4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma primeira análise dos pontos eleitos para o texto proposto, em especial a estática e a dinâmica jurídicas e a idéia de norma hipotética fundamental de Kelsen, e a concepção autopoiética do direito, poderia sugerir uma aproximação entre estas teorias, conforme enfatizou Goyard-Fabre ao informar que seria evidentemente tentador aproximar as posições de criação e aplicação do direito como sistema que se auto-regula e se reproduz.
No entanto, estes mesmos aspectos demonstram posição diametralmente opostas no sentido de concepção do direito, porque partem do que denominamos de mirantes epistemológicos totalmente contrários: para Kelsen, a análise do direito dá-se a partir da norma, ou seja, de um ponto de vista interno, sendo que para Luhmann, esta análise sobre o direito parte da análise social. As próprias matrizes teóricas do direito, assim, separam-se pela perspectiva e pela forma de busca da verdade, sendo que para a teoria kelseniana, a forma de abordagem é calcada na filosofia analítica baseada no Círculo de Viena, enquanto para Luhmann, esta busca passa a ser a partir de um ponto de vista interdisciplinar.
Conforme restou demonstrado, a tentativa de análise do direito enquanto ciência, levou Kelsen a compreendê-lo, a partir de sua estrutura normativa, portanto de um ponto de vista interno, afastando de sua análise todo e qualquer valor social, seja moral, político, cultural, etc., radicalizando o positivismo jurídico e entendendo o direito como criador do próprio direito a partir da idéia da norma hipotética fundamental.
Neste passo, os sistemas estático e dinâmico kelsenianos reproduzem toda a idéia de relação intersubjetiva – e não é calcada em consenso mas na idéia de coação do Estado – e estrutural no sentido de criação, ou produção normativa, tudo posto para a redução da complexidade também aceita por Kelsen e motivo da sua postura de purificação do estudo do direito.
Outra constatação advém do fato de que para a teoria kelseniana o Estado, naquela concepção oriunda do século XVI, tendo como principal característica a soberania, aparece como elemento chave na imposição da força coativa que detém, se justificando por esta, em última análise, sem prejuízo da idéia da norma hipotetica fundamental, a aceitação do direito, da lei, da norma, por todos.
Por outro lado, o afastamento dos fatores "externos" ao direito, como moral, política, etc, pretendido pela purificação axiológica (ou as cinco purificações de Kelsen), posta como forma de garantir a sua autonomia enquanto ciência, mostra-se totalmente oposta a teoria oriunda da matriz pragmático-sistêmica.
Para Luhmann, todo o enfoque interno do direito deve, para sua análise, ser afastado, posto que não reflete sobre a realidade, sendo substituída pela análise interdisciplinar dos sistemas sociais que, embora diferenciados, comunicam-se e influenciam-se mutuamente, contrapondo-se, pois, à idéia de purificação proposta por Kelsen, rompendo profundamente com a idéia, ainda dominante, da dogmática.
Ademais, a própria perspectiva autopoiética leva em conta, com base na contingência e nos acoplamentos estruturais dos sistemas, a influência que o meio e os outros sistemas trazem para o direito, principalmente em suas dimensões, temporal, social e prática, onde se verifica a comunicação, na teoria sistêmica, entre a estrutura normativa e o social e a práxis significativa [27].
Dessa forma, embora o direito se auto-regule e se reproduza a partir de suas estruturas internas, tem ele esta comunicação com os fatores que, para Kelsen, retirariam a autonomia da ciência do direito, como os valores presentes na sociedade.
Estas duas matrizes teóricas sobre o direito, portanto, mostram-se, não só por estes aspectos, colocados aqui de forma panorâmica como anteriormente se disse – mesmo porque tratam-se de teorias bastante complexas e que demandariam um espaço muito maior do que o aqui disponível – mas por outros postos pelos autores com mais detalhes, diametralmente opostas, sendo que a visão do direito proposta por Niklas Luhmann, mormente pela análise conjuntural do direito e de outros sistemas, tem-se destacado como uma proposta séria apta a combater o normativismo kelseniano que, embora não mais corresponda às espectativas da sociedade contemporânea, ainda apresenta-se com vigor em muitos pensadores do direito e na maioria dos sistemas jurídicos do ocidente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Maria Cecília M. de. Construindo o saber: metodologia científica, fundamentos e técnicas. 3. ed. Campinas: Papirus, 1991
COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsn. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994
LUHMANN¸ Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
_________________. Legitimação pelo procedimento. Brasília: UnB, 1980
NEVES, Clarissa Eckert Baeta; et. alli. Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, Goethe-institut/ICBA, 1997
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1998
Notas
1 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1998, p. 33
2 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2001
3 CARVALHO, Maria Cecília M. de. Construindo o saber: metodologia científica, fundamentos e técnicas. 3. ed. Campinas: Papirus, 1991, p. 66
4 Idem. Ibidem.
5 Idem. Ibiem
6 Idem, ibidem, p. 69
7 ROCHA, Leonel Severo. Op. Cit., p. 28
8 ROCHA, Leonel Severo. Op. Cit. p. 92
9 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 3
10 ROCHA, Leonel Severo. Op. cit. p. 54
11 Rocha, Leonel Severo, Op. Cit. p. 28
12 Hans Kelsen, apud Fábio Ulhoa Coelho, p. 4
13 Esta terminologia, à toda evidência, não é utilizada por Kelsen. Preferimos utilizá-la mesmo como recurso didático para a aproximação – ainda que hipotética – com a teoria autopoiética neste sentido estrito de auto criação do direito.
14 KELSEN apud GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos das ordem jurídica, p. 223
15 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 12
16 ROCHA, Leonel Severo. Op. cit. p. 82
17 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; et. alli. Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, Goethe-institut/ICBA, 1997
18 LUHMANN¸ Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 45
19 Iedem. Ibidem. p. 84
20 LUHMANN, Niklas, Op. cit. p. 45-46
21 Niklas Luhmann apud Neves, Op. cit. p. 25
22 NEVES, Clarissa Eckert Beta, Op. cit. p. 25
23 FEDOZZI, Luciano; et alli. Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, Goethe-institut/ICBA, 1997, p. 27
24 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 12-13
25 LUHMANN apud ROCHA, Op. cit., p. 97
26 GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 222
27 ROCHA, Leonel Severo, Op. cit. p. 97