2. REMESSA NECESSÁRIA
2.1. Natureza jurídica
Saliente-se, inicialmente, que o presente estudo vai reportar-se à expressão fazenda pública no sentido empregado por Nelson Nery Junior 17, abrangendo também as fundações de direito público:
Embora tecnicamente a locução Fazenda Pública devesse indicar apenas e tão-somente ao Estado em juízo com seu perfil, na verdade se tem denominado dessa forma, tradicionalmente, a administração pública por qualquer das suas entidades da administração direta (União, Estado e Município) e autárquicas, irrelevante o tipo de demanda em que a entidade se vê envolvida.
Aliás, esse entendimento no sentido de enquadrar as autarquias e as fundações públicas no conceito de fazenda pública apenas se perfaz para fins de benefício de prerrogativas processuais, vem sendo adotado pela jurisprudência pátria.
Acentue-se que, muito embora o diploma processual civil não tenha mais se utilizado da expressão "apelação ex officio" para se referir à figura da remessa necessária, há, ainda, uma parte da doutrina pátria, se bem que minoritária, defendendo que tal fato, por si só, não tem o condão de descaracterizar a natureza jurídica recursal de que o reexame obrigatório se reveste.
Ao discorrer, Cláudia A. Simordi 18, sobre essa questão, aventa:
Para outros poucos doutrinadores, dentre eles Sérgio Bermudes, Carvalho Netto e José Estáquio Cardoso, a alteração introduzida pelo Código de Processo Civil de 1973 não foi suficiente para descaracterizar a obrigatoriedade de reexame como apelação ex officio, e, portanto, como uma espécie de recurso.
Sem embargos aos posicionamentos dos aludidos autores e, levando em consideração o entendimento da doutrina dominante, torna-se necessário acentuar que a figura do duplo grau obrigatório não deve ser considerada como uma espécie de recurso, pois lhe faltam características e requisitos inerentes a tal.
Não se poderia olvidar de fazer, neste momento, alusão aos ensinamentos do eminente processualista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda 19, mesmo que com tais ensinamentos não se concorde:
No parágrafo único, acrescenta-se que, em tais espécies, o juiz há de ordenar ‘a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida’. Portanto, há apelação de ofício, porque se fez implícita a referência, uma vez que se adjetivou a outra espécie de apelação (apelação voluntária). Se há apelação voluntária, há necessária ou de ofício.
Ressalte-se que tal entendimento foi aventado quando da vigência da redação anterior do artigo 475, do diploma processual civil.
Em que pese tais posicionamentos, constata-se que recurso e remessa necessária são institutos processuais distintos e que não se confundem, haja vista que aquele primeiro é um meio de irresignação voluntária em face de um pronunciamento judicial que, segundo as palavras de José Carlos Barbosa Moreira 20, "(...) o remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou integração de decisão judicial que se impugna."
Enquanto para o outro instituto, vale dizer, reexame necessário é uma obrigação legal, tratando-se, na verdade, de uma condição sem a qual a sentença não produzirá seus devidos efeitos.
No particular, é lapidar o posicionamento de Nelson Nery Junior 21: "A doutrina dominante entende como nós, no sentido de não atribuir à remessa obrigatória a qualidade de recurso. Em nosso sentir tem natureza jurídica de condição de eficácia da sentença". Logo, ausente está o requisito da voluntariedade recursal.
Dissertando, ainda, José Carlos Barbosa Moreira 22, sobre a figura em questão, tem-se: "Nas hipóteses de que tratam o art. 475. do Código de Processo Civil e de numerosas disposições de leis extravagantes, também se chega ao reexame, mas por via que não se identifica nem se confunde com a recursal".
Sublinhe-se que não se observa na devolução oficial outra característica recursal que não aquela relacionada à voluntariedade, qual seja, a dialeticidade, eis que no instituto em apreço, os autos são remetidos de ofício pelo magistrado ao tribunal ao qual ele é subordinado, independentemente da observância de arrazoamento e contraditório. Frise-se, ainda, que na míngua de remessa dos autos por parte do juiz, o presidente do tribunal deverá, de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, avocá-los.
