1INTRODUÇÃO
Este artigo tem como principal objetivo a abordagem da teoria da tripartição dos poderes inserida na dinâmica de "checks and balances", bem como a tipicidade e atipicidade funcional de cada um dos três poderes sob a perspectiva do Estado Democrático de Direito.
Os principais doutrinadores e filósofos da Teoria Geral do Estado acreditam que o princípio da separação dos poderes tem importância fundamental para o surgimento e manutenção dos Estados Liberais. É pertinente ressaltar que a tripartição delineada por Montesquieu tinha, precipuamente, o escopo de estabelecer um mecanismo alternativo de governança em um contexto no qual imperava o absolutismo e a concentração de poder em uma parcela significativa das nações européias.
É irrefutável o fato de que Montesquieu desenvolveu a mais notável teoria da separação de poderes. Entretanto, antes de Montesquieu, no período da Antiguidade Clássica, Platão e Aristóteles haviam esboçado um modelo inicial para a configuração tripartite que se verifica contemporaneamente. Além deles, o filósofo inglês John Locke também idealizou uma decomposição da soberania que enfraquecesse o poder uno dos monarcas.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Para compreender a complexidade e funcionalidade da teoria da separação de poderes tal como se verifica nos dias de hoje, é necessário regressar à época em que foram arquitetadas as primeiras ideias acerca do tema. É inegável que a Antiguidade Clássica foi o período histórico da mais intensa reflexão filosófica e, com isso, vários tópicos — inclusive o tema do presente artigo — foram contemplados pelos pensadores do período.
2.1 ANTIGUIDADE CLÁSSICA
2.1.1 PLATÃO
Nos primórdios da civilização, Platão, em sua obra "A República", idealizou uma cidade sistematicamente organizada, levando-se em consideração as aptidões específicas de cada classe. A concepção platônica concebia uma fragmentação que colaboraria para o funcionamento pleno da sociedade.
A divisão estabelecida por Platão concebia três classes distintas: a classe econômica, a classe militar e a classe dos magistrados. A primeira classe era formada por artesãos, comerciantes, proprietários de terra e mercadores, e seria a responsável por garantir a sobrevivência material da sociedade. À essa classe estaria associada à parte apetitiva ou concupiscente da alma, segundo a teoria platônica da tripartição da alma. A segunda classe delineada por Platão — a classe militar — era formada pelos guerreiros, que seriam responsáveis pela defesa da cidade. Aos guerreiros estaria associada à parte irascível da alma. Por fim, a terceira classe — dos magistrados — formada por filósofos, sábios e legisladores, seria responsável pelo governo. Nos governantes prevaleceria a parte racional da alma.
Essa primitiva e utópica repartição funcional estabelecida por Platão pode ser considerada o embrião para a posterior emergência de teorias acerca da separação de poderes. Depois do ponto de partida estabelecido pelo filósofo grego, outras teorias surgiram e contribuíram para o aperfeiçoamento do modelo tripartite que se verifica atualmente em grande parte dos Estados.
2.1.2 ARISTÓTELES
Aristóteles, discípulo de Platão, esboçou sua teoria sobre o tema da separação dos poderes na obra "A Política". A reflexão política aristotélica tinha como finalidade o estabelecimento das formas de governo que garantissem a eudaimonia, conceito que se assemelha a felicidade. Para isso, o filósofo endossou a tese platônica de que a concentração de poderes era prejudicial e maléfica para a coletividade, postulando, posteriormente, seu entendimento acerca da divisão de poderes.
Para Aristóteles um governo ideal deveria ter como aspecto basilar uma tripartição dos poderes. Os três poderes inerentes ao Estado seriam: o Poder Executivo, o Poder Judiciário e Poder Deliberativo. É importante ressaltar inicialmente que essa divisão se aproxima muito do cenário atual da repartição de poderes, tendo como distinção básica a nomenclatura e algumas funcionalidades do Poder Legislativo.
O Poder Executivo seria formado pelos magistrados, que deveriam ser escolhidos por um processo relativamente complexo, tendo em vista a importância de sua função. Endossando sua tese da inviabilidade da concentração de poderes, Aristóteles defendia que os membros do poder executivo exercessem as atribuições de seu cargo por um período transitório, evitando assim, a perpetuação do poder. As ações dos membros do executivo seriam orientadas pelas deliberações da Assembleia.O Poder Judiciário seria formada pelos juízes, responsáveis diretos pela concretização da justiça, que na concepção aristotélica seria um bem político.
As dissertações do filósofo sobre o poder judiciário também incluíam as diferentes espécies de juízes existentes e as eventuais formas pelas quais estes seriam escolhidos.
Além dos dois poderes anteriormente citados, Aristóteles também determinava a existência de um Poder Deliberativo. A função específica desse órgão seria a deliberação acerca dos negócios do Estado, tais como as alianças, leis e sanções. Teria um funcionamento análogo ao do Poder Legislativo nos dias atuais. A prestação de contas aos magistrados que governavam o Estado era uma condição inerente à função. Além disso, pode-se dizer também que as deliberações ocorriam nas Assembléias e eram abertas à participação popular, o que consequentemente, concederia uma soberania natural ao corpo deliberativo.
