INTRODUÇÃO
A liberdade, tratada como valor humano, demonstra-se assunto em dimensões iguais de dificuldade e relevância. Em parte, devido à luta com que se foram conquistando as liberdades, em parte, devido aos diversos significados que obteve em seu caminho histórico.
Para se chegar ao conceito hodierno de liberdade, os caminhos percorridos foram sendo descritos pelos filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Hegel, Marx, Kant, entre tantos outros.
Este trabalho tem pretensões minúsculas, ante a grandeza do tema. Busca-se demonstrar momentos pelos quais a liberdade se destacou diante de outros direitos do homem. Tarefa já extremamente difícil, ante as diversas facetas com que foi abordada pelos pensadores das sociedades.
Num primeiro momento, mister compreender a dimensão do homem ante o direito. Em notas preliminares, alguns apontamentos a respeito do homem e sua percepção como tal.
A abordagem do pensamento grego e a revolução promovida pelo cristianismo diante da idéia de incompatibilidade entre este e a filosofia surgem como fomento à discussão da liberdade humana e a concepção teológica de liberdade espiritual.
As revoluções liberais anunciam a queda do absolutismo diante do aparente contra-senso entre democracia e liberdade individual. Um Estado, cada vez mais diminuído ante as aspirações do indivíduo, caminha ao Estado de Direito, até culminar no Estado Democrático de Direito.
Por fim, a constitucionalização e a internacionalização da liberdade como direito fundamental positivado denotam o resultado de intensas lutas do homem na busca da realização de seus direitos em uma sociedade igualitária.
Em todos esses pontos, procura-se descrever a visão dos autores citados em relação ao conceito de liberdade que tiveram em determinado tempo, sociedade e governo.
2. O HOMEM, A SOCIEDADE E O DIREITO
Ao aprofundar minha pesquisa sobre a essência do homem como indivíduo, inserido inevitavelmente em uma sociedade, encontrei diversos escritos, principalmente em forma de artigos, os quais remetem inevitavelmente à Grécia antiga. Não que nas sociedades anteriores não houvesse a união de homens com ambições semelhantes, contudo, a Grécia apresenta vasta discussão sobre o homem como ser distinto dos animais em sua razão[1].
2.1 A visão Platônica
Na concepção Platônica[2], o homem é entendido como um filósofo, ou seja, como aquele que se posiciona diante dos problemas da existência como também diante de si mesmo através do processo da reflexão sobre a sua existência. Segundo Platão é no dialogar que o homem se vai reconhecendo. Para Platão, existem dois tipos de homens: o que vive segundo espírito, aquele que anseia e contempla as idéias, ou seja, o homem ideal, que já superou o sensível; e do outro lado o homem que procura viver segundo a visão do sensível das coisas. Aquele que vive ainda na vida instintiva, que está no estágio de contradições e confusões. O primeiro é o homem filósofo e o segundo é não filósofo que deve ser ultrapassado.
A visão de Platão demonstra-se influenciada pela visão pitagórica, cuja pergunta fundamental, segundo Armstrong, é: “¿Como puedo libertarme del cuerpo de esta muerte, de esta amarga y fatigosa rueda de la existencia mortal, y volver a ser un dios?”[3] Assim como também pela visão de Protágoras do homem como medida de todas as coisas. Por fim, de Sócrates, para quem a tarefa principal do homem era aperfeiçoar sua alma, tanto quanto possível, pois toda maldade derivava da ignorância, mas que – de todo modo – o homem estava sempre em busca do bem.
Para Platão, o homem bom é aquele que conhece a moral, pois só conhecendo a moral, que é a mesma para todos, chega a ser um homem bom. Essa moral, descrita pelo filósofo como “formas morais”, são modelos eternos e objetivos pelos quais o homem pode regular sua vida pública e privada.[4]
Platão divide a alma humana em três partes: a razão, as emoções superiores e as paixões. Para o homem dominar suas paixões deverá não somente socorrer-se à razão, senão também às emoções superiores. Insiste ele que o homem que se deixa dominar por suas paixões é o pior de todos os escravos.
O discípulo de Sócrates vê o indivíduo como um reino em si, e o Estado como uma sociedade unitária interessada no bem comum.
2.2 A visão Aristotélica
Para Aristóteles[5], o homem é um animal político na medida em que se realiza plenamente no âmbito da pólis. Segundo Aristóteles, a “cidade ou a sociedade política” é o “bem mais elevado” e, por isso, os homens se associam em células, da família ao pequeno burgo, e a reunião desses agrupamentos resulta na cidade e no Estado[6].
Para o filósofo de Estagira[7], o homem é tão capaz de “desejos e afeições” quanto está apto a adquirir inteligência – entendida como razão ou alma racional. Complexo, o homem é o único zoon com capacidade para agir orientado por uma moral, de modo que suas ações e juízos resultam ora em vício, ora em virtude.
Ao conceituar as coisas e estabelecer relações mediadas pela palavra[8], o homem detém a condição de racionalizar suas ações, locais e objetos. E é também a partir da formação intelectual, moral e física que ele encontra o equilíbrio vital para atingir a virtude. Em Artistóteles, presume-se, a virtude como o agir conforme a razão dos valores universais de uma determinada polis, ou seja, deve haver uma equivalência entre o bom para o indivíduo (ou cidadão) e o bom para a sociedade (ou polis). E sejam quais forem as especificidades dessas regras, o bem comum será invariavelmente a felicidade, a justiça, o bem viver na sociedade política.
Dessa forma, o homem é um animal político, pois, na pólis, ele consegue orientar-se pela conduta moral mediada por leis estabelecidas pelos elementos intelectuais, adquiridos no processo de sua formação e moral, soerguidas pelos hábitos racionais e pela experiência. O homem é, portanto, um receptáculo pronto a receber e experimentar ensinamentos e vivências, sem os quais sua existência ficaria incompleta, sendo comandada apenas pelas vontades[9].