Urge salientar, outrossim, que, além das ausências daquelas supracitadas características, constata-se que no duplo grau obrigatório não há o juízo de admissibilidade, o qual é inerente a todo e qualquer recurso, estando, portanto, relacionado à análise de alguns requisitos específicos, os quais não se fazem presentes no reexame necessário, a saber: o cabimento, já que a sistemática processual civil brasileira apenas considera como recurso as espécies impugnativas, taxativamente, preconizadas tanto pelo CPC, quanto por legislação extravagante; a legitimação para recorrer, haja vista que o juiz, sendo imparcial, não é parte legítima para recorrer, salvo nos casos do acórdão acolher exceção de impedimento ou suspeição; o interesse para recorrer, pois não sendo sucumbente o magistrado, esse apenas remete os autos por conseqüência legal que lhe é imposta; a tempestividade, na medida em que não ocorre o trânsito em julgado da sentença, enquanto não for referendada pelo tribunal, logo, não há observância a prazos; e, por último, o preparo.
Na mesma linha de entendimento, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 23:
Trata-se de condição de eficácia da sentença, que embora existente e válida, somente produzirá efeitos depois de confirmada pelo Tribunal.
Não é recurso por lhe faltar: tipicidade, voluntariedade, tempestividade, legitimidade, interesse em recorrer e preparo, características próprias dos recursos. Enquanto não reexaminada a sentença pelo tribunal, não haverá trânsito em julgado e conseqüentemente, será ela ineficaz (...).
Por oportuno, trazem-se os ensinamentos de Cláudia A. Simardi 24:
Diante da ausência das citadas características, pode-se concluir que a remessa obrigatória não tem natureza jurídica de recurso, nada obstante seu procedimento no tribunal ser idêntico ao da apelação, inclusive quanto à possibilidade de ocorrer a substituição da sentença pelo julgamento da instância superior.
Nesse viés, assevera José Cretella Neto 25:
O duplo grau obrigatório, que leva ao denominado reexame necessário, constante do referido art. 475, foi incorporado ao CPC durante a tramitação legislativa, em que pesem as críticas dirigidas ao instituto pelo próprio Prof. Alfredo Buzaid, organizador desse diploma processual e Ministro da Justiça quando de sua promulgação.
Substitui a ‘apelação necessária’ ou ‘apelação ex officio’ do CPC de 1939 (art. 822), que já era objeto de crítica de doutrina, que negava fosse a apelação necessária verdadeiro recurso. Fácil é verificar que não se trata de recurso, na verdadeira acepção que lhe confere nosso sistema processual, pois é interposto mediante simples ordem de remessa dos autos ao tribunal competente, ou por avocação do tribunal, sem formalidades especiais; além disso, não está sujeito a preparo; não tem prazo designado para ser interposto (exceto para parte); não comporta razões das partes; não cabe recurso adesivo à apelação voluntária.
Destarte, a outro entendimento não se deve chegar, senão ao de que, realmente, a devolução obrigatória é uma condição sem a qual a sentença não irá produzir seus efeitos, sendo, portanto, esse instituto jurídico uma decorrência lógica de uma imposição legal.
2.2. Hipóteses legais
Não deve pairar mais a mínima dúvida, data venia, de que a devolução oficial é uma condição de eficácia da sentença e, sendo assim, necessária se faz, por ora, a análise das hipóteses legais em relação ao instituto processual sob comento.
Segundo foi dito anteriormente, na década de 90, houve uma série de reformas processuais, dentre as quais, destacam-se as alterações preconizadas pela lei n.º 10.352, de 26.12.2001, em relação ao artigo 475, do CPC, a qual não só limitou as hipóteses de incidência da remessa necessária, mas também operou algumas mudanças naquele dispositivo no sentido de aprimorar a sua redação.
Desse modo, torna-se forçoso, por ora, apenas transcrever o caput e incisos do artigo 475, do diploma processual civil:
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).
(...).
Da mera leitura desse artigo e de seus respectivos incisos, constata-se que aquela lei afastou da incidência do duplo grau obrigatório as sentenças que declararem nulo o casamento, tendo em vista que não haveria mais razão alguma de manter o reexame necessário – o qual é um instituto excepcional e que está fundamentado no interesse público – em um ordenamento jurídico que passou a adotar a figura do divórcio.
