALIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO – PRECEDENTES DO STF E STJ.

1. A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est - Celso, D. 50, 17, 185). Por tal motivo, a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia.

2. Todavia, observa-se que a dimensão fática da reserva do possível é questão intrinsecamente vinculada ao problema da escassez. Esta pode ser compreendida como "sinônimo" de desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos e, justamente por isso, devem ser distribuídos segundo regras que pressupõe o direito igual ao bem e a impossibilidade do uso igual e simultâneo.

3. Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade.

4. É por esse motivo que, em um primeiro momento a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preterí-los em suas escolhas. Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restinge na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a Democracia.

5. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial.

6. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na "vida" social.

7. Sendo assim, não fica difícil perceber que dentre os direitos considerados prioritários encontra-se o direito à educação. O que distingue o homem dos demais seres vivos não é a sua condição de animal social, mas sim de ser um animal político. É a sua capacidade de relacionar-se com os demais e, através da ação e do discurso, programar a vida em sociedade.

8. A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu traço característico, o relacionamento com os demais em um espaço público - onde todos são, in abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da capacidade para a ação e o discurso do que em virtude de atributos biológicos - é que torna a educação um valor ímpar. No espaço público - onde se travam as relações comerciais, profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce a cidadania - a ausência de educação, de conhecimento, em regra, relega o indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das forças físicas para continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias.

9. Eis a razão pela qual o art. 227 da CF e o art. 4º da Lei n. 8.069/90 dispõem que a educação deve ser tratada pelo Estado com absoluta prioridade. No mesmo sentido, o art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve que é dever do Estado assegurar às crianças de zero a seis anos de idade o atendimento em creche e pré-escola. Portanto, o pleito do Ministério Público encontra respaldo legal e jurisprudencial. Precedentes: REsp 511.645/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 18.8.2009, DJe 27.8.2009; RE 410.715 AgR / SP - Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 22.11.2005, DJ 3.2.2006, p. 76.

10. Porém é preciso fazer uma ressalva no sentido de que mesmo com a alocação dos recursos no atendimento do mínimo existencial persista a carência orçamentária para atender a todas as demandas. Nesse caso, a escassez não seria fruto da escolha de atividades não prioritárias, mas sim da real insuficiência orçamentária. Em situações limítrofes como essa, não há como o Poder Judiciário imiscuir-se nos planos governamentais, pois estes, dentro do que é possível, estão de acordo com a Constituição, não havendo omissão injustificável.

11. Todavia, a real insuficiência de recursos deve ser demonstrada pelo Poder Público, não sendo admitido que a tese seja utilizada como uma desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os de cunho social. No caso dos autos, não houve essa demonstração. Precedente: REsp 764.085/PR, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 1º.12.2009, DJe 10.12.2009.

STJ. Resp Nº 1.185.474 – SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 20/04/2010.

A análise entre a reserva do possível e o mínimo existencial é algo muito complexo, gerando recorrentemente (e infelizmente) descaso governamental na efetivação dos direitos, fundamentando-se na impossibilidade financeira.

Diante desses irrefutáveis e odiosos fatos, urge a necessidade de estudar a origem dos direitos humanos e fundamentais, verificando como ocorreram as inserções desses direitos no âmbito externo e interno e analisar quais são os principais obstáculos que impedem a concretude e efetividade dos direitos.

Além disso, para solucionar essa questão, deve-se entender e valorar valores primordiais, como a valorização da vida e do regime democrático o discernimento das variações culturais, as maneiras de vida e necessidades dos diferentes segmentos sociais, o entendimento operacional das instituições políticas e a ordenação da sociedade civil e acompanhamento do andamento do Estado.

Em suma, a reserva do possível é o limite para se impor ao Estado toda e qualquer prestação, com base em análise do razoável e não supérfluo. Contudo, tal instituto não pode ser usado como argumento abstrato, alheio ao caso concreto ou aos direitos fundamentais. Assim, o mínimo existencial limita o uso da reserva do possível, sendo o limite do limite, a fim de garantir o núcleo mínimo dos direitos fundamentais.

