Violência sexual praticada por profissional da saúde

06/02/2017 às 18:07
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Analisa violência sexual praticada por profissional da área da saúde durante realização de exame.

Imagine a seguinte situação: durante um exame de rotina, um médico afirma existir um novo procedimento e para demonstrá-lo, apalpa seios, nádegas e ou genitália de seu paciente, simulando estar realizando um exame enquanto na verdade sacia sua lascívia com reiterados toques libidinosos. Considerando que a intenção do profissional de saúde pretendeu praticar ato libidinoso sem o consentimento da vítima, tendo-a induzido em erro, houve crime sexual.
A partir dessa hipótese, resta identificar qual delito sexual melhor se adequa à hipótese, sendo importante o enquadramento correto não só em face das discrepâncias no quantum da pena, quanto pelo fato do caráter hediondo do estupro.
Um enquadramento possível da conduta do médico será no crime de violação sexual mediante fraude, conhecido como estelionato sexual, previsto no art. 215 do Código Penal: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima, com previsão de pena de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Esse tipo penal exige que a vítima tenha consciência de que participa de um ato sexual com o autor. Entretanto, é induzida em erro sobre a legitimidade do ato libidinoso por ela consentido.
Assim, na hipótese da paciente que dá seu consentimento para a prática do ato, sem consciência de que será praticado de forma libidinosa, sua vontade está viciada por ter sido induzida em erro pela alegação de que o ato faz parte do procedimento médico, configura-se o estelionato sexual.
Nesse sentido, os seguintes precedentes:
PENAL E PROCESSUAL. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE. ATO LIBIDINOSO COMETIDO DURANTE EXAME GINECOLÓGICO. AUSÊNCIA DE PROVAS. ABSOLVIÇÃO. 1 – NO CASO VERTENTE, NÃO RESTOU COMPROVADO QUE O RÉU TENHA PRATICADO ALGUM ATO ALÉM DAQUELES NORMAIS REALIZADOS DURANTE UM EXAME GINECOLÓGICO E AFORA A PERCEPÇÃO INCERTA DA VÍTIMA, QUANTO AO CUNHO SEXUAL DURANTE A REALIZAÇÃO DO EXAME, NÃO HÁ OUTRAS PROVAS. 2 – O RECONHECIMENTO DA INEXISTÊNCIA DE CRIME É MEDIDA QUE SE IMPÕE ANTE A FRAGILIDADE DA PROVA PRODUZIDA NOS AUTOS. 6 – APELAÇÃO CONHECIDA E NÃO PROVIDA. (TJDF. APR 20100710361696 DF 0035705-23.2010.8.07.0007. Data de publicação: 29/1/2014)

VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE. Preliminar rejeitada. No caso, a prova produzida não esclarece, com certeza, o que ocorreu na data do fato denunciado. A vítima afirma ter sido tocada de maneira imprópria e sexualizada pelo réu durante um exame médico, ao passo que ele nega a acusação, narrando com detalhes a forma como realizou o exame clínico na paciente, explicando ser o procedimento adequado para a formação do diagnóstico de fibromialgia, que constatou ser o problema da ofendida. Ademais disto, a sindicância instaurada pelo CREMERS a esse respeito resultou arquivada e ainda há um parecer técnico do Serviço Biomédico do Ministério Público abonando correção do diagnóstico de fibromialgia, sintomas de depressão, anormalidades psicológicas e, inclusive, dores estomacais, todos eles consonantes com o quadro clínico apresentado pela suposta vítima à época dos fatos. No processo criminal, o ônus da prova sobre os fatos imputados ao réu é incumbência exclusiva do órgão acusador, âmbito em que, remanescendo dúvida probatória, o veredicto absolutório mostra-se impositivo com força no princípio humanitário in dubio pro reo, razão pela qual o réu é absolvido da imputação com base no art. 386 , inc. II , do C.P.P., em face de defecção probatória sobre a materialidade do fato denunciado. APELO DEFENSIVO PROVIDO. (TJRS. Apelação Crime N.º 70053878591. Julgado: 19/12/2013). (grifei)