A propósito, eis a razão para a prudência ser tão estimada na pólis aristotélica: somente com a experiência e a inteligência consegue-se antever as conseqüências de um ato desviante à moral do grupo. Essa prudência tratada por Aristóteles em “Política” é referenciada como “uma faculdade ou parte da alma que planeja, racionaliza e dita as regras de conduta moral”. Dentro deste contexto, à semelhança de Platão, o Estado é visto como, se não totalitário, pelo menos unitário.
2.3 A visão cristã
A literatura consultada aponta São Tomás de Aquino como o precursor de uma filosofia cristã[10], para quem o homem, como um animal racional que somente pode ser denominado de homem quando entendido em sua totalidade, ou seja, o homem é constituído por uma alma e por um corpo[11]. Essa dependência do sensível em Tomás de Aquino o afasta da concepção da iluminação do espírito humano diretamente por Deus, para a formação das idéias.[12]
A filosofia cristã, para Armstrong, foi fundada sobre as bases do pensamento e do método grego – aplicados à interpretação dos testemunhos e da Revelação e à explicação das escrituras. Os gregos sustentavam a compreensão do divino pelo homem por meio de sua razão, sem auxílio de nada que não fosse do próprio homem. O cristianismo tratou essa questão considerando as relações de Deus para com o homem, e deste para com todas as outras coisas, de modo a entender sua inteligência.
Semelhante a Platão, os cristãos consideram a alma superior ao corpo, contudo, diferentemente daquele, os cristãos não acreditam na reencarnação. Para Agostinho[13], o homem deve ser compreendido como um ser composto, ou seja, formado por um corpo e por uma alma, sendo esta a sua parte superior. Apesar de ser o corpo a parte inferior, em Agostinho só merece o nome de homem quando estão juntos os dois elementos, pois o homem não é só a alma nem só o corpo.[14]
2.4 A visão moderna
O homem individual, egoísta, racional, ativo, livre e igual, esta foi a visão apresentada pelo iluminismo.
Essa concepção é exposta por Radbruch[15], que afirma que a imagem do homem no direito alemão medieval caracterizava-se pela abundância de direitos penetrados por deveres. A época pela qual se tem a visão egoísta do homem é dividida por Radbruch em dois períodos: Estado policial e iluminismo. No Estado policial, este assume a proteção de destinatários supostamente desprovidos de razão, ainda que contra sua vontade. Em sentido oposto, o iluminismo considera o homem, além de egoísta, na mesma perspectiva do direito romano, sujeito apenas à ordem jurídica que respeita seus interesses individuais.[16]
Duguit[17] não vê o homem isolado, por outro lado, a sociedade se mantém pela solidariedade que promove a união de seus indivíduos. A respeito dessa solidariedade, Duguit afirma que uma regra de conduta é imposta ao homem social, qual seja não praticar nada que atente contra a solidariedade social[18].
A idéia de Duguit, no contexto jurídico, é reforçada por Maria Helena Diniz[19], quando reitera Morais Filho, dizendo:
“A eficácia social diz respeito à relação semântica da norma (signo) não só com a realidade social a que se refere, mas, também com os valores positivos (objetos denotados). Logo, será eficaz, semanticamente, a norma constitucional que tiver condições fáticas de atuar, por ser adequada à realidade social e aos valores positivos, sendo pôr isso obedecida”.
Essa visão solidária de um homem egoísta, mas legal; sociável, mas indivíduo; conflituoso, mas pacífico; é encerrada na busca do bem comum descrito por Bonavides, como um conjunto de meios de aperfeiçoamento a que a sociedade lança mão para oferecer aos seus membros atmosfera de paz, de moralidade e de segurança. Indispensável – exclama o autor – às atividades particulares e públicas.[20]
3. A LIBERDADE E O DIREITO
A concepção do homem e sua compreensão abrem perspectivas do direito como instrumento de proteção de suas liberdades. Para tanto, as lutas travadas pelo indivíduo, inserido ou não no grupo social, perpetraram o ordenamento jurídico alcançando níveis acentuados de objetividade e complexidade; e encontrou no estado democrático de direito sua mais altiva expressão, como se procurará demonstrar nas próximas linhas.
3.1 A liberdade no pensamento filosófico
Certamente, quem quer que se proponha a estudar a liberdade, necessitará observar o mundo antigo, pois dele partem as primeiras noções da humanidade e de sua compreensão do homem como ser racional, criativo, intuitivo, ambicioso e sociável.
Não menos importante, o mundo medieval representa um marco na história da humanidade e no pensamento judaico-cristão; e exige, por conseguinte, reflexões a respeito das idéias que circulavam entre cristãos e pagãos. Por fim, a liberdade concebida nos dias atuais como fruto das lutas, revoluções, erros, tudo que envolveu a história da humanidade e a luta entre as classes dominantes e as classes subordinadas.
3.1.1 A liberdade no Pensamento Grego
O conceito de liberdade entre os gregos estava intimamente relacionado à política. Benjamin Constant[21] afirma que seu objetivo era a distribuição do poder político entre seus cidadãos, a esse objetivo chamavam liberdade.
Na segunda metade do século IV a.C., Atenas ficou politicamente subjugada aos macedônios, que formaram um vasto império que compreendia, além da Grécia, o Oriente Médio e Norte da África. Isso possibilitou ao pensamento grego expandir-se para essas regiões. Desse fato surgiu uma nova escola filosófica, o helenismo, que consistiu na universalização da língua e cultura gregas pelo Império macedônio, ao mesmo tempo em que recebia a influência de novas idéias de outros povos. Surgiram vários centros culturais, como em Alexandria, no Egito, cidade em que viviam egípcios, judeus e gregos.
Em sua obra “La libertad en la Grecia antigua”[22], Festugiere comenta que tanto a palavra liberdade, quanto sua idéia, aparecem na literatura grega em referência à vida política. O autor insiste que a noção de liberdade perpassa a idéia de democracia e cita Aristóteles: “El fundamento del régimen democrático es la libertad”.
Partindo-se desse prisma, Festugiere explica que a liberdade, em sentido grego, implicava, ou derivava, de dois privilégios: a) a liberdade civil por nascimento, isto é, ser filho de um cidadão; b) a liberdade política, que sendo cidadão e não infringindo a lei, está apto a ingressar nas magistraturas públicas, seja por sorteio ou por eleição[23].
