Responsabilidade civil pré-contratual

10/03/2017 às 19:07
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Texto elaborado em Lisboa - Portugal, sob a óptica da legislação deste país, acerca da Responsabilidade Civil Pré-Contratual.

1. INTRODUÇÃO

Antes da assinatura do contrato, as partes contraentes praticam diversos actos negociais (preliminares) para ajustar seus interesses, os quais serão futuramente reduzidos em contrato. A este período chamamos de fase pré-contratual.

Antigamente entendia-se que nesta fase, as partes não tinham qualquer direito, em razão de ainda não haver qualquer documento assinado que manifestasse a vontade dos contraentes e, assim, os obrigassem.[1]

Este pensamento começa a mudar em 1861, quando Jhering, verificando que um contrato nulo poderia trazer situações de responsabilidade, escreve uma obra onde qualifica uma situação como a de culpa na formação dos contratos, designada pela expressão culpa in contrahendo.[2]

A partir de então diversos Estados estrangeiros foram, de forma acanhada, incorporando em seus ordenamentos jurídicos, vindo a ter repercussão no art. 227º do Código Civil Português o qual prescreve o dever de actuação segundo as regras de boa fé durante as negociações para a formação do contrato, sob pena de responder pelos danos causados.

Artigo 227.º - Culpa na formação dos contratos

1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.” (grifo nosso)

Note-se que a lei impõe a observância das regras de boa fé durante todo o processo pré-contratual, entendendo, assim, que basta o facto de se entrar em negociação que estarão, as partes, susceptíveis de criarem uma situação de confiança entre si, confiança essa que é imediatamente tutelada pelo direito (esclarecido melhor no item 5 – Tutela de confiança), mesmo antes da formalização do contrato.

Exatamente em razão dessa confiança é que a lei determina que as partes devam proceder segundo as regras de boa fé, incutido neste princípio os deveres de lealdade, sigilo, informação e diligência que serão analisados individualmente no item 4 deste artigo.

A violação desses deveres constitui um acto ilícito e quem o faz deve indemnizar o lesado, de acordo com o grau e complexidade verificados no caso concreto.

Há, todavia, quem simplesmente rompe o contrato sem cometer um ilícito, simplesmente por entender que não há acordo favorável para a concretização do contrato. Nestes casos, e por conta da tutela da confiança, deve-se verificar quais foram os prejuízos materiais causados, para ressarcimento.

Seja em razão da violação de um dever pré-contratual ou em razão da simples rutura contratual poderá surgir responsabilidade pré-contratual os quais serão analisados nos casos-padrão catalogados pela doutrina e conhecidos pela jurisprudência, estudados mais a frente neste artigo.

 


2. FONTES E ENQUADRAMENTO SISTEMÁTICO LEGAL

2.1. Fonte: a culpa na formação dos contratos é um preceito que foi exportado do direito alemão, a partir da obra de Jhering, tendo influenciado diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros, como o código italiano (arts. 1337º e 1338º), Grego (arts. 197º e 198º) e também o Português.

2.2. Enquadramentos: O art. 227º, do Código Civil Português, consagra a responsabilidade civil pré-contratual, surgindo, com isso, o dever de indemnizar os danos causados, por quem culposamente violar as regras da boa fé durante a negociação.

Verifica-se também o surgimento desta responsabilidade no artº 229, nº1, in fine, CC, que prescreve que o se o proponente receber a aceitação tardia, mas emitida tempestivamente, tem o dever de avisar imediatamente o aceitante que não considera a aceitação eficaz.

No art. 898º do CC, inserido na secção que trata de venda de bens alheios, verifica-se a responsabilidade do contraente, que tenha agido dolosamente, em indemnizar a outra parte de todos os prejuízos sofridos.

O art. 899º do CC, Trata da indemnização quando não há dolo nem culpa, sendo que nesse sentido a indemnização só compreende os danos emergentes que não resultaram de despesas voluptuárias.

O art. 908º do CC, disciplina que, em caso de dolo, o vendedor deve indemnizar o comprador pelos prejuízos que este não sofreria caso o contrato não tivesse sido celebrado. Com isso, temos o dano da confiança, conhecida pela doutrina como interesse negativo.[3] Neste caso, por haver dolo, a parte responde pelos danos emergentes e também pelos lucros cessantes.