Verifica-se que nos dois julgados os réus foram absolvidos da acusação de estelionato sexual, sendo compreensível a prevalência do princípio da inocência e o in dubio pro reo nesses casos, considerando a natureza do crime e as limitações durante a colheita da prova criminal, que dificilmente terá testemunhas e a prova pericial nem sempre será possível quando o ato libidinoso não deixar vestígios. Assim, ainda que a palavra da vítima tenha especial relevância nos crimes sexuais, nem sempre será suficiente para um decreto condenatório.
Entretanto, nesse precedente do STJ, houve não só condenação, como o réu não pode recorrer em liberdade:
HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO ORIGINÁRIA. SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ORDINÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. RESPEITO AO SISTEMA RECURSAL PREVISTO NA CARTA MAGNA. NÃO CONHECIMENTO. 1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, buscando dar efetividade às normas previstas na Constituição Federal e na Lei n.º 8.038/1990, passou a não mais admitir o manejo do habeas corpus originário em substituição ao recurso ordinário cabível, entendimento que passou a ser adotado por este Superior Tribunal de Justiça. 2. O constrangimento apontado na inicial será analisado, a fim de que se verifique a existência de flagrante ilegalidade que justifique a atuação de ofício por este STJ. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE PRATICADA POR MÉDICO GINECOLOGISTA CONTRA DUAS PACIENTES. GRAVIDADE CONCRETA DO DELITO. NOTÍCIA DA EXISTÊNCIA DE INÚMERAS OUTRAS VÍTIMAS. PERICULOSIDADE DO AGENTE. RISCO EFETIVO DE REITERAÇÃO. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. RÉU QUE PERMANECEU PRESO DURANTE TODA A INSTRUÇÃO CRIMINAL. PERSISTÊNCIA DOS MOTIVOS DO ENCARCERAMENTO CAUTELAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Não há que se falar em constrangimento ilegal quando demonstrada a imprescindibilidade da segregação preventiva para a garantia da ordem pública, em razão da gravidade concreta dos delitos em que condenado o réu — violação sexual mediante fraude praticada na condição de médico ginecologista/obstetra contra duas pacientes, durante consulta — e da notícia da existência de inúmeras outras vítimas, a demostrar a periculosidade social do agente e o risco concreto de reiteração criminosa. 2. Permanecendo o paciente segregado durante toda a instrução criminal, dada a presença dos fundamentos do art. 312 do CPP, não deve ser revogada a custódia cautelar se, após a condenação, não houve alteração fática a ponto de autorizar a devolução do seu status libertatis. 3. Não fere o princípio da presunção de inocência e do duplo grau de jurisdição a vedação do direito de apelar em liberdade, se ocorrentes os pressupostos legalmente exigidos para a preservação do condenado na prisão. 4. Habeas corpus não conhecido. (STJ. HC 278684/SP. Relator(a) Ministro JORGE MUSSI. QUINTA. Data do Julgamento 3/12/2013. DJe 16/12/2013) (grifei)