Em Atenas, a liberdade tinha uma extensão positiva e estava relacionada à participação ativa e coletiva do poder político. Significava que o indivíduo, na polis, pertencia ao grupo social e não estava subordinado a ninguém.
Este caráter da liberdade, como vínculo ao grupo social, fazia com que esta fosse considerada um status. É livre quem pertence ao grupo social. Quem não era livre, era considerado forasteiro. Em relação a não-subordinação a ninguém, isso significava participar das deliberações da vida política da polis[24].
A semântica de democracia mantem-se desde a grécia, nas palavras de Festugiere: “es la decisión de la mayoría la que cuenta em último término y dicta el derecho...”[25] Esse pensamento grego a respeito da liberdade na democracia resolve-se pela igualdade entre todos. Já que não é possível viver sem senhores, então a democracia é a única capaz de possibilitar ao homem ser, simultaneamente, governado e governante:
... la libertad consiste, por otra parte, en el hecho de que cada uno es libre de vivir a su guisa (...): ésa es em efecto la función propia de la libertad, si es cierto que lo que carcteriza al esclavo es no vivir a su guisa. Tal es pues el segundo rasgo distintivo de la democracia, de donde procede la pretensión de no tener señores. Si es posible, de no tener ninguno; si es imposible, de ser alternativamente señor y súbdito: pues de este modo se tiende a realizar la libertad em la igualdad para todos.[26]
Ser governado e governante ao mesmo tempo, no entanto, não significa não estar sujeito a nada, mas, pelo contrário, ser escravo de suas próprias decisões, ou leis. Foi esse mesmo espírito que fez com que os atenienses se mantivessem firmes ante os ataques dos persas e espartanos.
Em los Persas de Esquilo (472), cuando Atossa pregunta al coro (verso 230 y ss.): “¿Dónde está Atenas? ¿es acaso uma ciudad tan grande y tan poderosa por su ejército y por sus tesoros que Jerjes haya considerado necessario abatirla? ¿quiénes son, pues, esos atenienses? ¿qué jefe les conduce al combate y les gobierna como déspota?”, los ancianos contestan: “No se dicen esclavos de ningún hombre ni obedecen a nadie” (v. 242).
Não ser escravo de nenhum homem, esta é a gloria do grego[27]. Porém, havia nos atenienses um sentimento fortíssimo de obediência às leis que eles mesmos criaram. Essas leis representavam seus princípios e valores. A lei faz-se evidente como um contrato entre a comunidade e o indivíduo. Ao se tornar adulto, o cidadão ateniense poderia sair com seus bens da cidade, caso as leis não lhe conviessem, ou com elas não estivesse de acordo[28].
Sobre este aspecto da liberdade grega, Festugiere faz uma análise interessante:
El ciudadano es um hombre libre en cuanto no obedece a outro hombre. Pero es esclavo de la ley. La ciudad Le há hecho libre garantizándole las libertades políticas que más arriba hemos definido: pero esa misma ciudad Le considera su esclavo, ya que a Ella pertenece por entero. Así es, em efecto, em virtud de um contrato. La ciudad propone las leyes a la asamblea, y cada ciudadano es libre de aceptarlas o de discutirlas (*); si no las discute, queda atado por ellas. Lo cual equivale, em definitiva, a decir que el ciudadano es esclavo em la misma medida que es libre. La libertad, para El, implica tomar parte en la vida política. Si participa em la política, El es quien hace las leyes. Por conseguiente, cuando obedece a la ley no hace más que obedecer a sus próprios derechos, o dicho de outro modo, a sí mismo.[29]
Como aponta Ferraz, entre os gregos, a noção da liberdade atrelada ao ato voluntário ainda não existia, mas apenas seu vínculo à conotação política e jurídica.[30]
3.1.2 O pensamento Cristão sobre a liberdade
Muitas vezes, filósofos modernos e pós-modernos apresentam a liberdade como descoberta, ou mesmo como invenção da filosofia moderna. Isso pode parecer correto se nos referirmos às liberdades políticas e sociais surgidas naquele período, mas a liberdade humana enquanto tal é uma descoberta essencialmente cristã. Como acentua Arendt, “para a história do problema da liberdade, a tradição cristã tornou-se de fato o fator decisivo. Quase que automaticamente equacionamos liberdade com livre-arbítrio”[31].
Isso foi reconhecido inclusive por um dos maiores filósofos modernos, Hegel, em palavras extremamente esclarecedoras.
Inteiras partes do mundo, a África e o Oriente não tiveram jamais esta idéia; os gregos e os romanos, Platão e Aristóteles não a tiveram jamais. Esses sabiam, ao contrário, que o homem é realmente livre mediante o nascimento (como cidadão ateniense, espartano etc.) ou em virtude do caráter, da educação, mediante a filosofia (o sábio é livre, também quando é escravo e atado em correntes). Esta idéia veio ao mundo mediante o Cristianismo segundo o qual o indivíduo tem como tal um valor infinito, porque esse é objeto do amor de Deus, é determinado a ter com Deus como espírito a sua relação absoluta, a ter habitando em si este espírito, isto é, que o homem é determinado em si para a suprema liberdade.[32]
Em Santo Tomás de Aquino, a noção de liberdade não é unívoca ou equívoca, mas sim análoga, ou seja, se refere a diversos tipos de realidades. É aplicada aos diversos entes espirituais, que possuem inteligência e vontade: Deus, os anjos e os homens. E ao mesmo tempo, a própria liberdade humana apresenta uma diversidade de significados análogos.
Pois pode se referir à liberdade de escolha[33], também chamada de livre arbítrio ou liberdade psicológica pela tradição filosófica e teológica[34]; à liberdade moral (chamada de Libertas Major por Santo Agostinho) e a liberdade mais radical do ser humano, também chamada de “liberdade fundamental”, uma vez que se refere principalmente à abertura transcendental da inteligência e da vontade humanas à verdade e ao bem[35].
