Capa da publicação Responsabilidade pela perda de uma chance no campo civil e trabalhista
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A responsabilidade civil pela perda de uma chance nas relações jurídicas civis e do trabalho

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7. A EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA ACERCA DA EXISTÊNCIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE:

Segundo o estudo realizado por Rafael Pettefi da Silva[34], as primeiras manifestações a respeito da perda de uma chance em domínios brasileiros ocorreram no Rio Grande do Sul, em acórdãos prolatados pelo então desembargador Ruy Rosado de Aguiar Junior. O autor afirma que o pioneirismo gaúcho na “aplicação consciente” da teoria deve-se a uma palestra proferida pelo professor François Chabas, em 23.05.1990, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulada “La perte d’une chance en droit français”. E acrescenta que o jurista paranaense Miguel Kfouri Neto ratificou esse dado.

Nos últimos anos, a jurisprudência brasileira evoluiu reconhecendo a existência da responsabilidade civil em decorrência da perda de uma oportunidade, em outras pretensões de naturezas distintas.

Atualmente, os tribunais estaduais possuem inúmeros julgados reconhecendo a indenização pela perda de uma chance. Todavia, ainda não resta pacificada a classificação dada à natureza jurídica da teoria.

Em recente decisão proferida pela Primeira Turma Recursal Cível do Estado do Rio Grande do Sul, foi apreciado o pedido de indenização de um competidor de “Down hill” - modalidade de esporte praticado com bicicletas estilo “mountain bike” - em face da companhia transportadora de ônibus que se recusou a despachar as bagagens em razão de o bagageiro estar lotado, tendo os competidores que esperar por outro ônibus e o que gerou um atraso para a inscrição da etapa classificatória da competição.

O acórdão condenou a ré ao pagamento de uma indenização por danos morais “seja pela perda de uma chance de melhor resultado no campeonato, seja pelo efetivo padecimento psíquico que a frustração de parte do objeto do contrato de transporte foi certamente apta a provocar”[35]

De outro lado, há decisões que classificam o dano da chance perdida como sendo uma espécie de lucros cessantes, como é o caso de uma demanda do Estado do Rio de Janeiro na qual, em síntese, a autora objetivava receber uma indenização pela vantagem não obtida de um contrato de franquia, em razão da rescisão unilateral da outra empresa contratante. Assim concluiu a relatora:

Enquanto os lucros cessantes reintegram aquilo que o sujeito razoavelmente deixou de lucrar; a perda da chance foca o ressarcimento na perda de uma oportunidade com grande potencial de vir a se realizar, causada pela intervenção ilícita de outrem, mas aferível independentemente do possível resultado. A perda da chance, portanto, é espécie do gênero lucros cessantes e sob tal ótica deve ser aqui contemplada[36]

Vale ressaltar ainda outra classificação da natureza jurídica da perda de uma chance proveniente de uma decisão do tribunal paulista que julgou a clássica situação de perda de prazo do advogado. O relator sustentou que a autora sofreu o dano da perda de uma chance, mas afirmou não ter ela sofrido dano material, já que “a perda de uma probabilidade não caracteriza dano emergente ou lucro cessante”, tampouco dano moral, pois o descumprimento do mandato não caracteriza “ofensa séria à dignidade da autora a justificar um sofrimento extraordinário”, não enquadrando este dano em gêneros já existentes[37].

Verifica-se da análise destes julgados a alternância da classificação da natureza jurídica do dano da chance perdida na jurisprudência, ora classificando-a como espécie de lucro cessante, ora de dano moral e ainda em um meio termo entre as espécies já existentes.

Oportuno se faz trazer alguns julgados sobre a aplicação da teoria,  proferidos de Tribunais Estaduais, Tribunais Federais e Tribunais Superiores:

RESPONSABILIDADE OBJETIVA AMBIENTAL - TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - PERDA DE UMA CHANCE. (...). A responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação. (...). Repara-se por força do Direito Positivo e, também, por um princípio de Direito Natural, pois não é justo prejudicar nem os outros e nem a si mesmo. Facilita-se a obtenção da prova da responsabilidade, sem se exigir a intenção, a imprudência e a negligência para serem protegidos bens de alto interesse de todos e cuja lesão ou destruição terá consequências não só para a geração presente, como para a geração futura. Nenhum dos poderes da República, ninguém, está autorizado, moral e constitucionalmente, a concordar ou a praticar uma transação que acarrete a perda de chance de vida e de saúde das gerações. (STJ - REsp 745363/PR – Rel. Min. Luiz Fux – Publ. em 20-9-2007)