Para Aristóteles a especialização e independência de cada um dos poderes concederia otimização às atividades do Estado através da partilha do exercício do poder. Um governo com as características explicitadas pelo estagirita seria fundamental para a felicidade coletiva e para a busca da justiça.
2.2 JOHN LOCKE
Outro grande ícone da teoria da separação dos poderes foi o filósofo inglês John Locke. A interpretação mais aceita do postulado lockiano estabelece uma fragmentação binária do poder. Entretanto, há uma corrente que concede ao Poder Federativo caráter similar àquele que possuem os Poderes Executivo e Legislativo, delineando assim uma tripartição dos poderes.
O Poder Executivo para Locke seria um poder permanente e teria a prerrogativa de convocar o Poder Legislativo para o exercício de suas atribuições. A responsabilidade principal do executivo seria a própria execução das leis do Estado com a finalidade de alcançar o bem público.
O Poder Legislativo era considerado o poder supremo na concepção de John Locke exatamente por ser outorgado pelos cidadãos. Possuía natureza transitória, ou seja, era dotado de provisoriedade, com reuniões periódicas nas quais se realizariam deliberações acerca das leis e de outros assuntos de interesse do Estado. Entre as atribuições do Poder Legislativo estão a promulgação de leis permanentes, a busca do bem comum e a garantia da propriedade (direito natural) aos indivíduos. Para Locke, a função do órgão legislativo é indelegável.
O Poder Federativo é aquele que eventualmente é considerado como o terceiro poder delineado por John Locke. Na verdade, o Poder Federativo encontra-se inserido no Poder Executivo e teria, fundamentalmente, função voltada para questões externas da comunidade, tais como declaração de guerra, concretização de acordos com outras nações e formação de alianças em âmbito internacional. A preocupação do órgão federativo com as questões externas permitia que o Poder Executivo se preocupasse com a administração interna, otimizando a organização social.
2.3 MONTESQUIEU
Mesmo diante da evidente relevância histórica dos pensadores anteriormente abordados é possível dizer, seguramente, que a teoria da divisão de poderes mais respeitada e difundida foi arquitetada pelo filósofo francês Charles-Louis de Secondat ou, simplesmente, Montesquieu.
A teoria de Montesquieu baseava-se na tripartição dos poderes do Estado como forma de escapar da tirania decorrente do absolutismo. A divisão do teórico francês abrangia, basicamente, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O Poder Executivo seria exercido pelo regente ou monarca, que cumpriria com as funções administrativas e executórias. A legitimidade era aspecto fundamental é inerente à ocupação do cargo, tendo em vista sua significativa relevância para o pleno funcionamento do Estado.
O Poder Legislativo teria caráter binário, sendo subdividido em Câmara Alta e Câmara Baixa — as chamadas Câmaras Parlamentares. Esta seria formada pelos representantes escolhidos pelo povo enquanto aquela seria composta por membros da nobreza. Essa divisão do Poder Legislativo tinha como intuito principal o controle e a fiscalização recíproca, visando aprimorar a atividade legislativa.
O terceiro poder seria o Judiciário, órgão responsável pela jurisdição do Estado, aplicando as leis previamente criadas pelos outros dois poderes. Em sua tese, Montesquieu atribuía caráter periódico ao Poder Judiciário, estabelecendo que, quando necessário, se formaria um tribunal com representantes do povo para julgar o mérito das questões em litígio. Há quem diga que Montesquieu não considerava efetivamente o Judiciário como um dos poderes exatamente por ter natureza temporária.
2.3.1 RELAÇÃO ENTRE OS PODERES
Na visão de Montesquieu, a simples divisão do poder anteriormente monocrático do rei não seria condição suficiente para o estabelecimento de um governo ideal. Seria necessário criar um mecanismo através do qual os poderes se relacionassem. Era o ponto de partida para a consagração do princípio dos "checks and balances" ou "freios e contrapesos".
Para completar sua tese da separação tripartite dos poderes, Montesquieu ressaltou que o acúmulo de funções em um mesmo poder causaria um enorme desequilíbrio. Em sentido contrário, o que se buscava era exatamente um equilíbrio entre os órgãos, de modo que as funções exercidas por cada um dos poderes fosse complementar. Esse equilíbrio seria concedido pelo princípio dos freios e contrapesos.
A ideia central desse princípio seria o "controle do poder pelo poder". Dessa forma, Montesquieu estabeleceu como características essenciais à cada poder a autonomia e a independência. A fiscalização recíproca coibiria os abusos e seria capaz de promover a harmonização entre os poderes.
3 DIVISÃO DE PODERES
Pode-se dizer que poder resume-se na possibilidade de controle social, porém a luta por esse controle as vezes é extrapola os limites e dá vez ao que pode ser considerado como autoritarismo, quando assim ultrapassa os limites demarcados pela lei. Para se evitar a ocorrência desse abuso do poder ocorre a necessidade de um sistema de “check and balances” (freios e contrapesos) para conferir harmonia aos poderes do Estado (legislativo, executivo e judiciário).