Talvez o único ponto que Santo Agostinho não tenha conseguido resolver em definitivo é o dilema entre o livre-arbítrio e a predestinação. O livre-arbítrio agostiniano não admite, em tese, que a razão prepondere sobre as paixões e vice-versa.
Em face dos problemas – ou das tentações – o ser humano é livre para decidir o que fazer nessa situação e pode resistir ao pecado por livre e espontânea vontade. Dessa forma, o comportamento humano seria verdadeiramente imprevisível e prevê-lo seria mera loteria. Se isso fosse possível – inclusive para Deus – não haveria liberdade, porque as opções já teriam sido previamente decididas.
Santo Agostinho contribuiu para a justificação filosófica deste conceito cristão de liberdade, invertendo filosoficamente o seu lócus. Ao contrário dos gregos, Santo Agostinho fundou-a na vontade interior do ser humano. Todos os seres humanos são livres na esfera íntima para decidirem sobre o que fazer em cada momento de suas vidas: poderiam optar por uma vida reta, buscando Deus, ou por uma vida pecaminosa, afastando-se de Deus. Essa “igualdade de condições” atingia a todos os indivíduos.
Ainda que o ser humano fosse um escravo (não ter a liberdade exterior), ainda assim era livre no seu interior[36]. Para os gregos, só era possível querer aquilo que fosse possível; agora, pode-se querer, ainda que não se possa[37].
Ainda podemos lembrar o filósofo e teólogo cristão R. Guardini, que muito refletiu sobre o tema da liberdade[38]. Afirmou que a consciência de ser livre é um conteúdo imediato da experiência humana e definia a essência da liberdade como auto pertença, no sentido em que o ato livre nasce em mim e é perfeitamente meu. É interessante notar que também Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino disseram que a auto pertença é um aspecto da liberdade humana.
3.1.3 A liberdade no pensamento moderno
Um grande número de filósofos modernos afirmou incisivamente a existência e o valor da liberdade humana. René Descartes, por exemplo, disse que não há nada que nos é conhecido com maior evidencia do que a liberdade[39]. De modo semelhante, H. Bergson afirmou que “a liberdade é um fato e, entre os fatos que constatamos, não há nenhum que nos seja mais claro”[40]. I. Kant disse em sentido semelhante que a autonomia da vontade aparece como evidente diante da lei moral, pois o homem intui o dever moral e a possibilidade de transgredi-lo assim que toma consciência de ser livre[41].
Em contraponto ao pensamento cristão, no pensamento de Schopenhauer, a função desenvolvida pela razão é derivada e secundária, uma vez que a razão é mera expectadora da Vontade, trabalha apenas como se fosse uma organizadora dos eventos, atribuindo sentido aos fatos. Justamente, neste ponto Schopenhauer já demonstra seu pessimismo quanto à existência do livre-arbítrio[42].
Renato Cardoso, em seu livro A ideia de justiça em Schopenhauer, analisa o posicionamento daquele pensador:
O desenvolver deste pensamento, ao qual procede Schopenhauer, nos leva a uma constatação importantíssima sobre a condição humana, embora, deve-se admitir, nada lisonjeira: estando uma vez sujeitas, como já foi dito, ao primado da vontade, todas as ações dos homens seriam, em ultima instância, como aquela à qual se submetem, ou seja, também inintelegíveis e insubmissas ao princípio da razão. A primazia da vontade sobre a racionalidade é nota característica e elemento fundamental na filosofia de Schopenhauer. A vontade é soberana e o intelecto está a seu serviço.[43]
Portanto, não é possível conceber a existência de uma razão prática, e, neste viés, também não é possível o agir ético pautado por esta mesma razão. Em Schopenhauer, é praticamente impossível ter-se um avanço moral, tendo em vista que Vontade é livre, soberana e absoluta. Sob este prisma inexiste progresso moral e ético, justamente porque o livre-arbítrio não passa de uma ilusão[44].
Schopenhauer, em sua obra acerca da liberdade da vontade, explicita que existem três tipos de liberdade: física, intelectual e moral. Modernamente, Schopenhauer define livre-arbítrio como sendo a liberdade de indiferença, na qual a vontade livre do ser humano não é determinada por qualquer razão ou motivo. Mais adiante, nega a existência do livre-arbítrio, porque todos os motivos do ser humano têm uma causa, relacionada ao caráter de cada um[45].
Se a idéia de liberdade com fundamento na vontade humana surgiu com Santo Agostinho, talvez seu ocaso seja na fundamentação da teoria finalista da ação, construída na primeira metade do século XX, que teve como precursor o filósofo e jurista alemão Hans Welzel. O Código Penal brasileiro procurou adotá-la na reforma por que passou em 1984.
Como explica Welzel, “a espinha dorsal da ação finalista é a vontade, consciente do fim, reitora do acontecer causal. Sem ela, a ação seria um processo causal cego”[46].
3.2 A liberdade como direito fundamental
A aparição do termo direito fundamental surge na constitucionalização do direito, sobre cujos aspectos é importante fazer alguns comentários, antes de aprofundarmos no tema desta seção.
3.2.1 Direito Fundamental e o Estado de Direito
Há certa confusão no uso dos termos direitos e garantias. Fato devido, segundo Bonavides, aos juristas liberais que viram a necessidade de afirmar e proteger a liberdade perante o Estado. Inicialmente, o autor aponta uma distinção entre direito e garantia. A garantia existiria em face de um interesse que demande proteção e de um perigo que deve ser contido. Esse direito é entendido pelo digno professor como um direito. Para Bonavides, os termos não se confundem juridicamente, sendo a garantia o meio pelo qual se obtém o direito. Essa distinção se faz relevante à medida que como ressalta Alcorta[47] há a necessidade de proteger os direitos reconhecidos e não somente declará-los[48].