Recentemente, há poucos meses, o STF deu uma decisão estrutural sobre como o Poder Judiciário deve atuar em relação a ineficiência estatal em cumprir direitos essenciais e positivados. Foram estabelecidos parâmetros para nortear as decisões judiciais a respeito de políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais (grifo meu):

a) Em primeiro lugar, é necessário que esteja devidamente comprovada nos autos a ausência ou grave deficiência do serviço público, decorrente da inércia ou excessiva morosidade do Poder Público. Quando os Poderes Legislativo e Executivo descumprem seus deveres institucionais, o Poder Judiciário estará autorizado a servir de alerta para que estes exerçam suas atribuições.

b) Em segundo lugar, no atendimento dos pedidos formulados pelo autor da demanda, deve-se observar a possibilidade de universalização da providência a ser determinada, considerados os recursos efetivamente existentes, que são finitos e insuficientes ao atendimento de todas as necessidades sociais, impondo ao Estado a toma de decisões difíceis. Assim, o órgão julgador deverá questionar se é razoável e faticamente viável que aquela obrigação seja universalizada pelo ente público devedor. Na hipótese em análise, por exemplo, caberia ao Tribunal de Justiça examinar se seria possível ao Município do Rio de Janeiro implementar as obrigações impostas também em outras unidades de saúde que estejam em condição similar à do Hospital Salgado Filho.

c) Em terceiro lugar, cabe ao órgão julgador determinar a finalidade a ser atingida, mas não o modo como ela deverá ser alcançada, privilegiando medidas estruturais de resolução de conflito. Estabelecida a meta a ser cumprida, diversos são os meios com os quais se pode implementá-la, cabendo ao administrador optar por aquele que considera mais pertinente e eficaz. Trata-se de um modelo “fraco” de intervenção judicial em políticas públicas, no qual, apesar de indicar o resultado a ser produzido, o Judiciário não fixa analiticamente todos os atos que devem ser praticados pelo Poder Público, preservando, assim, o espaço de discricionariedade do mérito administrativo. No exemplo dos autos, constatado o déficit de profissionais de saúde, caberia ao Judiciário determinar que a irregularidade seja sanada. No entanto, cabe ao Poder Executivo Municipal decidir se suprirá tal deficiência, por exemplo, mediante a realização de concurso público, por meio do remanejamento de recursos humanos ou a partir da celebração de contratos de gestão e termos de parceria com organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).

d) Em quarto lugar, a que se considerar a ausência de expertise e capacidade institucional da atuação judicial na implementação de política pública. O Judiciário não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde, de modo que, para atenuar isso, a decisão judicial deverá estar apoiada em documentos ou manifestações de órgãos técnicos, que podem acompanhar a petição inicial ou compor a instrução processual. No caso dos autos, por exemplo, deveria ter sido pensado em um plano para correção das irregularidades no Hospital Municipal Salgado Filho, que garantisse um mínimo existencial para o atendimento da população, respeitando, assim, o direito à saúde e à dignidade humana e, ao mesmo tempo, considerasse a situação das demais unidades de saúde sob responsabilidade do Município, para as quais os recursos orçamentários e esforços administrativos também devem ser orientados. O plano poderia ser elaborado diretamente pela Administração Pública Municipal – e, posteriormente, homologado pelo Tribunal de Justiça local – ou desenvolvido em conjunto entre os dois Poderes.

e) Em quinto lugar, sempre que possível, o órgão julgador deverá abrir o processo à participação de terceiros, com a admissão de amicicuriae e designação de audiências públicas, permitindo a oitiva não apenas dos destinatários da ordem, mas também de outras instituições e entidades da sociedade civil. Tais providências contribuem não apenas para a legitimidade democrática da ordem judicial como auxiliam a tomada de decisões, pois permitem que o órgão julgador seja informado por diferentes pontos de vista sobre determinada matéria, contribuindo para uma visão global do problema. Além disso, uma construção dialógica da decisão favorece a sua própria efetividade, uma vez que são maiores as chances de cumprimento, pelo Poder Público, de determinações que ele próprio ajudou a construir.

STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).