Nesse diapasão, têm-se as lições de Cândido Rangel Dinamarco 26:
As primeiras das alterações trazidas pela Reforma da Reforma ao art. 475, portador da regra da devolução oficial e hipóteses de sua incidência, consistiu em excluir seu inc. I, alusivo às sentenças que julgassem procedentes as demandas de anulação de casamento, ‘pois nelas o reexame necessário não mais apresenta qualquer sentido, em sistema jurídico que passou admitir o divórcio a vínculo’ (palavras da justificativa do projeto que se transformou na lei n. 10.352, de 26.12.2001).
No que tange ao inciso I, do aludido dispositivo, observa-se que, embora se tenha mantido o corpo do texto revogado, houve uma inclusão na novel redação, o Distrito Federal e as pessoas jurídicas da administração indireta, quais sejam, as autarquias e as fundações públicas. Saliente-se, ainda, que antes mesmo da supracitada lei prever a hipótese de aplicação da devolução necessária sobre aquelas pessoas jurídicas, esse instituto já incidia sobre tais integrantes da administração indireta, por força do artigo 10, da lei n.º 9.469, de 10 de julho de 1997, o qual se transcreve: "Art. 10. Aplica-se às autarquias e fundações públicas o disposto nos arts. 188. e 475, caput, e no seu inciso II, do Código de Processo Civil".
Sobre tal assunto, não se pode esquecer os ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco 27:
A síntese da enumeração contida no novo inc. I do art. 475. é: sentenças proferidas contra a Fazenda Pública. Esta é uma locução que abrange todas as pessoas jurídicas de direito público, sem abranger as de direito privado, ainda que paraestatais (sociedades de economia mista e empresas públicas). A jurisprudência já era propensa a dar ao antigo inc. II essa dimensão, quando foi promulgada a lei 9.469, de 10 de julho de 1997, mandando aplicar-se às autarquias e às fundações de direito público o que está nesse inciso e no caput do art. 475. Faltava só incluir o Distrito Federal (administração central, autarquias e fundações de direito público), o que agora foi feito pela Reforma da Reforma.
Registre-se, ainda, que é uníssono, tanto em sítio jurisprudencial, quanto em sede doutrinária, o posicionamento no sentido de que o duplo grau de jurisdição obrigatório não se aplica às empresas públicas e às sociedades de economia mista.
Sublinhe-se que há uma certa celeuma em seara doutrinária no que tange à incidência da devolução obrigatória sobre a sentença terminativa. Existem autores que entendem que tal incidência não acontece, dentre eles, citem-se Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 28, segundo os quais:
A razão de ser da proteção do CPC 475 pelo reexame necessário encontra-se na necessidade de dar-se às referidas sentenças julgamento com maior segurança, reexame esse que pode não ser necessariamente melhor do que o julgamento de primeiro grau. A sentença dita processual (CPC 267) caracteriza hipótese de extinção anormal do processo, cuja conseqüência para a Fazenda Pública será, tão-somente, a imposição de obrigação no pagamento de honorários advocatícios à parte contrária (CPC 20). O que interessa, para que incida a proteção, é que o julgamento do mérito seja desfavorável à Fazenda. É óbvio, e ninguém dúvida disso, que, extinto processo sem julgamento de mérito nas causas em que a Fazenda Pública for autora, o juiz deve impor-lhe o pagamento de honorários advocatícios. Essa sucumbência não é quanto ao pedido, mera decorrência do princípio da causalidade, vale dizer, de parte secundária da demanda, providência essa que o juiz tem de tomar ex officio, constitui-se em verdadeiro non sense entender-se que deva subordinar essa sentença meramente formal à remessa ex officio. Figura de exceção no direito processual civil, a norma que a regula tem de ser interpretada restritivamente, vedada a interpretação extensiva, conforme regra básica de hermenêutica (...). Em sentido contrário, pela submissão dessa sentença ao duplo grau necessário, interpretando extensivamente a norma de exceção: Barbosa Moreira, Juízo de retratação e reexame obrigatório em segundo grau, in temas, pp. 88/97.