A expressão “direitos fundamentais” designa posições jurídicas básicas reconhecidas pelo Direito Constitucional positivo de um Estado, em um determinado momento histórico[49]. Neste sentido, José Afonso da Silva (2002, p. 179) leciona:
A expressão direitos fundamentais do homem são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana. (...) São direitos constitucionais na medida em que se inserem no texto de uma constituição ou mesmo constem de simples declaração solenemente estabelecida pelo poder constituinte. São direitos que nascem e se fundamentam, portanto, no princípio da soberania popular.[50]
O caminho da liberdade até ser encarado como um direito fundamental não foi lúcido, tampouco fácil, tanto quanto se gostaria[51]. A escravidão no Brasil, um dos últimos países a aboli-la, perdurou até fins do século XVIII, muitas dezenas de anos depois de ter sido declarada como direito natural do homem.[52]
Enquanto as legislações antigas não se preocupavam em declarar expressamente esses direitos, senão de forma negativa, ou seja, cominando sanções a quem desrespeitasse um direito considerado como válido; as legislações modernas tendem cada vez mais a produzir e reproduzir declarações de direitos considerados intocáveis[53].
A idéia, pois, de Estado de Direito nasce da necessidade de que as leis protejam os indivíduos e suas liberdades, tanto pelo Estado quanto pelos outros membros da coletividade.[54] Bobbio é quem traça esse pensamento sobre os mecanismos constitucionais que caracterizam o Estado de Direito que: “têm o objetivo de defender o indivíduo dos abusos do poder. Em outras palavras, são garantias de liberdade, da assim chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja.”[55]
O Estado de direito surge em contraposição ao Estado Legal, que nas palavras de Dutra[56], sintetizando Weber e Kelsen, afirma não haver identificação entre ambos, ainda que a legalidade seja requisito do primeiro. Dutra prossegue citando Habermas, cujo conceito de Estado de Direito vem conectado com a democracia como única forma de compreender a normatividade sem se apelar à noção axiológica substancial.[57]
De fato, segundo Kelsen:
o Direito positivo é essencialmente uma ordem de coerção. Ao contrário das regras do direito natural, as suas regras derivam da vontade arbitrária de uma autoridade humana e, por esse motivo, simplesmente por causa da natureza de sua fonte, elas não podem ter a qualidade da auto-evidência imediata. O conteúdo das regras do Direito positivo carece da necessidade "interna" que é peculiar às regras do direito natural em virtude de sua origem [...] a doutrina que declara a coerção como característica essencial do Direito é uma doutrina positivista e se ocupa unicamente com o Direito positivo.[58]
Em oposição ao direito natural (estático), como bem ensina Dutra, é o direito positivo “que é um sistema dinâmico, em razão de ser um produto da atividade humana”[59]. Não obstante, Kelsen aponta para o significado normativo da expressão Estado de Direito a satisfação dos requisitos da democracia e da segurança jurídica[60].
Toda essa explicação a respeito do Estado de Direito e do positivismo jurídico se dá, nas palavras de Robert Alexy, em virtude do fato de que há sempre uma norma válida de direito fundamental que outorga ao indivíduo esse direito. Isso, para o citado jurista, implica que a ausência de claridade sobre a estrutura dos direitos fundamentais e das normas pertinentes não é possível ver claramente a “fundamentação iusfundamental”[61]. E concluindo nas palavras do mesmo autor: “Sin una consideración sistemático-conceptual del derecho no es posible la ciencia del derecho como disciplina racional”[62].
3.2.2 A liberdade na legislação antiga
O Código de Hamurabi, tido como um dos mais antigos códigos[63], reflete o início de uma codificação legal que traz em seu bojo direitos e deveres do cidadão babilônico. Autores como Gavazzoni afirmam ter sido o Código de Hamurabi uma consolidação das leis então esparsas e vigentes entre os povos[64].
O Rei Hamurábi justifica no epílogo a criação do código “para que o forte não oprima o fraco”, e sua inscrição no monumento em pedra “Deixai-o ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar nas minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz, e possa ele compreender o seu caso.”
O Código de Hamurábi , seguindo-se o pensamento de Bobbio, tem aspecto negativo, vez que sanciona condutas que seriam entendidas como ilícitas, sem declarar a conduta lícita, mas cominando penas às primeiras. O conceito de liberdade não é dado pelo código, porém é referido em expressões como “nascido livre”, “liberto” em contraposição a escravo. Nascidos livres seriam os filhos de homens livres, cidadão babilônico. O escravo poderia ser em virtude de derrota em batalhas ou por dívidas. O Código também faz referência à Casa de Detenção, insinuando a pena de restrição da liberdade tanto como castigo quanto como meio de se obrigar um homem a cumprir com seus deveres. [65]
Na Grécia, em 621 a.C,. diante de revoltas contra o governo que se seguiram até o Século IV, quando se estabeleceu a democracia grega, o Arconte Drácon escreve as primeiras leis atenienses, com o intuito de abafar essas revoltas. Sólon promove uma reforma política, permitindo participação de alguns membros da classe média, o que não evitou outras revoltas, mesmo com o perdão de servidões por dívidas.[66]
A liberdade nessas legislações está intimamente relacionadas à participação política, como já anteriormente demonstrado. A democracia grega firma-se na criação de leis pela participação popular, de modo que essas leis governem o povo em contraponto ao despotismo, como se vê em Aristotéles[67].
3.2.3 A liberdade nas revoluções liberais
Para a doutrina tradicional, a maioria dos autores[68] defende que o fenômeno constitucional surgiu com o advento da Magna Charta Libertatum, assinada pelo rei João Sem-Terra (Inglaterra, 1215). Documento que foi imposto ao Rei pelos barões feudais ingleses.
Já Carl Schmitt[69] defende que a Magna Charta não pode ser considerada a primeira Constituição, pois não era direcionada para todos, mas apenas para a elite formada por barões feudais. Dessa forma, a primeira Constituição propriamente dita seria o Bill of Rights[70] (Inglaterra, 1688/1689), que previa direitos para todos os cidadãos, e não apenas uma classe deles. Essa, que foi a primeira declaração formal de direitos, positivou vários aspectos daqueles que hoje são considerados direitos fundamentais. Prerrogativas até hoje existentes no Direito Constitucional, como o habeas corpus, o tribunal do Júri, o devido processo legal, a anterioridade tributária, etc.