Márcio Calvacante11 explicita muito bem o julgado (grifo meu):

O caso concreto foi o seguinte:

Em 2003, o Ministério Público do Rio de Janeiro ajuizou ação civil pública em face do Município do Rio de Janeiro apontando péssimas condições de estrutura e atendimento do Hospital Municipal Salgado Filho.

Na ação, o Parquet formulou os seguintes pedidos:

(i) abertura de concurso público para o provimento dos cargos vagos na área da saúde, a fim de suprir o déficit de pessoal apontado;

(ii) que os servidores aprovados nesse concurso fossem lotados, especificamente, no Hospital Municipal Salgado Filho;

(iii) que fossem sanadas, pela Administração municipal, todas as irregularidades apontadas com relação ao referido hospital.

A ação civil pública se fundamentou em informações colhidas no âmbito de inquérito civil, deflagrado a partir de relatório de fiscalização realizado pelo Conselho Regional de Medicina – CREMERJ.

Além do déficit de 283 profissionais à época, o relatório apontou irregularidades de diversas naturezas, a exemplo da ausência de vedação dos recipientes coletores de lixo, cruzamento de material estéril com contaminado e falta de manutenção e substituição de equipamentos.

O pedido foi julgado improcedente em 1ª instância.

Segundo o magistrado, não seria possível a sindicabilidade jurisdicional de políticas públicas, frente ao princípio da separação dos poderes. Em outras palavras, não seria possível que o Poder Judiciário interferisse nas políticas públicas definidas e implementadas pelo Poder Executivo. O termo “sindicabilidade” deriva do verbo “sindicalizar”, que, neste contexto, significa submeter a exame ou revisão.

O Ministério Público recorreu e o TJ/RJ deu provimento à apelação e determinou ao Município:

i) o suprimento do déficit de pessoal, especificamente por meio da realização de concurso público de provas e títulos para provimento dos cargos de médico e funcionários técnicos, com a nomeação e posse dos profissionais aprovados no certame; e

ii) a correção dos procedimentos e o saneamento das irregularidades expostas no relatório do Conselho Regional de Medicina, com a fixação de prazo e multa pelo descumprimento.

Inconformado, o Município interpôs recurso extraordinário.

Vejamos com calma o que decidiu o STF.

Direito à saúde

A CF/88 reconheceu o direito à saúde como direito social fundamental, conferindo-lhe grau de relevância e destaque absolutamente distinto das normativas constitucionais anteriores.

A constitucionalização desse direito e a sua elevação ao status de direito fundamental fizeram com que se conferisse à saúde o mais alto grau de importância e de força normativa.

Em outras palavras, à luz da normativa constitucional em vigor, não basta que o direito à saúde seja uma promessa, é necessário que o Estado garanta, por meio de políticas públicas, a sua concretização.

Nesse contexto, ao Poder Público incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça variadas prestações concernentes ao direito à saúde, tem procurado realizar a promessa constitucional de sua prestação universalizada.

No entanto, excessos voluntaristas e a falta de critérios objetivos que geram indesejada imprevisibilidade da prestação jurisdicional colocam em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos.

A atuação casuística do Poder Judiciário atende às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, pode interferir nas possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública.

Além disso, a atuação judicial em demandas individuais acaba por colocar em posição de vantagem aqueles que pertencem às classes mais favorecidas.

De fato, nessas hipóteses, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial.

Mesmo admitindo que a judicialização é uma circunstância atual e mesmo inevitável da vida brasileira, em matéria de direito à saúde ela não pode ser vista como meio natural de se definirem políticas públicas.

É mais adequado que sejam definidos direitos e obrigações por via legislativa e administrativa, de modo que os litígios sejam residuais e não de massa.

Nesse cenário, o que se necessita nessa matéria é estabelecer parâmetros para que a atuação do Judiciário possa se pautar por critérios de racionalidade e de eficiência. É a falta de critérios universais que tem tornado o sistema disfuncional e desigual.