Essa harmonia se deve ao fato de não poder considerar os poderes dos três sistemas como estanques, mas sim como parte de uma unidade. Ou seja, não se deve prezar por uma divisão do poder mas numa divisão no exercício do poder como um todo. Como modo de equilíbrio dos poderes pode-se verificar a existência das funções atípicas de cada sistema. Ou seja, trata-se de quando determinada função governamental não se exime unicamente na função ou de executar, legislar ou julgar.
Primeiramente cabe ressaltar que a forma como se dividem os poderes leva em conta dois elementos fundamentais: a independência e a especialização. A independência se refere ao fato de que não se pode subordinar um poder ao outro. Já a especialização refere-se ao exercício de uma atividade especifica por cada órgão.
4 FUNÇÃO TÍPICA E ATÍPICA
Dentro dessa determinação de funções esta a tipicidade e a atipicidade no exercício da função pelo órgão. A função típica é aquela realizada com mais freqüência e também é o foco de determinando poder. Por exemplo, o poder legislativo possui como função típica a de elaboração de leis.
Considera-se como função atípica aquela na qual determinado poder extrapola sua especialidade e exerce uma função que remete a especialidade de outro poder como se da no caso em que o Poder Legislativo julgar (função típica do judiciário ) seus membros no caso de irresponsabilidade.
4.1 NO EXECUTIVO
Sabe-se que a função típica do poder executivo está na chefia do Estado, do governo e da administração publica no geral. Sua organização está regulada entre os artigos 76 a 91 da constituição federal de 1988 e figura-se como principal o papel do Presidente da Republica que é chefe de estado e de governo.
Já no que diz respeito a sua função atípica pode-se identificar a de natureza legislativa, que se dá pela edição de medidas provisórias com força de lei, regulada pelo artigo 62 da CF/88, que prevê; ”Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.
Já a de natureza jurisdicional está no julgamento do contencioso administrativo.
4.2 NO LEGISLATIVO
A função típica do poder legislativo é a de legislar, de fiscalizar via CPIs além de funções contábeis financeiras, orçamentárias e patrimoniais referentes ao Estado.
Já a função atípica do poder legislativo, de natureza executiva, é a definição de sua própria organização, no que diz respeito ao provimento de cargos e no gerenciamento dos servidores.
Sua função atípica de caráter jurisdicional está no julgamento pelo senado de crimes de responsabilidade segundo regimento do artigo 52 da constituição federal de 1988, que prevê em seu inciso I e II;
“Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;
II processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade“.
4.3 PODER JUDICIÁRIO
Sabe-se que a função típica do poder judiciário é a de julgar. Já no que diz respeito as suas funções atípicas pode-se reconhecer que a de natureza legislativa está na elaboração do regimento interno dos tribunais, como descrito no artigo 96 da constituição federal de 1988, que prevê que;
“Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.
Já sua função atípica de natureza executiva está no provimento de cargos aos magistrados bem como concessão de férias e outras questões administrativas como prevê o restante do artigo 96;
“b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;
c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;
d) propor a criação de novas varas judiciárias;
e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;
f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados”.
5 CONCLUSÃO
Como analisado no principio do presente artigo, Montesquieu a luz da inspiração de John Locke mostrou ser necessário conectar as funções estatais visto que essa seria as maneiras mais eficientes para manter a autonomia que lhes devem ser conferidas para o exercício correto de suas funções típicas. Nesse contexto então surge a teoria do “checks and balances”, traduzida pelo português como teoria dos freios e contrapesos. Essa teoria se mostra fundamental pois possibilita o controle do poder pelo poder, ou seja, o poder delegado a cada um dos três órgãos (que constitui um poder só) encontra-se diluido e organizado para que um não esteja sobreposto ao outro mas que atuem de forma conjunto e equilibrada e para que não haja o abuso de competência configurando talvez um viés autoritário.
Pode-se concluir que, seguindo o sistema de freios e contrapeso em busca de uma divisão dos poderes mais eficiente e que seja capaz de garantir a especialidade e a independência entre os poderes, as funções atípicas desempenhadas pelos próprios órgãos executivo, legislativos e judiciários se torna fundamental pela manutenção dessa divisão justa. Haja visto que, caso não existissem, seria necessário a convocação de um poder para atuar em questões de outro poder, podendo haver assim uma sobreposição entre eles o que iria de encontro ao equilíbrio que se busca na divisão dos poderes.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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GOUGH, J. W. A separação de poderes e soberania, in: O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. Organização, introdução e notas de Célia Galvão Quirino e Maria Teresa Sadek R. de Souza. São Paulo,: T. A. Queiroz Editor,1992.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Trad. Alex Marins, São Paulo. Martin Claret: 2003.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. Introdução, trad. e notas de Pedro Vieira Mota. 7ª ed. São Paulo. Saraiva: 2000.
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PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri, São Paulo: Nova Cultural, 2004.
______. Separação de Poderes e Garantia de Direitos. Revista Consulex, p. 24. ano XI 31 jul. 2007