RESUMO:A Polícia existe para garantir a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. A atividade policial muitas vezes exige uma intervenção por parte de seus agentes, para o cumprimento de suas atribuições, a aplicação da lei. Para isto, é imprescindível a autorização legal para o emprego de força, incluindo o uso letal de armas de fogo em situações em que isto se faz necessário. O limite entre força e violência é tênue e deve ser determinado por lei, pela conveniência na operação e, no âmbito moral, pela diferença entre atuação policial e criminosa. Sendo assim, deve existir uma lei específica que regulamente a atividade e ensine o policial a agir dentro deste limite. Com o objetivo de se verificar a existência de regulamentação sobre o uso progressivo da força na atividade policial, foi realizada uma pesquisa documental dos dispositivos existentes, no âmbito nacional e internacional, onde foi possível encontrar um suporte sobre o assunto. Ainda assim, foi concluído que atualmente no Brasil não existe uma lei específica que trate do tema e uma norma que seja adequada à realidade brasileira, contendo, inclusive, regras a serem seguidas quando da formação e treinamento do policial, o que é indispensável para uma atuação eficaz e ética, e para a manutenção da paz social, objetivo maior da instituição.
Palavras chave: uso da força; atividade policial; legislação.
INTRODUÇÃO
O Uso Progressivo da Força trata da escolha adequada de opções de força pelo policial em resposta ao grau de submissão do suspeito ou infrator a ser controlado.
A força pode ser conceituada como toda intervenção compulsória sobre o indivíduo ou grupos de indivíduos, quando reduz ou elimina sua capacidade de autodecisão. O nível do uso da força compreende desde a simples presença policial até a utilização da arma de fogo, em seu uso extremo, o uso letal.
O uso legítimo da força é regido pelo princípio da legalidade, com base nas normas legais vigentes em cada estado; pelo princípio da necessidade, se o uso da força for aplicado de forma imperiosa; pelo princípio da proporcionalidade, se a utilização for na medida certa para o cumprimento de sua função; e pelo princípio da ética, que apresenta os valores morais para utilização da força. Ética pode ser definida como o conjunto de princípios morais ou valores que governam a conduta de um indivíduo ou de membros de uma mesma profissão. Portanto, agir fora destes princípios é fazer uso indevido da força.
A polícia atua na conciliação e, quando é preciso intervir, o policial deve primeiramente agir com moderação, tentando conduzir a situação para o apaziguamento através do diálogo. Se isso não for possível, o policial deve agir com firmeza, energia e determinação, fazendo uso da força, de acordo com a legalidade e proporcionalidade, verbalizando suas intenções de resolver a situação.
O momento crítico é quando o uso da força e da arma de fogo se faz necessário, sendo preciso, então, observar os princípios básicos dos Direitos Humanos, principalmente porque direitos como a vida, a liberdade e a dignidade humana estão em risco.
O Estado intervém com violência legítima, quando, por exemplo, um cidadão usa a violência contra outros cidadãos, de forma a garantir a tranquilidade. É a chamada violência legítima contendo a violência ilegítima.
O policial também é sujeito dos Direitos Humanos e, além disso, tem responsabilidade em nível individual e coletivo. Sendo assim, deve ser educado para compreender a aplicação destes direitos em sua atividade, agindo de acordo com padrões de conduta éticos e morais, e padrões para o uso da força e de armas de fogo aceitos internacionalmente.
Neste sentido, os resultados negativos de ações policiais individuais trazem dificuldades internas e externas para a instituição e comprometem a sua imagem perante a sociedade.
Para que a polícia atue de forma a obedecer a todos estes princípios e, ainda assim, cumpra com seus deveres, é importante que haja uma norma que regulamente a atividade de um modo que crie uma certa padronização de conduta em relação ao uso da força e da arma de fogo, desde o processo de formação e treinamento dos profissionais até a realização da atividade na prática.
Considerando-se a importância de se normatizar esta delicada tarefa da polícia, de forma a diminuir os erros e excessos cometidos durante as operações policiais, evitando a ilegalidade dos atos, assim como aumentar a sua eficiência, foi realizada uma pesquisa com o objetivo de localizar, no ordenamento jurídico, nacional e internacional, dispositivos que abordem o emprego da força e de armas de fogo por policiais na realização de suas atribuições.
1 METODOLOGIA
Foram analisados no âmbito internacional documentos criados pela Organização das Nações Unidas, com aplicação para todos os Estados membros, entre eles, o Brasil e, em nível nacional, os códigos que tratam da esfera penal e processual penal, ligados diretamente à função policial.