Por outro lado, Karl Loewenstein considera que a primeira Constituição teria surgido ainda na sociedade hebraica, com a instituição da “Lei de Deus” (Torah). O autor alemão aponta que, já naquele Estado Teocrático, a “Lei de Deus” limitava o poder dos governantes (chamados, naquela época, de “Juízes”). Por fim, é de se apontar que, para a doutrina positivista, a primeira Constituição escrita (e com essa denominação) seria a Constituição Americana, de 1787.[71]
Na América, com a independência, declarada em 1776, as 13 colônias inglesas na América se declararam independentes e passaram a formar, primeiramente, uma Confederação e, depois, uma Federação (Estados Unidos da América). Nesse contexto, as declarações de direitos proliferaram, garantindo aos cidadãos determinadas prerrogativas básicas, o que desaguaria nas várias emendas realizadas à Constituição americana de 1787.
A Constituição Federal dos Estados Unidos da América – assinada pela última colônia em 1787 – é considerada a primeira Constituição escrita da humanidade. Ressalte-se que essa Carta não possuía, originalmente, qualquer declaração de direitos, que só foram incluídos com as sucessivas emendas que lhe foram acrescidas (principalmente a Quinta Emenda[72]).
A Revolução Francesa (1789) – mesmo com todos os abusos que em nome dela foram depois perpetrados, na chamada época do Terror – representa a derrocada final do Absolutismo, justamente no país em que tal fenômeno foi mais presente. Embora, em termos cronológicos, essa tenha sido a última das três grandes revoluções liberais (foi precedida pela Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e pela Independência americana, de 1776), teve uma importância histórica muito grande, pois “popularizou” a defesa dos direitos dos cidadãos, como demonstra a declaração de 1791 (Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão[73]).
A respeito da doutrina dos direitos do homem, Bobbio ressalta: “pose ser considerada como racionalização póstuma do estado de coisas a que conduziu”[74], fazendo referência à Magna Carta de João Sem Terra (1215). Bobbio ainda explica que a democracia e o liberalismo vêem as relações do indivíduo com a sociedade de maneiras distintas. O liberalismo expõe o indivíduo aos perigos da luta pela sobrevivência, e a democracia reúne os indivíduos livres a uma associação.
Dessa associação nascem as leis e as constituições, necessárias ao Estado de Direito, expressivas das garantias e direitos fundamentais.
3.2.4 A liberdade nas constituições contemporâneas
Constata-se que, de acordo com a concepção hodierna, os direitos fundamentais são derivados de uma constitucionalização. No entanto, a análise do histórico do pensamento humano leva a concluir que os referidos direitos possuem uma origem remota e que os direitos fundamentais, atualmente, positivados nas constituições, são frutos de diversas transformações ocorridas ao longo da história.
Carl Schmitt[75] define direitos fundamentais aqueles que pertencem ao fundamento do próprio Estado, e que por essa razão são reconhecidos como tais na Constituição. Segundo Alexy Robert o que faz que com que um enunciado da Lei Fundamental compreenda um direito fundamental pode apoiar-se sobre pontos de vista materiais, estruturais e formais. De acordo com a visão estrutural, os direitos fundamentais são os que apresentam uma estrutura do direito individual da liberdade. Pela visão formal, os direitos fundamentais estariam contidos em seções na Constituição que enunciem esses direitos como tais. [76]
A constituição francesa de 1793 traz, em seu preâmbulo, como fim da carta que “o povo tenha sempre a vista as bases de sua liberdade e ventura”, descrevendo em seu art. 2º os direitos naturais do homem: igualdade, liberdade, segurança e propriedade. Em seu artigo 6º, define a liberdade: “Articulo 6º: La libertad es la potestad que el hombre tiene de hacer lo que no perjudica al derecho ajeno; tiene por princípio la naturaleza; por regla, la justicia; por salvaguardia, la ley. Su limite moral está em esta máxima: no hagas a outro lo que no quieras que se te haga.” Texto que expressa idéias liberais, bem como um estado de direito e a presença de princípios cristãos: “Ama ao próximo como a ti mesmo.”
Em 1848, a França edita nova Constituição, retomando a forma republicana, e revigorando os direitos individuais. Em sua fundamentação proclama como princípios a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Em seu art. 6º abole a escravidão em terras francesas.
A constituição Americana[77] em seu preâmbulo aponta como fim da União garantir aos descendentes os benefícios da liberdade. Esse conceito de liberdade é expresso nos artigos que se seguem quanto à inviolabilidade de domicílio e comunicação, ao processo legal e à propriedade.
A Constituição Argentina (1994) à semelhança da Americana como fim da nação Argentina garantir os benefícios da liberdade. Em seu art. 32 proíbe a censura da imprensa. Em seu art. 43 possibilita o habeas corpus em caso de detenção ilegal. Contudo, não há na carta constitucional referência expressa a direitos e garantias fundamentais.
A Constituição Italiana (1948) separou, na Parte I, os direitos e deveres do cidadão. Dentre os quais, destacam-se a liberdade de locomoção, de associação, de reunião, de religião, de pensamento. Em seu artigo 24 permite o ajuizamento por abusos contra direitos.
Na Inglaterra, segundo leciona Dawn Oliver[78], o Human Rights Act foi uma das primeiras Cartas a ser introduzida na Casa dos Comuns após as eleições gerais de 1997, passando a vigorar no Reino Unido a partir de outubro de 2000. Mas a causa de sua criação remonta a tempos muito mais antigos. Isto porque o que fez o Human Rights Act foi incorporar à lei interna do Reino Unido as principais cláusulas da Convenção Européia de Direitos Humanos (European Convention on Human Rights[79]), instrumento internacional que foi adotado por muitas democracias do oeste europeu a partir de 1950. O Human Rights Act positivou direitos relativos às liberdades individuais.