ADVOGADO - RESPONSABILIDADE CIVIL - OBRIGAÇÃO DE MEIO - TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. (...) A denominada “teoria da perda de uma chance", de inspiração francesa, empresta suporte jurídico para indenizações em caso de frustração de demandas judiciais devido ao desleixo profissional de advogados lenientes, contanto que estejam configuradas, de modo preciso, a seriedade da probabilidade dos ganhos e sua relação de causalidade direta com os atos desidiosos. À luz da "teoria da perda de uma chance", que elastece os contornos dos lucros cessantes, o atendimento do pleito indenizatório está adstrito não apenas à comprovação de que os serviços advocatícios deixaram de ser prestados segundo parâmetros razoáveis de qualidade. Exige também a comprovação de que o autor da demanda efetivamente titularizava os direitos pleiteados e que a repulsa judicial derivou das faltas técnicas atribuídas aos serviços advocatícios. (TJ-DFT- Ap. Cív. 20040111230184 – Rel. Des. Jaime Eduardo Oliveira – Publ. em 26-7-2007)

SORTEIO - EXCLUSÃO DE PARTICIPANTE - TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE - DANO MORAL CONFIGURADO. Não tendo o requerido comprovado a existência de fato extintivo do direito da autora em participar da segunda fase do sorteio por ele promovido, necessário o reconhecimento do dano extrapatrimonial, face à frustração em participar do sorteio objeto desta demanda. Aplicável, ao caso, a Teoria da Perda de uma Chance. [...] (TJ-RS - Ap. Cív. 70.020.549.648 – Acórdão COAD 124762 - Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack - Publ. em 4 3 2008)

Da análise dos julgados pode-se afirmar que há equívocos cometidos por parte da doutrina e da jurisprudência pátria ao classificar erroneamente o dano da chance perdida e, por conseguinte, arbitrar o valor da indenização com base em critérios incoerentes com a natureza jurídica da teoria.

Alguns exemplos elucidativos dão conta das diferentes situações em que se perde uma chance: observe-se, por exemplo, os danos gerados nos casos em que o advogado perde o prazo para recorrer, ou que o participante deixou de concorrer a um certame pela conduta culposa de outrem.

Nestas hipóteses, o processo aleatório em que se encontrava a vítima foi interrompido antes de chegar ao seu fim, e o ofensor fulminou todas as chances da vítima. Não há como saber se, tendo o advogado recorrido, a decisão seria favorável; ou se, tendo o participante concorrido, sairia vitorioso no certame. O que se tem presente é somente a probabilidade de ocorrência do resultado esperado, baseando-se em uma “suposição legítima do futuro”[38]

Rafael Peteffi acompanhado por Sergio Savi[39], 76 identifica duas modalidades de perda de uma chance: na primeira, o processo aleatório em que se encontrava a vítima é interrompido, com a perda definitiva da vantagem esperada e a total aniquilação das chances da vítima, e na segunda, o processo aleatório chegou ao seu final.

Por sua vez, Fernando Noronha[40] destaca duas modalidades de chances perdidas: a frustração da chance de obter uma vantagem que era esperada no futuro (casos clássicos), que se subdivide em perda da chance de realizar um benefício em expectativa e perda da chance de evitar um prejuízo futuro; e a frustração da chance de evitar um dano que aconteceu que se apresenta na perda da chance de evitar que outrem sofresse um prejuízo e na perda da chance por falta de informação.

Nas situações mencionadas, em que o processo aleatório não chegou ao seu final pela perda da chance, pode-se identificar a existência de um dano autônomo: o da chance perdida, que independe do prejuízo definitivo. Ou seja, nas hipóteses em que o advogado perdeu o prazo para recorrer em uma ação de cobrança, ou do participante que deixou de concorrer ao jogo de perguntas e respostas em razão de uma pergunta mal-formulada, a vantagem final almejada pela vítima corresponde a um bem patrimonial.

Considerando ainda que o dano possa ser verificado no momento em que o processo aleatório foi interrompido, e não corresponderá ao prejuízo definitivo, percebe-se que “está em presença não de um lucro cessante em razão da impedida futura vitória, mas de um dano emergente em razão da atual possibilidade de vitória que restou frustrada”[41]

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Portanto, o dano da perda da chance é autônomo e pode ser considerado um dano emergente, o qual será reparado de acordo com o valor da chance perdida.


8. A PERDA DE UMA CHANCE NO DIREITO DO TRABALHO:

Partindo do ponto de vista fático, a relação de trabalho constitui um dos ramos mais propícios à ocorrência de perda de chances, em suas diversas facetas.

No Brasil, a doutrina especializada no ramo trabalhista, através de Raimundo Simão de Melo[42], passou, ainda que de maneira tímida, a vislumbrar a aplicação da teoria da perda de uma chance na seara laboral.

A teoria constitui importante ferramenta da responsabilidade civil capaz de aprimorar as formas de reparação do dano injusto, requintando a relação entre capital e trabalho, de modo a fomentar a “melhoria da condição social do trabalhador” (art. 7º, caput, CF), realçando o princípio constitucional da “dignidade da pessoa humana” (CF, art. 1º, III), basilar de todo o ordenamento jurídico.