Já no art. 909º do CC, estamos diante da obrigação do vendedor de indemnizar o comprador, somente em razão dos danos emergentes, nos casos de anulação fundada em simples erro, ainda que não tenha havido culpa de sua parte.

Para além do Código Civil encontramos a responsabilidade civil pré-contratual em diversos diplomas legais, inclusive na Constituição, nomeadamente: art. 266º, nº 2 da CRP; art. 9º, nº 1, da Lei de Defesa do Consumidor; artigo 304º-A, nº 2, do Código de Valores Mobiliários; art. 102º, do Código do Trabalho; art. 23º, da Lei do Contrato de Seguro; arts. 6º-A e 181º, do Código do Procedimento Administrativo; arts. 76º, nº3, 79, nº4 e 105º, nº3, do Código dos Contratos Públicos.

 


3. PRINCÍPIO E DEVERES PRÉ-CONTRATUAIS

3.1. Princípio da Boa fé

O significado do princípio da boa fé não está expresso em lei, cabendo a doutrina balizar seu entendimento. Carlos de Almeida utiliza esta expressão em sentido objetivo (ou ético), isto é, enquanto conjunto de regras de conduta socialmente correta. Não tem índole jurídica, apesar de ser utilizada no mundo jurídico como análise de factos/actos sociais.

A ideia do Princípio da Boa fé é tão extensa que alcança a compreensão de que as partes devem agir de acordo com os deveres de informação, de lealdade e de sigilo. Para cada dever será dedicado um subitem, a seguir.

3.2. Dever de Informação

A troca de informações constitui a base do diálogo para a conclusão de um contrato. Sem esta comunicação entre as partes, não há como se formar entendimento sobre o que se negoceia.

Apesar dessa importância, nem sempre é possível prestar todas as informações acerca de algo que se queira vender, seja por questões de segredo industrial/comercial, seja por questões de competitividade. Às vezes até por má fé, para encobrir certos problemas ou deficiências do produto.

O sistema jurídico, reconhecendo o desequilíbrio institucional entre as partes, protege aquele que dispõe de menos informações.[4]

É nesse sentido que encontramos diversos diplomas legais tratando da obrigação de prestar certas informações as quais devem ser em geral: completa, verdadeira, atual, clara, objetiva, adequada e lícita.

3.3. Dever de lealdade

O dever de lealdade é de difícil definição e se mostra como uma faceta do princípio da boa fé.

Este dever está relacionado com a honestidade nas práticas negociais, não havendo, porém um significado decisivo sobre a expressão.

Para saber se o dever de lealdade foi quebrado, é necessário verificar se no caso concreto o comportamento praticado seria considerado como desonesto.

3.4. Dever de Sigilo

O dever de sigilo, ou confidencialidade, pode ser visto como um dos requisitos do dever de lealdade.

No decorrer da negociação as partes têm acesso a dados e informações técnicas revelados em razão das necessidades das partes em celebrar o acordo. A própria existência da negociação pode estar sujeita a sigilo.

A parte que, com intuito de obter informações, simula uma negociação está cometendo um ilícito ainda mais grave, pois além da quebre do sigilo, também age de forma desleal, razão pela qual alguns autores entenderem que o dever de sigilo é uma especificação do dever de lealdade.

3.5. Dever de Diligência

Os deveres acima mencionados não conseguem preencher todas as possibilidades para se concluir o princípio da boa fé. É necessário introduzir deveres suplementares para se tentar alcançar toas as nuances de seu significado.

Um deles é o dever de diligência, que tem por objeto a obtenção da informação necessária para a decisão e a clareza usada nas declarações contratuais.[5]

Ser diligente é ser cuidadoso, prudente, ter atenção sobre os pontos essenciais quando se irá decidir em uma negociação.

Latente fica esse dever com o entendimento do artigo 257, nº 2 do CC, quando trata da incapacidade acidental, esclarecendo que o facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.

 


4. TUTELA DA CONFIANÇA

Conforme já informado, o direito tutela a relação de confiança havida entre as partes durante a negociação. No entanto, para que seja resguardado esse direito corretamente, precisa-se verificar a coexistência dos seguintes elementos:

a. Uma situação de confiança imputável a determinada pessoa;

b. Justificação dessa confiança;

c. Investimento de confiança; e

d. Boa fé de quem confiou.