Diante da autoridade dessas considerações, não se deve entender o contrário, porque, como foi analisado, o instituto jurídico do duplo grau obrigatório é uma figura excepcionalíssima, sem precedentes no direito comparado e, sendo assim, não comporta interpretações extensivas. Logo, ao se fazer uma interpretação extensiva a uma norma restritiva, importa, sem dúvida alguma, em contrariar a sistemática processual civil.
Ademais, é cediço que na extinção do processo sem apreciação do mérito não há coisa julgada material, salvo nos casos do inciso V, artigo 267, do CPC. Deste modo, nada obsta que haja, posteriormente, outro ajuizamento da mesma ação, não ocorrendo, assim, nenhum efetivo prejuízo à fazenda pública quando for autora da demanda capaz de ensejar a remessa necessária. Por razões óbvias não se irão tecer comentários acerca dessa divergência doutrinária quando a fazenda pública figurar no pólo passivo, porquanto ela não será sucumbente.
Discorrendo sobre o assunto, Nelson Nery Junior assevera o seguinte 29:
Quando a sentença for de extinção do processo sem julgamento do mérito, não se pode dizer que foi proferida "contra" a fazenda pública ou autarquia, já que haveria apenas o reconhecimento judicial de que não se pode examinar a questão de fundo, motivo pelo qual essa sentença não é passível de remessa obrigatória.
Urge acentuar o posicionamento dos doutrinadores que entendem de maneira diferente, mesmo que com ele não se comunge, dentre os quais, destaca-se Cândido Rangel Dinamarco 30:
(...) basta que haja uma sentença desfavorável a uma dessas pessoas jurídicas de direito público, para que incida o inc. II e seja obrigatório o duplo grau de jurisdição, a saber: a) se ela for ré, uma sentença que julgue procedente a ação; b) se for autora, toda sentença que julgue a ação improcedente ou extinga o processo sem julgamento do mérito.
É curial salientar que esse comentário de Cândido Rangel Dinamarco está relacionado à redação anterior do artigo 475, do diploma processual civil, vale dizer, antes das alterações preconizadas pela lei n.º 10.352/2001, razão pela qual aquele inciso II a que o autor se reporta não corresponde ao atual inciso II, mas ao inciso I, do aludido dispositivo.
É forçoso analisar, outrossim, o que está disposto no inciso II, do artigo 475, do diploma processual civil em vigor. Esse dispositivo determina que será caso de imposição da remessa necessária em face da sentença que julgar procedente, ainda que, parcialmente, o pedido aduzido nos embargos à execução de dívida ativa da fazenda pública.
Verifica-se, então, que a devolução oficial irá incidir tão-somente se o pedido ventilado nos embargos opostos à execução de dívida ativa da fazenda pública forem julgados procedentes, mesmo que essa procedência seja apenas parcial. Logo, necessário se faz que tal pronunciamento judicial meritório seja proferido em relação aos embargos opostos à execução de dívida ativa, em não estando relacionado à execução fiscal, não se observará, portanto, a imposição legal do duplo grau de jurisdição obrigatório.
Na mesma linha de raciocínio, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 31:
Quando a execução se funda em título judicial, nem a sentença que indefere liminarmente ou que rejeita os embargos opostos pela Fazenda, nem a que acolhe os embargos opostos contra a Fazenda Pública estão sujeitas ao reexame necessário, pois a norma alude apenas à sentença que acolhe embargos opostos à execução de dívida ativa, ou seja, execução fiscal (...).
Constata-se, que a reforma trazida pela lei n.º 10.352/2001 no que se refere à hipótese da incidência do reexame necessário preconizada no caso do inciso II, do artigo 475, do CPC, não trouxe nenhuma mudança substancial, apenas modificando o aludido inciso no sentido de empregar um melhor aprimoramento técnico na redação deste, porquanto o inciso revogado continha uma impropriedade, ao expressar "sentença que julga improcedente a execução de dívida ativa", quando, na verdade, almejava-se referir à decisão judicial meritória dos embargos opostos àquela execução.