3.3 A liberdade e o Estado
O termo liberdade tem sido desenhado de forma a não se restringir à liberdade de locomoção. Dessa forma, surge a necessidade de compreendê-la como um princípio jurídico. O que se pretende com as explanações a seguir é esclarecer como se pode chegar a tal compreensão, e o papel do Estado frente a esse direito.
3.3.1 Conceito de liberdade
Festugiere se refere a uma liberdade em sentido estrito como “libres en sus personas, en sus cuerpos”[81].
Eis aqui algumas afirmações do próprio Kant que bem mostram a importância da liberdade no seu pensamento. No começo da Crítica da Razão Prática ele diz: “Le concept de la liberté, en tant que la reálité en est prouvée par une loi apodictique de la raison pratique, forme la clef de voûte de toute l’édifice d’un systeme de la raison pure et même de la raison speculative”[82]; e um pouco mais adiante: “Le concept de la liberté est la pierre d’achoppement de tuotes lês empiristes, mais aussi la clef des principes pratiques les plus sublimes pour les moralistes critiques, que comprennent par lá la nécessité de proceder rationnellement”[83]; e, logo antecipando seu conceito, declara: “L’autonomie de la volonté est le principe unique de toutes les lois morales et des devoirs”[84]. E, quase no fim da Crítica da Razão Pura, diz que ela representa umas das “pierres angulaires de la morale et de la religion”[85].
O conceito de liberdade só pode ser entendido no marco da existência de uma constituição civil, já que, sem direito não existe liberdade, entendida esta em termos políticos: “o conceito de um direito externo em geral procede inteiramente do conceito e liberdade”. Liberdade e direito são duas caras da mesma moeda; o conceito de liberdade pensado por Kant é um conceito de liberdade negativa. Diferentemente de autores como Hegel e Marx, para Kant, existe liberdade porque existe coação, há liberdade para se fazer tudo aquilo que a lei não proíbe.[86]
Para Hegel, a subjetividade da pessoa só alcança objetividade e, portanto, liberdade, exteriorizando-se, e isso não pode ocorrer senão através da propriedade, a que se pode obter por apropriação corporal, pela elaboração, e por designação. Para pensar o conceito de propriedade, Hegel também parte do conceito de pessoa, mas tal conceito possui uma conotação totalmente diferente, na medida em que “a pessoa” é pensada como entidade jurídica da maior abstração, ou seja, do ponto de vista de sua maior pobreza. Para Hegel, o momento de maior plenitude da idéia de liberdade se dá no âmbito do Estado[87].
3.3.2 A liberdade como princípio jurídico
Em suas lições, Alexy Robert formula que a dimensão empírica do direito positivo não é suficiente para o juízo jurídico, sendo necessário recorrer a valorações adicionais e, por sua vez, a dimensão normativa. Para o autor, pressuposto da razão e da ciência é clareza conceitual, a não contradição e a coerência.[88]
Os direitos fundamentais entendidos como os direitos expressos e garantidos nas Cartas Constitucionais dos Estados fazem parte de um processo pela luta por direitos antes não reconhecidos; todavia, o reconhecimento desses direitos para juristas como Bahia[89] não partem de um princípio positivista, mas de um principio natural de humanidade.
Noutro viés, com a positivação desses princípios, a legitimidade passa a depender não só da conformidade formal com procedimentos de sua produção, mas, também, da conformidade substancial com princípios superiores positivados; ou seja, a validade de uma norma não se confunde com a sua existência juridica. Esse, segundo Ferrajoli[90], é o elemento mais marcante do Estado constitucional de direito.
Podemos apontar, basicamente, dois princípios que servem de esteio lógico à Idea de direitos fundamentais: o Estado de Direito e a dignidade humana. Embora não se trate de unanimidade, a doutrina majoritária concorda que os direitos fundamentais “nascem” da dignidade humana. Dessa forma, haveria um tronco comum do qual derivam todos os direitos fundamentais. Essa é a posição da maioria da doutrina brasileira (é o caso, por exemplo, de Ingo Wolfgang Sarlet[91], Paulo Gustavo Gonet Branco[92], Paulo Bonavides[93] e Dirley da Cunha Jr.[94]). Há que se registrar, porém, a crítica de José Joaquim Gomes Canotilho[95], para quem reduzir o fundamento dos direitos fundamentais à dignidade humana é restringir suas possibilidades de conteúdo.
Jorge Miranda anota a dificuldade em se apontar qual a teoria do direito que justifica os direitos fundamentais. Na verdade, esse problema deriva do fato de que, hoje, quase todas as teorias jurídicas defendem a existência de direitos básicos do ser humano. Para o jusnaturalismo, os direitos fundamentais são direitos pré-positivos, isto é, direitos anteriores mesmo à própria Constituição; direitos que decorrem da própria natureza humana, e que existem antes do seu reconhecimento pelo Estado.
Já o Positivismo Jurídico considera que direitos fundamentais são aqueles considerados como básicos na norma positiva, isto é, na Constituição. Isso não impede que se reconheça a existência de direitos implícitos, em face do que dispõe, por exemplo, o art. 5º, § 2º, da CF. Por fim, o Realismo Jurídico norteamericano considera (em posição bastante interessante) que os direitos fundamentais são aqueles conquistados historicamente pela humanidade.[96]
Como afirmava o saudoso professor Norberto Bobbio:
“os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.(...) o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras cultuas”.[97]
A liberdade está abrangida nos direitos de primeira geração (individuais ou negativos). Foram os primeiros a ser conquistados pela humanidade e se relacionam à luta pela liberdade e segurança diante do Estado. Por isso, caracterizam-se por conterem uma proibição ao Estado de abuso do poder: o Estado não pode desrespeitar a liberdade de religião, nem a vida etc. Trata-se de impor ao Estado obrigações de não-fazer.