Para merecer a proteção legal em razão dessa confiança, o lesado deve ter confiado e investido na confiança criada.

Contudo, a doutrina e jurisprudência entende que a tutela da confiança deve ser usada como critério para verificar se quem invoca a violação das regras de boa fé merece a proteção do direito.

Explica-se. Se a parte tem um comportamento contraditório ou incoerente, de quem aparentemente desvaloriza a relação negocial e, mais tarde, invoca as regras da quebra do princípio da boa fé, não terá seu direito tutelado, em razão da máxima latina venire contra factum proprium.

 


5. CASOS-PADRÃO

Conforme esclarecido pelo Doutrinador Carlos de Almeida, No direito português, reconhecem-se 3 (três) tipos de situações (socialmente) típicas, conhecidas como casos-padrão, em que pode ocorrer a responsabilidade civil pré-contratual por violação das regras da boa fé. Será divido sistematicamente conforme verifica-se em sua doutrina.[6]

5.1. Contratos inválidos ou ineficazes[7]

Nesse conjunto estão inseridos os contratos nulos, os contratos anulados, os contratos ineficazes stricto sensu e os contratos inexistentes.

Sempre que houver violação dos deveres de lealdade, informação ou de diligência acarretando invalidade, ineficácia ou inexistência haverá imputação de responsabilidade.

Para enriquecer os tipos dessa responsabilidade recorremos ao ilustre professor Nuno Manuel Pinto Oliveira, o qual entende que esta responsabilidade pode ser objetiva ou subjetiva.

A responsabilidade objetiva se encontra no art. 899º, CC, sobre a compra e venda de bens alheios e no art. 909º, CC, sobre a compra e venda de bens onerados, na qual o vendedor deve indenizar o comprador, ainda que agindo sem dolo nem negligência.

A responsabilidade subjetiva é mais extensa, pois advém de diversas situações fundadas na ilicitude e na culpa correspondentes à aplicação do 227º do Código Civil.

Insta mencionar que este artigo contém um princípio semelhante no Código italiano, art. 1337º. Além disso, o Código italiano ainda possui o art. 1338º, que trata especificamente sobre a responsabilidade pré-contratual de contrato inválido.

Por não haver regra análoga no Código Português, sobrou aos doutrinadores Portugueses e jurisprudência esmiuçar os artigos pertinentes do código para se aplicar as responsabilidades aos casos de invalidade ou ineficácia dos contratos.

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A responsabilidade corresponderá ao art. 227º sempre que estiverem preenchidos os requisitos gerais da tutela da confiança (item 5 deste artigo).

Os artigos 898º e 908º, ambos do Código Civil trazem casos de nulidade e anulação do contrato, respetivamente, quando há conhecimento do vendedor da causa de invalidade, compreendendo assim os danos no interesse contratual negativo.

Com relação aos efeitos dessa responsabilidade, pode acontecer que a invalidade ou a ineficácia do contrato seja arguida por aquele (ou contra) a quem é imputável a situação de confiança, com isso haverá indenização dos danos compreendidos no interesse negativo.

5.2. Contratos válidos e eficazes

Há de se entender que nesse grupo estão os contratos convalidados, isto é, contratos que poderiam ser anulados, seja por dolo, erro, coação ou usura, mas a parte prejudicada ainda não o fez (vide art. 287º, CC).

Por haver erro e/ou dolo de uma parte para a concretização do negócio, é notório que houve violação das regras da boa fé durante os actos preliminares, seja em razão, por exemplo, de falta de informação, ou de esclarecimento, lealdade, ou ainda de sigilo.

Quando o acto que poderia anular o contrato foi determinante para para sua conclusão o lesado terá direito a anulação e indenização, conforme arts. 253º e 154º do Código Civil. Mas se o acto foi incidental o lesado pode optar por modificar o contrato, v.g. redução do valor do preço, não obstante a indemnização pelo facto ilícito.

Por haver ilícito neste caso, a parte infratora deverá indemnizar o lesado dos danos emergentes e dos lucros cessantes.