Acentue-se, que, afora os casos de devolução oficial estabelecidos pelos incisos I e II, do artigo 475, do vigente diploma processual civil, existem outras hipóteses de incidência daquela figura jurídica, segundo se observa na obra de Oreste Nestor de Souza Laspro 32:
As leis extravagantes impõem o reexame obrigatório, segundo Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci: ‘a) nas causas relativas ao abuso do poder econômico, quando acolhidos os embargos opostos à sentença que decretar a intervenção (cf. art. 10, modificando a redação do art. 19. da Lei 4.717, de 29 de junho de 1962); na ação popular, quando declarada a carência da ação ou a improcedência do pedido formulado pelo autor (cf. art. 17, modificando a redação do art. 19. da Lei 4.717, de 29 de junho de 1965); e c) nas causas relativas à especificação da nacionalidade brasileira (cf. art. 6º, modificando a redação do § 3º do art. 4º da Lei n. 818, de 18 de setembro 1949, alterada pela Lei n. 5.145, de 20 de outubro de 1966). Em idêntico senso, outrossim fê-lo a Lei n. 6.071, de 3 de julho de 1974, com a modificação, no art. 1º, da redação do parágrafo único do art. 12. da Lei n. 1.533, de 31 de dezembro de 1951, com relação à sentença concessiva de mandado de segurança.
Por derradeiro, sublinhe-se que a devolução obrigatória incide ainda nas ações de desapropriação, quando a fazenda pública é condenada pelo dobro do valor ofertado na peça vestibular (artigo 28, § 1º, do decreto-lei n.º 3.365/41), nas ações anulatórias de retificação de registro feito pela pessoa jurídica de direito público, quando o pedido for julgado procedente (artigo 213, da lei n.º 6.739/79); nas ações de desapropriação para fins de reforma agrária, quando a condenação imposta à fazenda pública for no sentido de majorar o valor ofertado na exordial em 50% (artigo 13, § 1º, da lei complementar 76/93) e nas ações civis públicas, quando as sentenças condenatórias forem desfavoráveis à fazenda pública.
2.3. Exceções
O instituto jurídico da remessa necessária tem sido relativizado nos últimos anos, notadamente com o advento da lei n.º 10.352, de 26 de dezembro de 2001, de forma que, em algumas situações legais, não haverá a incidência daquele instituto.
Com efeito, denota-se que a intenção do legislador foi limitar a aplicação da figura excepcionalíssima do duplo grau de jurisdição obrigatório em algumas hipóteses cuja incidência não se justificaria, quer seja pela quantia da condenação imposta à fazenda pública, quer seja pela valorização que se tem dado à jurisprudência nos últimos anos. Tais exceções estão estabelecidas nos parágrafos 2º e 3º, do artigo 475, do diploma processual civil em vigor, segundo os quais:
§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência aos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.
Da leitura do § 1º, do aludido dispositivo, constata-se que a sentença prolatada nos casos das hipóteses preconizadas nos incisos I e II, do mesmo artigo, não se submeterão ao reexame obrigatório, quando a procedência dos embargos opostos à execução de dívida ativa, a condenação ou o direito controvertido posto em juízo, for de quantia não superior a 60 (sessenta) salários mínimos. Saliente-se, ainda, que esse valor está em consonância com a lei n.º 10.259/2001, vale dizer, lei dos juizados especiais federais a qual estabelece em seu artigo 13: "Nas causas de que trata esta Lei, não haverá reexame necessário". Ora, essas causas de que se refere tal artigo são as de valor até 60 (sessenta) salários mínimos, segundo se evidencia do caput, do artigo 3º, da citada lei, o qual se transcreve: "Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças".
Logo, infere-se que a exceção em comento reveste-se de caráter pragmático, tendo em vista que foi estabelecida uma quantia exata, qual seja, valor não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos.
No que tange ao § 2º, do supracitado artigo, denota-se que ficarão afastadas da devolução oficial as sentenças prolatadas nas hipóteses dos incisos I e II, daquele dispositivo, quando tais decisões estiverem embasadas em jurisprudência do plenário do egrégio STF, ou ainda, em súmula desse tribunal ou de tribunal superior competente. Por tribunal superior, entende-se STJ, STM, TSE e TST, conforme sistemática constitucional.
Acentue-se que, em seara de processo civil, cuja matéria é objeto do presente estudo, tribunal superior é o colendo STJ.