Sobre o tema, o incisivo escólio de Marly A. Cardone[43]:

Nas relações que as pessoas travam na vida, elas podem, voluntariamente ou não, causar prejuízos às outras. A relação humana e jurídica que liga empregado e empregador não é suscetível de escapar desta contingência. Isto é tão irrefutável quanto dizer que o ser humano é passível de errar. Por isso, causa espanto que alguns queiram isolar empregado e empregador deste círculo no qual está inserida toda a prática de atos ilícitos. A relação de emprego tem uma disciplina jurídica para a troca trabalho x remuneração, mas seus sujeitos não estão excluídos da órbita do Direito Civil quando praticam atos ou fatos da natureza civil na específica situação de empregado e empregador.

Por sua vez, Mauricio Godinho Delgado[44] assinala que a ideia de dignidade não mais se restringe ao âmbito particular dos valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente, mas sim na afirmação social do ser humano, para a qual desponta a necessidade do trabalho juridicamente tutelado sob a forma de emprego.

É reconhecida, no meio acadêmico, a autonomia científica do Direito do Trabalho. Contudo, essa propalada “autonomia” não significa independência, tampouco ruptura com o restante do organismo jurídico. Neste diapasão, Alexandre Agra Belmonte assevera que:

autonomia de um ramo do Direito não significa desvinculação dentro de um sistema jurídico. O Direito do Trabalho tem por fim regular as relações jurídicas derivadas da prestação pessoal, subordinada, não eventual e assalariada de serviços, mas nem por isto deixa de se servir das normas gerais compatíveis do Direito Civil, subsidiariamente aplicáveis à Consolidação das Leis do Trabalho, quando omissa[45]·.

Verifica-se que permanecem extremamente sólidas as relações entre o Direito do Trabalho e o Direito Civil, atualmente, de imbricação reforçada diante dos princípios da eticidade, operabilidade e socialidade, que informam o Código Civil brasileiro de 2002. Como há omissão na legislação trabalhista acerca da responsabilidade civil pela perda de uma chance, torna-se perfeitamente aplicável a teoria e totalmente compatível com a CLT.

O legislador trabalhista, preocupado com a constante interseção entre o Direito do Trabalho e suas fontes, criou uma regra de Direito Hermenêutico, ao estabelecer, no artigo 8º da CLT, um comando extremamente elástico de diálogo com os demais mananciais de integração da norma jurídica. Ademais, o parágrafo único do art. 8º da CLT  delega ao direito comum um caráter supletivo, a ser utilizado somente naquilo que não for incompatível com os princípios fundamentais de Direito do Trabalho.

De fato, a doutrina da perda de uma chance concilia-se com os princípios do Direito Laboral, na medida em que a ampliação do leque de reparação do dano injusto é harmônica ao ideal de melhoria da condição social do trabalhador. Lado outro, também valoriza a livre iniciativa, visto que o empregador também pode se valer do instituto para se ressarcir de eventuais oportunidades perdidas.

Desse modo, a teoria da perda de uma chance é compatível com a predestinação teleológica da legislação trabalhista, de oferecer maior tutela aos trabalhadores subordinados, ou seja, a doutrina coaduna-se com a vocação finalisticamente determinada da intervenção legislativa em prol do pólo mais frágil da relação laboral. Além disso, não há empecilhos legais à adoção da teoria pelo Direito do Trabalho brasileiro.

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Sobre os autores
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas

Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Del Rey – Uniesp - Professora de Direito da PUC MINAS e Faculdades Del Rey – UNIESP. Professora-tutora do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Servidora Pública Federal do TRT MG – Assistente do Desembargador Corregedor. Doutora e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Especialista em Educação à distância pela PUC Minas. Especialista em Direito Público – Ciências Criminais pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Bacharel em Administração de Empresas e Direito pela Universidade FUMEC.

César Leandro de Almeida Rabelo

Professor da Universidade Federal do Estado de Minas Gerais. Bacharel em Administração de Empresas e em Direito pela Universidade FUMEC. Especialista em Docência no Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Centro de Estudos da Área Jurídica Federal. Mestrando em Direito Público pela Universidade FUMEC. Advogado do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade FUMEC. E-mail: [email protected]

Carlos Brandão Ildefonso Silva

Professor do Instituto Metodista Izabela Hendrix. Mestre em Direito Privado pela PUCMINAS Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito de Família e Sucessões pelo IEC-PUCMINAS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEGAS, Cláudia Mara Almeida Rabelo ; RABELO, César Leandro Almeida et al. A responsabilidade civil pela perda de uma chance nas relações jurídicas civis e do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5319, 23 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55127. Acesso em: 19 mai. 2024.

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