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Voltando ao tipo penal, ao médico também poderá ser imputada a autoria de crime de estupro, desde que presentes as elementares do tipo do art.213: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. Ou estupro de vulnerável: Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Nas especialidades médicas que não exijam exames íntimos, a conduta libidinosa caracterizadora do crime de estupro se torna mais evidente e inquestionável, até por conta da reação da vítima, que normalmente se insurgirá diante de um exame invasivo, de cunho sexual e dissociado da regular prática médica.
Em relação aos médicos ginecologistas, urologistas ou proctologistas entre outros, o uso do meio fraudulento – alegação de necessidade do ato para proceder a exame de rotina-, aliado a falta de dissenso da vítima, pode levar ao enquadramento no crime de estelionato sexual, sem prejuízo de a conduta progredir para um estupro.
É fato que no caso concreto dúvidas poderão surgir quanto ao melhor enquadramento, posto que é defensável o entendimento de que durante um exame de natureza mais íntima ou invasiva, o paciente se torna vulnerável, sendo irrelevante o consentimento inicial dado ao médico. Nesse sentido:
PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. CRIME PREVISTO NO ART. 217-A, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. INQUÉRITO POLICIAL. NULIDADE.  NÃO OCORRÊNCIA. PROCEDIMENTO DE ÍNDOLE INQUISITORIAL. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. INÉPCIA DA INICIAL ACUSATÓRIA. INEXISTÊNCIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. PRISÃO PREVENTIVA. CIRCUNSTÂNCIAS CONCRETAS. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. EXCESSO DE PRAZO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PRISÃO DOMICILIAR. REQUISITOS NÃO DEMONSTRADOS. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
7. A prisão preventiva do paciente foi decretada com base em fundamentos concretos, especialmente em razão da periculosidade do agente e pelo modus operandi do crime.  Destacou o magistrado de origem que "o representado, médico, praticava atos libidinosos diversos da conjunção carnal com suas pacientes, durante as consultas, a pretexto de realizar exames ginecológicos, aproveitando-se, portanto, da profissão que exercia, bem como da confiança que as vítimas nele depositavam, tudo para satisfazer a própria lascívia, violando, assim, os deveres, responsabilidades e compromissos inerentes ao cargo ocupado, circunstâncias estas que, somadas, elevam em muito a reprovabilidade da conduta e cristalizam cenário propício à constrição extrema". (STJ. HC 326.903/RO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 10/12/2015, DJe 17/12/2015)

Nesse caso, interessante o seguinte esclarecimento feito no referido acórdão:
A pretensão dos impetrantes, nesse ponto, centra-se na alegação de ausência de justa causa para a persecução penal diante da inexistência de correlação entre os fatos descritos na denúncia e a tipificação eleita pelo Ministério Público (art. 217-A, § 1º, do CP), visto que a conduta descrita pelas vítimas configuraria, em tese, apenas o crime de violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP).
Nesse ponto, o Tribunal de Justiça assentou que: "A vulnerabilidade pode ser entendida como a condição de risco em que uma pessoa se encontra. Um conjunto de situações mais ou menos problemáticas, que situam a pessoa numa condição, impossibilitada de responder com seus próprios recursos a dada demanda que a afeta. Dessa forma, a se considerar a condição das vítimas em situação que pode ser considerada como constrangedora, de nudez em posição de exame ginecológico, não há dúvida, a meu ver, que se encontravam em situação absolutamente vulnerável em relação ao médico
No caso em análise, ao contrário do apontado pelos impetrantes, o fato de as pacientes terem consentido com o exame ginecológico e que, apesar de terem estranhado o procedimento, não o interromperam de imediato, não afasta a imputação criminosa. Isso porque a situação de sujeição na qual as vítimas se encontravam ao realizar o exame médico as impedia de opor resistência no exato momento da configuração da suposta violência praticada pelo acusado, pois esperavam tratamento clínico e não a prática de qualquer ato libidinoso.(grifei)

O melhor enquadramento dependerá das peculiaridades do caso concreto, sendo imprescindível avaliar se houve ou não consentimento à prática do ato durante o exame, bem como se a vítima tinha condições de oferecer resistência ou oposição durante o procedimento. Caso não tenha havido consentimento à pratica do ato ou se verifique que a vítima não tinha condições de interrompê-lo, haverá estupro de vulnerável. Nas demais situações, deve-se analisar a possibilidade de estelionato sexual.

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Sobre a autora
Fernanda Maria Alves Gomes

Mestre em Direito Pela UFPe. Pós graduada em Direito Tributário e Língua Portuguesa. Tabeliã e Registradora Civil em Fortaleza-CE.

Informações sobre o texto

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