A metodologia utilizada foi basicamente uma coleta de dados segundo Lakatos e Marconi (1991), baseada em documentação indireta. Esta pesquisa é realizada com o objetivo de recolher informações prévias sobre o campo de interesse. O levantamento de dados, primeiro passo para uma pesquisa científica, é feito de duas formas: por meio de pesquisa documental (ou fontes primárias) e pesquisa bibliográfica (ou fontes secundárias). Para Lakatos e Marconi (1991), o que caracteriza a pesquisa documental é que a fonte de coleta de dados está restrita a documentos, escritos ou não, constituindo o que se denomina de fontes primárias. As principais fontes de documentos são arquivos públicos, documentos oficiais, publicações parlamentares e documentos jurídicos.
2 REVISÃO DE LITERATURA
Apesar de não haver ainda uma norma que trate do uso legal e progressivo da força de forma específica, existem regras encontradas em uma série de dispositivos legais, nacionais e internacionais.
Os países outorgam suas organizações de aplicação da lei a autoridades legais para usarem a força de forma legítima. Certos países não apenas autorizam a utilização da força por seus encarregados de aplicação da lei, como os obrigam a usá-la. A aplicação da lei não é uma profissão em que se possam utilizar soluções padronizadas para problemas padronizados que ocorrem em intervalos regulares (ROVER, 2000). De qualquer forma, é necessário um referencial para que não ocorra violação aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
A tarefa da polícia é difícil, pois se reconhece como completamente legítimo o uso de força na resolução de conflitos, com a condição de que sejam esgotadas todas as possibilidades de negociação. Rover (2000) afirma que o uso de força, principalmente o uso intencional e letal de armas de fogo, deve ser limitado em absoluto às circunstâncias excepcionais. Existem vários meios de agir antes que seja necessário chegar a este limite. Ao atuar dentro desse parâmetro de socorro e proteção, o policial está amparado por uma série de legislação, tanto na esfera internacional como na nacional.
2.1 LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL SOBRE O USO DA FORÇA
2.1.1 Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei – CCEAL
Este código foi criado pela Resolução nº 34/169 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 17 de dezembro de 1979. O CCEAL tem como objetivo orientar a conduta dos policiais dos Estados membros.
O documento tenta padronizar as práticas de aplicação da lei para que estas não contrariem os princípios de direitos e liberdades humanas, apesar de não ter força de tratado. É apenas um código de conduta, com a intenção de criar um policiamento ético e legal. É composto por artigos e comentários explicativos.
Este código convenciona que o uso da força é excepcional e não deve exceder o nível necessário para atingir os objetivos do cumprimento do dever legal. Sendo assim, a arma de fogo só deve ser usada em situações extremas. Tem como principal objetivo conscientizar os policiais de sua responsabilidade, uma vez que as funções de aplicação da lei têm relação direta com a qualidade de vida dos indivíduos e da sociedade.
2.1.2 Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo – PBUFAF
Foram implementados no Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a “Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores”, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990. Também não é um tratado.
Este documento traz o regramento e os procedimentos a serem seguidos para o uso devido da arma de fogo, ou seja, apenas para fins legítimos, e sugere o desenvolvimento de munições não letais, para diminuir os meios que causam ferimentos e morte. Além disso, trata da importância e complexidade da atividade policial.
O PBUFAF traz ainda em seu conteúdo um “convite” a todos os Estados membros, para que estes respeitem em suas práticas e legislações nacionais, os princípios básicos estabelecidos.
1.1.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos
Este instrumento foi criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, com o fim de assegurar que não fossem mais violados os direitos e liberdades humanas, após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. O documento como um todo deve ser levado em consideração na atuação de todos os agentes públicos, mas os dispositivos que tratam mais diretamente da atividade policial são os enumerados abaixo:
Artigo 3º - Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo 5º - Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Artigo 6º - Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.
Artigo 18 - Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo 22 - Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Artigo 29 - No exercício de seus direitos e liberdades, o homem só se sujeita a limitações impostas por lei que tenham o propósito de assegurar o devido reconhecimento e respeito pelos direitos dos outros e para atender às justas exigências da moralidade, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática.
Vale ressaltar que a Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988) também apresenta em seu conteúdo, mais especificamente no artigo 5º, dispositivos que garantem a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Não é tratado especificamente o emprego da força por policiais, mas tem aplicação implícita nesta atividade.
2.2 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
2.2.1 Código Penal
O Código Penal Brasileiro apresenta um amparo legal para certas condutas quando enumera situações excepcionais como a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal. Estas situações devem ser analisadas com muito rigor, pois não podem servir como uma maneira legal de descumprir os direitos humanos, principalmente porque foram criadas em defesa destes direitos.