5.3. Contratos não concluídos

Este é o caso da interrupção ou rutura de negociação (rompimento da negociação na fase pré-contratual). Nesse conjunto também deve-se compreender os casos em que as negociações não iniciaram ou depois de terminadas, não houve assinatura do contrato.

Em regra as partes são livres para continuar ou não a negociação, podendo concluir ou não o contrato. E esta regra funda-se no princípio da autonomia privada, consagrada no art. 405, CC.

Segundo o i. Carlos de Almeida a responsabilidade depende da frustração da expectativa do lesado quanto à conclusão, prorrogação ou renovação de um contrato.[8]

Nesse ponto, coloco meu modesto ponto de vista, data vênia, por não entender ser a responsabilidade condicionada a frustação da expectativa do lesado; primeiro por ter caráter subjetivo, segundo, pois, se houve prejuízo deve ser reparado, independente de qualquer frustração.

Nesse caso-padrão, podemos encontrar os casos em que uma das partes inicia a negociação sem interesse real em chegar a um acordo; ou em que uma das partes se recusa continuar a negociação; ou, ainda, em que uma das partes se recusa a assinar o contrato, após a conclusão de todas as tratativas.

O acordão do STJ de 05/02/81, se deparou com um dos casos acima, em que após concluída todas as tratativa de um acordo de cessão de cotas sociais, os sócios cedentes se desligaram e os novos membros iniciaram seus actos de gestão, causando diversos prejuízos a sociedade. No momento da outorga da escritura pública os cessionários, sem justificativa, se recusaram a assinar o contrato. O STJ julgou a obrigatoriedade da assinatura do contrato, para além de indemnizar os cedentes. Este é o chamado interesse contratual positivo.

O STJ, acerca da rutura de negociação, tem o seguinte entendimento: interromper a negociação é natural, faz parte da liberdade contratual, não estando ninguém obrigado a assinar um contrato só porque iniciou a negociação.

Contudo, não afasta o dano que uma parte pode causar a outra. Sendo que se este dano foi em razão de culpa do agente, então o mesmo responderá pelos danos emergentes. Sendo este dano causado em razão de dolo, então o mesmo responde pelos danos emergentes e lucros cessantes.

 


Notas

[1] Observação 1: No âmbito da autonomia da vontade as partes podem não assinar o contrato, por entender que o mesmo não representa seus interesses, sua vontade, não gerando obrigações aos mesmos.

Observação 2: Lembramos que somente com o não cumprimento de uma obrigação é que surge a responsabilidade. Como na fase pré-contratual não havia obrigação, não havia razão para se falar em responsabilização.

[2] Rudolf Von Jhering, “culpa in contrahendo oder Schadensersatz bei nichtigen oder nicht zur Perfection gelangten Verträgen, em jhjb 4 (1861), pp. 1-113.

[3] O interesse negativo, aceito majoritariamente pela doutrina e jurisprudência se contrapõe com o interesse contratual possitivo. Neste último, tem-se o entendimento da indemnização para cobrir os danos totais do contrato, como se o mosmo tivesse sido cumprido. Certas doutrinas consideram em casos específicos, utilizando como base o art. 562º do CC.

[4][4] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, Contratos de Liberdade, de Cooperação e de Risco. 2ª edição. Almedina, 2013. Pág. 199.

[5] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, Contratos de Liberdade, de Cooperação e de Risco. 2ª edição. Almedina, 2013. Pág. 207.

[6] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, Contratos de Liberdade, de Cooperação e de Risco. 2ª edição. Almedina, 2013. Pág. 197.

[7] O i. doutrinador entende que devem ser incluído também os contratos inexistentes.

[8] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, Contratos de Liberdade, de Cooperação e de Risco. 2ª edição. Almedina, 2013. Pág. 198.

 


Bibliografia:

ALMEIDA, Carlos Ferreira de, Contratos III, Contratos de Liberdade, de Cooperação e de Risco. 2ª edição. Almedina, 2013. [Fonte principal do trabalho]

OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, Princípios de Direito dos Contratos. 1ª edição. Coimbra Editora, 2011.

COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações. 1ª edição revista e actualizada. Almedina.

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações. Volume I. 9ª edição. Almedina.

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Sobre o autor
Daniel Maximo

Advogado e Mestrando em Direito no Instituto Universitário de Lisboa - ISCTE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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