Com efeito, justifica-se essa exclusão da figura da remessa necessária, levando em consideração a tendência que paira no ordenamento jurídico brasileiro no sentido da valorização da construção jurisprudencial. Assim, as sentenças que estiverem albergadas em jurisprudência do plenário do STF, em súmula desse tribunal ou do STJ, ainda que o valor exceda a 60 (sessenta) salários mínimos, não haverá a incidência do instituto processual em apreço.
Por oportuno, têm-se as lições de Cândido Rangel Dinamarco 33:
Não são cumulativas as exigências dos § 2º e 3º do art. 475. Não haverá a remessa oficial quando a causa for de valor menor, independentemente de qualquer confronto entre a sentença e a jurisprudência dominante. Ela também não será cabível quando a sentença estiver conforme a jurisprudência dominante, não importando valor.
Sublinhe-se, outrossim, que nessa esteira de tendência de valorização jurisprudencial, constata-se que, muito embora não seja um caso de exceção à incidência da remessa necessária, as situações preconizados no caput do artigo 557, do CPC, autorizam o relator a negar seguimento à dita figura processual. Nesse viés, torna-se forçoso transcrever o aludido dispositivo:
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.
Tal situação encontra-se consubstanciada na súmula 253 34, do STJ, segundo a qual: "O art. 557. do CPC, que autoriza o relator a decidir o recurso, alcança o reexame necessário".
Sobre essa súmula, são importantes os ensinamentos de Roberto Rosas 35:
O art. 557 do CPC defere ao Relator, por decisão monocrática, negar seguimento a recurso, se manifestamente improcedente ou contrária à súmula do tribunal. A remessa necessária não é recurso, mas condição de validade da sentença. O objetivo do legislador desse dispositivo processual foi permitir o exame imediato pelo relator, e, assim, o reexame necessário devolve ao tribunal a causa, para manter ou reformar a sentença.
Urge ressaltar que há, ainda, outra exceção à remessa necessária, segundo se depreende dos ilustres ensinamentos de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery 36:
O art. 12. da MedProv 2180-35, de 24.8.2001 (DOU 27.8.2001) dispensa do reexame necessário as decisões que enumera: ‘Art. 12. Não estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição obrigatório as sentenças proferidas contra a União, suas autarquias e fundações públicas, quando a respeito da controvérsia o Advogado-Geral da União ou outro órgão administrativo competente houver editado súmula ou instrução normativa determinando a não-interposição de recurso voluntário.
Ora, se a fazenda pública federal não demonstra interesse em manejar o recurso de apelação em determinadas hipóteses que o advogado-geral da União ou outro órgão administrativo assim entender, com maior razão não deve haver a incidência do instituto excepcional do duplo exame necessário.
2.4. Efeitos
É de se notar, segundo foi dito anteriormente, que o duplo grau de jurisdição obrigatório é um instituto processual excepcionalíssimo e que visa, tão-somente, resguardar o interesse público, sendo uma decorrência lógica do princípio inquisitorial, contrapondo-se ao princípio dispositivo.
Logo, nesse ínterim, torna-se forçoso fazer uma breve distinção entre o princípio dispositivo e inquisitório.
Sobre tal matéria, disserta José Cretella Neto 37:
O princípio dispositivo é aquele segundo o qual o juiz deve decidir levando em consideração exclusivamente as alegações das partes e as provas por elas produzidas no curso do processo, para fundamentar a sentença. Em outras palavras consiste em deixar-se às partes a tarefa ou função de delimitar o âmbito da res in iudicium deducta e de estimular a atividade do juiz no processo.
Ao princípio dispositivo (também denominado princípio da controvérsia) contrapõe-se o princípio inquisitivo, em que ao juiz é conferida total liberdade, tanto na instauração da relação processual como no seu desenvolvimento; por todos os meios a seu alcance, procura o julgador descobrir a verdade real, independentemente da iniciativa ou elaboração das partes.
Modernamente, nenhum dos dois princípios, em sua pureza clássica, domina completamente o processo civil, já que as legislações processuais são mistas, apresentando preceitos tanto de um quanto de outro princípio. A razão da limitação ao princípio dispositivo é que o processo civil é uma encruzilhada onde, freqüentemente se defrontam o Direito Público e o Direito Privado. No iudicium vigoram as normas publicísticas, já que a pretensão é apreciada por um órgão do Estado; na res in iudicium deducta, ao contrário, em grande das lides, o conflito é resolvido com fundamento em regras que regulam relações jurídicas privadas, de direito material disponível (...)