Nas lições de Alexy Robert, a liberdade e a igualdade representam pontos polêmicos e centrais das lutas políticas da humanidade. MULLER afirma que “uma norma jurídica é algo mais que seu texto literal” e que a concepção da norma como “constituída apenas linguisticamente” seria a “mentira vital de uma compreensão meramente formalista do Estado de Direito”.[98]
O pensamento de Alexy Robert se completa ao afirmar que a enumeração dos direitos fundamentais se dá de maneira vaga. Isso, segundo o autor, percebe-se claramente no caso dos conceitos dos direitos fundamentais: dignidade, liberdade e igualdade; e pondera que se a estes conceitos se agregam conceitos dos fins do Estado e da estrutura da democracia, do Estado de Direito e do Estado Social, obtém-se um sistema de conceitos que compreendem fórmulas centrais do direito racional moderno.[99]
Bobbio cita Francesco de Sanetes e expressa que onde existe desigualdade, a liberdade pode estar escrita nas leis, no estatuto, mas não é coisa real: não é livre o camponês que depende do proprietário, não é livre o empregado que permanece submetido ao patrão, não é livre o homem da gleba sujeito ao trabalho incessante dos campos[100].
3.3.3 A atuação do Estado frente à liberdade
O conceito de Estado de Direito pode ser entendido, em poucas palavras, como o Estado de poderes limitados, por oposição ao chamado Estado Absoluto (em que o poder do soberano era ilimitado). Nesse sentido, José Afonso da Silva[101] adverte que o conceito clássico de Estado de Direito abrange três características: a) submissão (dos governantes e dos cidadãos) ao império da lei; b) separação de poderes; c) garantia dos direitos fundamentais.
É por isso mesmo que José Afonso da Silva prossegue: “A concepção liberal do Estado de Direito servira de apoio aos direitos do homem, convertendo súditos em cidadãos livres”.
Para Habermas, a atuação do estado deveria se restringir ao mínimo necessário a garantir a maior liberdade possível, segundo o qual a função da constituição seria manter a separação entre indivíduos que buscavam livremente seus próprios interesses e o Estado, que visava o bem comum[102].
Conforme ensina Bahia, no liberalismo[103], há um superdimensionamento da liberdade individual, ou privada. Nela o homem está livre nas relações privadas e o Estado, por isso, deve garantir a maior liberdade aos indivíduos, cuja legislação deveria ser a mínima. Bahia continua ao afirmar que os direitos individuais não podem ser concebidos como direitos negativos oponíveis ao Estado, por certo, porque os direitos podem implicar atuações positivas do Estado contra o próprio Estado ou contra corporações privadas. [104]
Enquanto no pensamento Kantiano “O direito é a limitação da liberdade de cada um à condição da sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal”.
Afirma Bonavides que, apesar da Constituição Brasileira de 1891, primeira republicana, não empregasse a expressão direitos fundamentais, tampouco direitos individuais, o individualismo liberal lhe inspirou todo o texto no qual “(...) toda a declaração de direitos gravitasse, por inteiro, ao redor dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade.”[105] No pensamento de Bonavides, o direito de liberdade declarado nas leis restringe a ação do Estado em relação ao cidadão.[106]
Na acepção de Liberalismo, o Estado tem poderes e funções limitadas, contrapondo-se ao Estado social moderno, como declara Bobbio. Este autor analisa o tratado de Locke sobre Governo, em que Locke parte do estado de natureza descrito como um estado de perfeita liberdade e igualdade, em que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve provocar danos aos demais no que se refere à vida, à saúde, à liberdade ou às posses[107].
Bobbio distingue dois aspectos dos limites do Estado: a) os limites dos poderes, representado pelo Estado de Direito; e b) os limites das funções do Estado, representado pelo Estado mínimo. Como se vê, a doutrina liberal compreende a ambos. O autor ainda afirma que, do ponto de vista liberal, o Estado é um mal necessário, que deve intrometer-se o menos possível na esfera de ação dos indivíduos. [108]
Thomas Paine, em Common Sense (1776) expõe um quadro interessante entre o indivíduo e o Estado:
A sociedade é produzida por nossas carências e o governo por nossa perversidade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente mantendo juntos os nossos afetos, o segundo negativamente mantendo sob freio os nossos vícios. Uma encoraja as relações, o outro cria as distinções. A primeira protege, o segundo pune. A sociedade é sob qualquer condição uma bênção; o governo, inclusive na sua melhor forma, nada mais é do que um mal necessário, e na sua pior forma é insuportável.[109]
Bobbio confronta o liberalismo e o igualitarismo e afirma “uma sociedade liberal-liberalista é inevitavelmente não-igualitária, assim como uma sociedade igualitária é inevitavelmente não-liberal”. Para Bobbio, a única forma de igualdade compatível com a liberdade da doutrina liberal decorre de que cada um deve gozar tanta liberdade quanto compatível com a liberdade do outro[110].
Bobbio afirma que atualmente somente os Estados democráticos protegem os direitos do homem[111]. Em contraponto, Dutra aponta efeitos colaterais da democracia na formulação do Estado de direito, como a submissão das minorias face à regra da maioria[112].
A questão da relatividade dos direitos fundamentais sempre foi alvo de discussão entre os doutrinadores, o que tem refletido na construção do Estado Democrático de Direito. Como ressalta Paulo Gustavo Gonet Branco: “(...) os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. (...) Até o elementar direito á vida tem limitação explícita no inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla a pena de morte em caso de guerra formalmente declarada”[113].
De acordo com Konrad Hesse, a limitação[114] de um direito fundamental deve ser adequada, necessária e proporcional. Adequada de modo a não descaracterizar a proteção do bem jurídico visado. Necessária quando não houver outro meio mais ameno e eficaz. E proporcional no contrapeso dos bens jurídicos protegidos.[115] Nesse sentido, Canotilho adverte que a possibilidade de limitação de direitos, liberdades e garantias refere-se a direitos sujeitos a reserva de lei restritiva[116].
Bobbio adverte que entre os efeitos desastrosos da maioria estão a instabilidade do legislativo, a conduta arbitrário dos funcionários, o conformismo das opiniões, o número reduzido de homens ilustres na cena política. E refere-se ao problema político como o relativo ao modo de controlar o poder e limitá-lo[117]. Bobbio também ressalta que os direitos não ensejam um Estado de direito para proteger a vida, todavia, o direito de desobediência, na perspectiva de Hobbes.[118]