CONCLUSÕES
Urge, por ora, após os comentários acerca do instituto processual denominado de remessa necessária, fazer uma síntese dos principais pontos do presente trabalho.
1. A aparição da remessa necessária no nosso ordenamento jurídico está correlatada com as leis criminais de caráter inquisitorial que imperavam em Portugal, à época das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas e, que, de certa forma, foram transportadas para o processo civil brasileiro como um meio de salvaguardar o interesse público.
2. Em que pese haver divergências em seara doutrinária quanto à constitucionalidade do reexame obrigatório, este trabalho foi embasado no sentido da constitucionalidade da aludida figura jurídica, porquanto a devolução oficial, por si só, não ofende o princípio isonomia, tendo em vista que esse princípio, em seu aspecto substancial, apenas irá ser alcançado na medida em que forem tratados igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata proporção da sua desigualação. Esse tratamento desigualatório justifica-se nos litígios envolvendo a fazenda pública, uma vez que, quando em juízo, ela representa interesses da coletividade, diferentemente do particular que com ela litiga.
3. O duplo grau obrigatório não é uma espécie recursal – eis por que não atende e nem satisfaz os requisitos e características para tanto – mas, ao revés, é uma obrigação legal imposta ao magistrado, sendo uma condição sem a qual a sentença não produzirá os seus devidos efeitos, vale dizer segundo a doutrina, uma condição de eficácia da sentença. Tanto é assim que, na hipótese de o juiz não remeter os autos ao tribunal superior, esse, por meio do seu presidente, deverá avocá-los.
4. Sendo a devolução oficial uma figura excepcional, deve ser interpretada restritivamente, de forma que incida, tão-somente, nas hipóteses preconizadas pelo legislador infraconstitucional. Tais hipóteses encontram-se previstas nos incisos I e II, do artigo 475, do CPC; artigo 28, § 1º, do decreto-lei n.º 3.365/41; artigo 213, da lei n.º 6.739/79; dispositivo 13, § 1º, da lei complementar 76/93, dentre outras citadas, no bojo do presente trabalho.
5. Frise-se que existem situações em que, a prima facie, poder-se-ia pensar que haveria a incidência da remessa necessária, tendo em vista existência de sentença condenatória desfavorável à fazenda pública. Ocorre que o legislador achou por bem não inseri-las no âmbito do reexame obrigatório, instituindo, portanto, exceções àquela figura processual, dentre as quais se citam os §§ 2º e 3º, do artigo 475, do CPC e o dispositivo 12 da medida provisória 2180-35/2001.
6. Muito embora a remessa necessária tenha o mesmo procedimento da apelação, com ela não se confunde, já que essa é uma espécie recursal, enquanto a remessa é uma condição de eficácia da sentença – sendo uma manifestação do princípio inquisitivo – logo, constata-se que não se deve cogitar em emprestar ao duplo grau obrigatório o efeito devolutivo recursal (tantum devolutum quantum appelatum), mas, sim, a ocorrência do efeito translativo, porque, não sendo recurso a aludida figura processual, não existirão, conseqüentemente, as razões do inconformismo as quais limitam o âmbito de julgamento do tribunal ad quem e, estando atrelada ao princípio inquisitorial, justifica-se a aplicação do efeito translativo. Ainda, em relação à devolução oficial, observam-se outros dois efeitos, a saber, suspensivo e substitutivo.
7. O princípio da proibição da reformatio in pejus consiste na impossibilidade do tribunal, quando do julgamento do recurso manejado apenas por uma das partes, agravar a situação do recorrente quanto à matéria não impugnada. Desta feita, infere-se que a proibição da reformatio in pejus é uma decorrência lógica do princípio dispositivo, estando relacionada com o efeito devolutivo que se aplica às espécies recursais. São exceções àquele princípio da proibição: quando houver recursos de ambas as partes – sucumbência recíproca – as situações preconizadas nos §§ 1º e 2º, do artigo 515, do CPC e artigo 516, também do CPC (se bem que a situação prevista nesse dispositivo já está de certa forma inserida no § 1º, daquele primeiro artigo).
8. A figura processual excepcional da remessa necessária é, como já dissemos, uma condição de eficácia da sentença, manifestação inarredável do princípio inquisitivo e, em face disso, aplica-se o efeito translativo – transferência integral da matéria – logo, infere-se que o tribunal ad quem tem ampla liberdade de atuação, podendo, deste modo, agravar a situação da fazenda pública, quando do julgamento do reexame obrigatório. Vale dizer que não se aplica o princípio da proibição da reformatio in pejus em relação à remessa necessária, o qual princípio incide, apenas, e tão-somente, quando da ocorrência do efeito devolutivo, isto é, em relação aos recursos. Deste modo, o equívoco, permissa venia, da súmula 45 do colendo STJ, ao proibir o agravamento da situação da fazenda pública, quando do julgamento do reexame obrigatório, paira no viés de emprestar a tal instituto o efeito devolutivo recursal, quando, na verdade, evidencia-se que, por ser a remessa necessária uma imposição legal, ou seja, uma condição sem a qual a sentença não produzirá os seus devidos efeitos, aplica-se o efeito translativo.