Acabou se tornando verdadeiro senso comum de que o Poder Judiciário, quando se depara com casos nos quais se discutem certas questões do direito à saúde – e.g. fornecimento de certo medicamento ou custeio de um tratamento para a parte –, faria uma ponderação entre o direito à vida e à saúde, de um lado, e princípios orçamentários, separação de poderes e reserva do possível, do outro lado. Isso, todavia, não é verdade. O que o Judiciário verdadeiramente pondera é direito à vida e à saúde de uns contra o direito à vida e à saúde de outros. Portanto, não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nesta matéria.

Parâmetros para a intervenção judicial em políticas públicas de saúde

A atuação do Poder Judiciário em matéria de concretização de direitos sociais é permeada por complexidades e críticas.

Contudo, em cenários em que a inércia administrativa frustra a realização de direitos fundamentais, não há como negar ao Poder Judiciário algum grau de interferência para a implementação de políticas públicas. Negar a possibilidade de atuação jurisdicional nessa matéria equivaleria a negar a própria efetividade do direito social constitucionalmente assegurado, retornando à ultrapassada ideia de que tais direitos seriam normas meramente programáticas ou principiológica.

(...)

Em Resumo: Na hipótese de ausência ou deficiência grave do serviço, a intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais não viola o princípio da separação dos Poderes (art. 2º, CF/88), devendo a atuação judicial, via de regra, indicar as finalidades pretendidas e impor à Administração Pública a apresentação dos meios adequados para alcançá-las.

STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).

Vejam as teses fixadas pelo STF:

1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos Poderes.

2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado;

3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).

STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).

Analisando especificamente o caso concreto

Levando em conta tais parâmetros, o STF entendeu que a intervenção casuística do Poder Judiciário, definindo a forma de contratação de pessoal e da gestão dos serviços de saúde, coloca em risco a própria continuidade das políticas públicas, já que desorganiza a atividade administrativa e compromete a alocação racional dos escassos recursos públicos.

A participação judicial deve ocorrer em situações excepcionais e ser pautada por critérios de razoabilidade e eficiência, respeitada a discricionariedade do administrador em definir e implementar políticas públicas.

No caso em análise, o acórdão recorrido do TJ/RJ reconheceu a omissão específica do Município do Rio de Janeiro no cumprimento de seu dever constitucional de garantir o direito à saúde, em razão das precárias condições do Hospital Municipal Salgado Filho.

Nesse cenário, a intervenção do Poder Judiciário visa a garantir o mínimo existencial relativo ao direito à saúde, intimamente vinculado ao direito à vida e ao princípio da dignidade humana.

No entanto, as providências determinadas pelo Tribunal de Justiça não se alinham aos parâmetros de atuação aqui propostos, uma vez que não se limitam a indicar a finalidade a ser atingida. Na visão do STF, o TJ/RJ interferiu fortemente no mérito administrativo ao determinar, por exemplo, a contratação de pessoal via concurso público e a sua lotação em determinado hospital da rede municipal de saúde.

Além disso, a ação foi proposta em abril de 2003 e o acórdão recorrido proferido em maio de 2006. Logo, para o STF era necessário examinar se, quase 20 anos depois, as irregularidades indicadas na inicial e as medidas determinadas pelo acórdão recorrido ainda atendem à atual realidade do Hospital Salgado Filho.

Diante do exposto, o STF deu parcial provimento ao recurso extraordinário do Município para anular o acórdão do TJ e determinar o retorno dos autos à origem, para novo exame da matéria, de acordo com as circunstâncias fáticas atuais do Hospital Municipal Salgado Filho e com os parâmetros fixados.

Assim, percebe-se que a reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de autorizar determinação judicial para obrigar o Estado a cumprir seu papel, sempre de forma dialógica, buscando analisar universalização dos direitos, respeitar a discricionariedade administrativa (desde que não gere arbitrariedade ou esvaziamento do próprio direito), garantir uma democracia efetiva com participação de toda a sociedade e fundamentando-se em análises técnicas e periciais.

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Sobre o autor
Wilkson Vasco Francisco Lima Barros

Delegado de Polícia de Sergipe Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós graduado em Direito Constitucional e em Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Wilkson Vasco Francisco Lima. A relação entre os direitos fundamentais e os direitos humanos.: Uma análise à luz da República Federativa do Brasil de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7480, 24 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106777. Acesso em: 22 dez. 2024.

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