No Brasil, a iniciativa para a propositura da ação é da parte, mas o impulso oficial cabe ao Poder Judiciário, por intermédio do juiz (art. 262), que dá continuidade ao feito até decisão final, independentemente da provocação dos interessados.
Nesse sentido, disserta Humberto Theodoro Júnior 38:
Caracteriza-se o princípio inquisitivo pela liberdade da iniciativa conferida ao juiz, tanto na instauração da relação processual como no seu desenvolvimento. Por todos os meios a seu alcance, o julgador procura descobrir a verdade real, independentemente de iniciativa ou a colaboração das partes. Já o princípio dispositivo atribui às partes toda a iniciativa, seja na instauração do processo, seja no seu impulso. As provas só podem, portanto, ser produzidas pelas próprias partes, limitando-se o juiz à função de mero espectador.
Modernamente, nenhum dos dois princípios merece mais a consagração dos Códigos, em sua pureza clássica. Hoje as legislações processuais são mistas e apresentam preceitos tanto de ordem inquisitiva como dispositiva.
Destarte, infere-se que, em face do caráter publicístico do processo, o magistrado deixou de ser tão-somente um espectador da relação processual, para tornar-se um ser protagonista que, muito embora seja eqüidistante das partes, impulsiona a marcha processual ao seu desfecho.
Logo, constata-se, hodiernamente, que as legislações processuais não adotam mais o princípio dispositivo em toda a sua essência, mas, ao revés, são mistas, porquanto acabam por mitigar o princípio dispositivo, adotando tanto esse, quanto o princípio inquisitivo.
Nessa esteira, pode-se frisar a legislação processual civil brasileira, na qual se encontram as manifestações não só do princípio dispositivo (artigo 265, inciso II, artigo 267, inciso VIII, do CPC, entre outros), mas também do princípio inquisitivo (artigo 130, artigo 14, parágrafo único, artigo 475, do CPC, etc.).
Superada essa questão, necessária se faz a análise dos efeitos da figura jurídica sob comento.
Com efeito, é imperioso sublinhar-se que, sem embargo dos entendimentos em contrário, foi constatado que a devolução obrigatória, muito embora tenha o mesmo procedimento da apelação, não tem natureza jurídica de recurso, sendo, portanto, considerada pela doutrina dominante como uma condição sem a qual a sentença não produzirá seus devidos efeitos. Saliente-se, outrossim, que, segundo foi analisado, aquele instituto é uma decorrência do princípio inquisitório.
Diante de tais argumentos, verifica-se que não há de se cogitar em emprestar à remessa necessária o efeito devolutivo o qual está correlatado ao princípio dispositivo, sendo esse efeito inerente aos meios impugnativos recursais.
Nesse sentido, constata-se que com o manejo do recurso há apenas a devolução ao tribunal ad quem da matéria impugnada, não podendo esse órgão jurisdicional julgar além das razões do inconformismo (tantum devolutum quantum appelatum). Esse é o efeito devolutivo.
Malgrado, há casos em que se observa outro efeito que não o devolutivo, vale dizer, nas situações relacionadas às matérias de ordem pública as quais são conhecíveis de ofício (artigos 267, § 3º e 301, § 4º, ambos do CPC), às questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro e quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento, tendo o juiz acolhido apenas um deles (artigo 515, § 1º e § 2º, do diploma processual civil). Logo, tal efeito é denominado de translativo.
Ademais, após essas considerações preliminares, denota-se que, no duplo grau de jurisdição obrigatório, há a ocorrência também do efeito translativo, haja vista a transferência integral de toda a matéria aduzida aos autos. Eis por que, em não sendo recurso a aludida figura processual, não existirão, conseqüentemente, as razões do inconformismo, as quais limitam o âmbito de julgamento do tribunal à matéria impugnada e, estando relacionada ao princípio inquisitorial, justifica-se a aplicação do denominado efeito translativo pleno.