Excludentes de ilicitude relacionadas no artigo 23:
Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.
2.2.2 Código de Processo Penal
O Código de Processo Penal Brasileiro apresenta três artigos que tratam do emprego de força por servidores policiais quando do cumprimento de atribuições específicas de sua profissão, quais sejam a guarda do preso e a prisão em virtude de mandado.
Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.
Art. 292. Se houver, ainda que por terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.
Art. 293. Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.
2.2.3. Código Penal Militar
A Lei Penal Militar também enumera as situações excepcionais que justificam determinadas condutas de seus servidores na execução de seus serviços.
Exclusão de crime
Art. 42. Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento do dever legal;
IV – em exercício regular de direito.
2.2.4 Código de Processo Penal Militar
Este código apresenta os casos em que o servidor militar é autorizado a utilizar a força em funções inerentes a sua profissão. Os dispositivos estão citados abaixo:
Captura em domicílio
Art. 231. Se o executor verificar que o capturado se encontra em alguma casa, ordenará ao dono dela que o entregue, exibindo-lhe o mandado de prisão.
Parágrafo único. Se o executor não tiver certeza da presença do capturado na casa poderá proceder a busca, para a qual, entretanto, será necessária a expedição do respectivo mandado, a menos que seja a própria autoridade competente para expedi-la.
Caso de busca
Art. 232. Se não for atendido, o executor convocará duas testemunhas e procederá da seguinte forma: sendo dia, entrará à força na casa, arrombando-lhe a porta, se necessário; sendo noite, fará guardar todas as saídas tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombar-lhe-á a porta e efetuará a prisão.
Emprego de força
Art. 234. O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e seus auxiliares, inclusive a prisão do defensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.
DISCUSSÃO
As normas acima citadas, especialmente no âmbito internacional, demonstram que existe a preocupação de se regulamentar a atividade policial de acordo com a atual perspectiva mundial de diminuição da violência no cumprimento da função de segurança pública. Segundo Ballestreri (1998), exigir-se-á do policial cada vez mais discernimento de valores éticos e condução rápida de processos de raciocínio na tomada de decisões. Além disso, a tendência é a utilização de munição não-letal e outras formas alternativas na resolução dos problemas, que também sugerem a não aplicação da força policial diretamente.
A legislação nacional, principalmente, encontra-se bastante desatualizada. Apesar de existirem manuais ou qualquer outro tipo de documento informal que auxilie na formação e treinamento dos policiais, observa-se a necessidade de uma norma oficial que reúna todos os tópicos a serem abordados para a educação do policial e da comunidade. Na pesquisa realizada foram encontrados ainda documentos de aplicação estadual, mas é necessário um padrão nacional que direcione a ação adequada de todas as polícias do país.
É interessante também que não somente os policiais tenham acesso a este conhecimento, mas magistrados, advogados, outros agentes do Executivo e, inclusive, o público.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se trata da legalidade e dos limites permitidos na utilização da força e de armas de fogo na atividade policial, a estrutura jurídica brasileira apresenta lacunas e imprecisões. Um ordenamento jurídico adequado não indica a solução para um conflito, mas pode oferecer uma direção a ser seguida.
É importante que seja criada na Legislação Brasileira uma norma única que trate do tema e oriente os policiais brasileiros e a sociedade. Regras específicas de formação e treinamento de policiais com aplicação em todo país criarão uma conduta padrão que seja de acordo com os princípios éticos e morais, e que protejam os direitos humanos, principalmente os direitos à vida, à liberdade e à dignidade. O policial deve estar apto a lidar com todo tipo de situação de risco sem que para isso lance mão de violência. O poder legal conferido ao policial através da permissão para o uso de força e de armas de fogo lhe atribui a autoridade para contribuir para o desenvolvimento social ou para a sua destruição. Não importa qual é a instituição policial em questão, a missão destes profissionais é a manutenção da paz social e, para isso, necessitam de orientação adequada e amparo legal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALLESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Passo Fundo – RS, CAPEC, Paster Editora, 1998.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 20 novembro 2008.
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LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 3. ed. Atlas. São Paulo, 1991.
ONU - Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembléia Geral, 1948. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 20 novembro 2008.
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ONU - Organização das Nações Unidas. Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de fogo. Havana, Cuba, 1990. Disponível em <www.cpc.pm.rn.gov.br/legislacao/legforca.doc>. Acesso em: 22 novembro 2008.
ROVER, Cees de. Para servir e proteger. Direitos Humanos e direito internacional humanitário para forças policiais e de segurança: manual para instrutores. Trad. Sílvia Backes e Ernani S. Pilla. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2000.