9. Afirmou-se por diversas oportunidades no bojo do presente estudo que, muito embora não se concorde com a manutenção da remessa necessária no nosso ordenamento jurídico, a aludida figura processual não é inconstitucional, porquanto não se vislumbra ofensa ao princípio constitucional da igualdade. Contudo o mesmo não se afirma quanto à interpretação que se vem atribuindo à remessa oficial, mormente pela adoção da tese da proibição da reformatio in pejus, quando do julgamento de tal figura processual (tese essa consubstanciada na súmula 45 do STJ), importa, data venia, num desvirtuamento da finalidade para a qual foi criado o instituto da devolução oficial, qual seja, salvaguardar o interesse público que se caracteriza nos litígios envolvendo a fazenda pública. Logo, o que está eivado de inconstitucionalidade, ao meu ver, não é a remessa necessária enquanto instituto processual, mas, sim, as interpretações atribuídas a essa figura, quando de sua aplicação ao caso concreto. Acentue-se, portanto, que aquela tese da proibição da reformatio in pejus – súmula 45 do STJ – mostra-se de todo incompatível, permissa venia, com a ordem constitucional vigente, tendo em vista a ofensa direta ao princípio isonômico, pois, parafraseando o eminente jurista Nelson Nery Junior, o escopo precípuo da remessa necessária não é tutelar a fazenda pública, mas estabelecer como critério de segurança a confirmação da sentença desfavorável à fazenda pública pelo tribunal ad quem. Em face dessa postura inconstitucional da súmula 45 do STJ, bem como o comportamento processual da fazenda pública, utilizando-se de prerrogativas processuais com finalidades outras pelas quais foram instituídas, é que não se concorda com a manutenção da remessa necessária no ordenamento jurídico pátrio.
REFERÊNCIAS
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 38 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v.1.
Notas
1 PACHECO, José da Silva. Evolução do processo civil brasileiro: desde as origens até o advento do novo milênio. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 44.
2 PACHECO, 1999, p. 45.
3 Ibidem, p. 51.
4 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 54.
5 Ibidem, p. 54-55.
6 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 126.
7 PACHECO, 1999, p. 104.
8 GUEDES, Jefferson Carús. Duplo grau ou duplo exame e atenuação do reexame necessário nas leis brasileiras. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coords.).Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 313.
9 PACHECO, 1999, p. 25.
10 LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 170-171.
11 LASPRO, 1995, p. 171.
12 DINAMARCO, 2003, p. 127.
13 PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 605.
14 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 21-22.
15 Ibidem, p. 39.
16 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 7. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002. p. 64.
17 NERY JUNIOR, 2002. p. 56.
18 SIMARDI, Cláudia A.. Remessa obrigatória (após o advento da lei 10.352/2001). In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 113-114.
19 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao código de processo civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 5. p. 163.
20 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 233.
21 NERY JUNIOR, 1997, p. 60.
22 MOREIRA, op. cit., p. 233.
23 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 813.
24 SIMARDI, 2002, p. 116.
25 CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 86.
26 DINAMARCO, 2003, p. 128.
27 DINAMARCO, 2003, p. 128-129.
28 NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 813.
29 NERY JUNIOR, 1997, p. 63-64.
30 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2002. v. 1, p. 213.
31 NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 814.
32 LASPRO, 1995, p. 169-170.
33 DINAMARCO, 2003, p. 133.
34 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n.º 253. In: NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 1658.
35 ROSAS, Roberto. Direito sumular: comentários às súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 396.
36 NERY JUNIOR; NERY, op. cit., p. 81.
37 CRETELLA NETO, 2002, p. 182-183.
38 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 38 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 1, p. 23.
39 NERY JUNIOR, 1997, p. 413-414.
40 SIMARDI, 2002, p. 125-126.
41 SOUTO, João Carlos. A união federal em juízo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 233.
42 DINAMARCO, 2003, p. 130.
43 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.º 423. In: NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 1641.
44 MOREIRA, 2003, p. 433-434.
45 CRETELLA NETO, 2002, p. 292.
46 NERY JUNIOR, 1997, p. 158.
47 Ibidem, p. 156.
48 DINAMARCO, 2002, p. 663.
49 MOREIRA, 2003, p. 439.
50 NERY JUNIOR, 1997, p. 157.
51 NERY JUNIOR; NERY, 2003, p. 887.
52 CRETELLA NETO, 2002, p. 292.
53 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº45. In: NERY JUNIOR; NERY, 2002, p. 1651.
54 SOUTO, 2000, p. 233.
55 NERY JUNIOR, 1997, p. 162-163.
56 NERY JUNIOR, 2002, p. 65.
57 NERY JUNIOR, 2002, p. 65.
58 DINAMARCO, 2003, p. 126.
59 NERY JUNIOR, 1997, p. 163-164.
60 SOUTO, 2000, p. 234.