Leciona, sobre o particular, Nelson Nery Junior 39:
A conseqüência análoga à provocada pelo efeito translativo do recurso ocorre com reexame pelo tribunal, das sentenças sujeitas ao duplo grau obrigatório (art. 475, CPC). Também aqui não se pode falar em efeito devolutivo da remessa necessária, porque se está diante de manifestação do princípio inquisitório. O que existe, na verdade, é que a eficácia plena da sentença, nos casos do art. 475, do CPC, fica condicionada ao seu reexame pelo tribunal ad quem. A sentença como um todo é que fica submetida ao reexame, de sorte que é lícito ao tribunal modificar a sentença, reformando-a ou anulando-a, total ou parcialmente.
Por oportuno, têm-se os ensinamentos de Cláudia A. Simardi 40:
(...) não consideramos a remessa obrigatória como espécie de recursal, mas como procedimento condicionante à eficácia da sentença. Nesse diapasão, não há ocorrência de efeito devolutivo propriamente dito, pois inexiste atuação voluntária do vencido em ter reexaminada a sentença que lhe foi desfavorável, para tanto praticando atos que visem à reforma total ou parcial do procedimento.
Na remessa obrigatória ocorre o reexame completo da sentença, por força de disposição legal, sem o qual não se forma a coisa julgada. O tribunal deve cumprir o requisito de reanálise das matérias julgadas em grau inferior de jurisdição, sem que fiquem estas estremadas por ato da parte vencida, de levar à revisão do juízo superior o que pretende ter reformado. Na ausência de provocação da parte interessada, e de respectivos fundamentos de rejulgamento, impõe-se que o tribunal reveja todas as matérias que foram apreciadas pelo órgão sentenciante.
Apenas com o intuito de fidelidade para com os doutrinadores que entendem o contrário, transcreve-se o posicionamento de João Carlos Souto 41:
O reexame necessário não enseja maiores controvérsias. Enquanto o tribunal ad quem não se manifestar sobre a sentença ela não produzirá efeitos, de sorte que a remessa obrigatória implica suspender a eficácia da decisão proferida pelo juiz de primeiro grau (efeito suspensivo) e devolver ao tribunal o conhecimento de toda a matéria já decidida - efeito devolutivo.
Ademais, constata-se que além do efeito translativo, existem outros dois efeitos que ocorrem na devolução oficial, quais sejam: o substitutivo, na medida em que o julgamento do órgão superior de jurisdição substitui na íntegra a decisão monocrática, desde que aquele julgamento seja meritório, tanto negando provimento, quanto provendo; e o suspensivo, já que a sentença não produzirá seus efeitos enquanto não for referendada pelo tribunal, logo, suspende-se a própria eficácia daquele pronunciamento judicial. Não apresentam maiores questionamentos em sede doutrinária, esses dois supracitados efeitos.
Torna-se curial frisar as lições de Cândido Rangel Dinamarco 42:
Na realidade, as sentenças indicadas nos incisos desse artigo, não produzem jamais eficácia alguma, porque é cediça em direito processual a regra de que o julgamento feito pelo tribunal substitui sempre aquele que foi objeto do recurso, quer se negue, quer dê provimento a este. O confirmar a sentença não é outorgar-lhe eficácia ou talvez definitividade, mas emitir novo julgamento conforme. É o Poder Judiciário decidindo novamente a causa, agora pela voz de um órgão mais elevado, mas sempre mediante um ato deste, da responsabilidade deste - e tal é a interpretação pacífica da substituição do inferior pelo superior, positivida no art. 512. do Código de Processo Civil. Por isso é que, proferida a sentença contra a Fazenda Pública, a causa sobe ao tribunal e as partes só sentirão os efeitos de um julgamento sobre sua vida fora do processo, por força do acórdão que este proferir, não mais da sentença. Não se trata de somente negar a autoridade de coisa julgada às sentenças nas hipóteses indicadas em lei, mas de excluir-lhes por completo qualquer eficácia – porque a devolução oficial tem ‘efeito suspensivo’, não permitindo sequer a execução provisória das sentenças sujeitas ao regime do art. 475.
Urge, outrossim, fazer alusão à súmula de n.º 423 43, do colendo STF, segundo a qual: "Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege".