O roubo cometido com arma de brinquedo

22/03/2017 às 11:29
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O uso de armas de brinquedo para roubo exige prova pericial. A teoria objetiva defende que a arma deve ter potencial para causar lesão física, enquanto a subjetiva considera o temor da vítima.

A comercialização de simulacros de armas, muito parecidas com as verdadeiras, é proibida por lei desde os anos 1990. Nem mesmo a venda de revólveres de brinquedo é permitida. No entanto, a produção dessas réplicas não para. De acordo com o ISP, em 2014, foram apreendidas 1.589. Tanto em 2015 quanto no ano passado, a quantidade foi exatamente a mesma: 1.508.

Se o Estado não consegue sequer controlar a circulação das armas desviadas de empresas privadas e corporações de segurança, o que dizer das armas falsas?

Questão controvertida surge a partir do momento em que o agente usa uma arma de brinquedo para a consumação do crime de roubo.

Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, 7ª edição, 1983, pág. 267) critica jurisprudência, a seu ver incompreensível, segundo o qual o emprego de arma de um revólver de brinquedo é o bastante para configurar o crime de roubo qualificado(RT 411/282; 434/422; 455/434). Disse ele, em suas lições, que um revólver de plástico ou de papelão não é arma na realidade dos fatos, mas tão-somente uma errônea interpretação da vítima.

De toda sorte, é ônus processual da acusação trazer prova pericial que demonstre que arma usada no crime tinha potencial para causar lesão a integridade física.

Ademais, exigir-se-ia o efetivo emprego da arma, para poder intimidar, não caracterizando a qualificadora o simples porte(RT 685/336). Data vênia, basta, porém, que seja portada ostensivamente, como verdadeira ameaça implícita à vítima, configurando o crime de roubo qualificado(496:309).

A teoria objetiva defende que para o agravamento da pena é necessário que a arma utilizada tenha uma potencialidade objetiva de lesionar a integridade física da vítima, sendo mister demonstrar o perigo real proporcionado pela utilização da arma, que é um instrumento hábil a vulnerar a integridade física de alguém. Seria a arma de emprego tal instrumento?

Para os adeptos da teoria subjetiva, a qualificadora, como muitos penalistas a chamam, deveria ser aplicada em função do aumento do temor da vítima em relação ao objeto utilizado e que em virtude do desconhecimento por parte da vítima de sua natureza falsa, seria apta a ensejar a aplicação da causa de aumento da sanção. Ora, são conhecidos casos de diversas pessoas que sofrem essa agressão e passam a necessitar de cuidados psicológicos, após o crime, e, pela mera presença da arma, não importando se de brinquedo ou não, entregam seus pertences para salvar suas vidas. Assim o entendimento que se viu(JSTJ 36/407; 56/323, dentre outros).

Com esse entendimento foi editada a Súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça, que veio a ser cancelada em 2001, após o julgamento do Recurso Especial 213.954 – SP.

Para os adeptos da teoria objetiva tal entendimento contrário contraria o princípio da proporcionalidade por tratar, de forma igual, o autor do roubo que utiliza arma de fogo e outro que se utiliza de um simulacro. Assim haverá apenas o crime de roubo sem haver o acréscimo da pena.

A isso se soma que com a vigência da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre o registro e porte de arma de fogo e define novos crimes não é mais incriminada a conduta de utilização de arma de brinquedo ou simulacro, que era antes prevista no artigo 10, § 1º, II, da Lei 9.437, já revogada.

Veja-se a lição aqui trazida de Luiz Flávio Gomes( STJ cancela Súmula 17 – arma de brinquedo não agrava o roubo) :

“Em primeira instância o réu foi condenado por roubo agravado (CP, art. 157, § 2º, inc. I) em razão do emprego de arma de brinquedo. O TACRIM-SP, com sabedoria, afastou a causa de aumento de pena entendendo que arma de brinquedo não é arma. O Ministério Público do Estado de São Paulo, com fundamento na Súmula 174 do STJ ("No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena"), interpôs Recurso Especial (213.054) visando à reforma do acórdão, com restabelecimento da decisão de primeira instância.

O relator do REsp, Min. José Arnaldo da Fonseca, negou provimento ao recurso. Na ocasião, por deliberação unânime da 5ª Turma do STJ, decidiu-se levar o caso para a 3ª Seção, para se discutir concomitantemente não só o caso concreto senão também a própria (in) subsistência da Súmula citada.

Em 26.09.01, o assunto entrou na pauta da 3ª Seção do STJ.

Votou nesse dia em primeiro lugar o Min. Edson Vidigal que, aliás, acabou ficando vencido e isolado. Inclinando-se pelo questionadíssimo Direito penal subjetivo que, historicamente, em detrimento da objetiva e concreta afensa ao bem jurídico, faz preponderar o que o sujeito queria ou mesmo sua pura intenção (Willenstrafrechet) ou a simples impressão da vítima ou ainda o Direito que o juiz gostaria que fosse vigente, dava provimento ao recurso para restaurar a eficácia da sentença do magistrado "a quo".

Em sua prolongada, percuciente, arguta e, em certos momentos, espetacular (justice spectacle) argumentação, sem atentar, entretanto, para o fato de que o Direito penal de cunho eminentemente subjetivo foi sustentado no Brasil por uma diferente Escola de Direito penal (Hungria, Noronha etc.) e, no estrangeiro, pelo positivismo criminológico italiano, Escola de Kiel (nazismo), finalismo de Welzel, Armin Kaufmann, Zielinsky etc., sublinhou:

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  • (a) que o importante é se a arma é capaz de intimidar não a sua efetiva potencialidade lesiva;

  • (b) que as armas de brinquedo são hoje extremamente sofisticadas (neste momento o Min. Vidigal abaixou-se e retirou de uma mala três armas de brinquedo que trazia consigo, empunhando-as com a mesma veemência da sua argumentação);

  • (c) que a onda de violência no país deve ser contida, controlada;

  • (d) citando Dias Trindade, enfatizou que as interpretações penais não podem ser favoráveis aos "fascínoras" e "meliantes";

  • (e) que nas guerras do Oriente Médio podem estar fazendo uso dessas sofisticadas armas de brinquedo;

  • (f) que a violência no país tem mais relevância que os livros e os mercados editoriais etc.

Todos os demais Ministros que votaram em seguida, embora ressaltando o brilhantismo da sustentação do Min. Vidigal, o respeito que nutrem pela sua pessoa e doutrina, seguiram o relator e negaram provimento ao REsp.

A argumentação desenvolvida por essa corrente amplamente majoritária (Ministros Félix Fischer, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Jorge Scartezzini e Paulo Gallotti) foi a seguinte:

  • (a) o Direito penal representa um conjunto de princípios garantistas que não podem ser superados por argumentos supralegais;

  • (b) os argumentos supralegais podem abrir uma brecha perigosa para as liberdades fundamentais;

  • (c) o agravamento da pena pelo uso de arma de brinquedo fere o princípio elementar da reserva legal;

  • (d) esse agravamento da pena, ademais, constitui verdadeiro "bis in idem";

  • (e) a arma de brinquedo deve ser considerada como circunstância judicial no momento da fixação da pena;

  • (f) tratar o réu que usa arma de brinquedo de forma igual ao que usa arma verdadeira significa patente violação ao princípio da proporcionalidade;

  • (g) argumentos supralegais valem de lege ferenda, não de lege lata;

  • (h) os livros e os mercados editoriais são relevantes para a construção de um Direito penal previsível e seguro;

  • (i) que não deve existir Súmula sobre temas não pacificados na jurisprudência;

  • (j) que a arma de brinquedo serve tão-somente para intimidar a vítima e configurar o delito de roubo (não para agravar a pena);

  • (l) que o uso de arma de brinquedo está muito mais próximo da fraude que da violência;

  • (m) que o "caput" do art. 157 fala em "grave ameaça" enquanto o § 2º, inc. I, fala em emprego de arma;

  • (n) que está proibida a analogia in malam partem no Direito penal;

  • (o) que arma, conceitualmente, é sempre objeto de ataque;

  • (p) que o juiz não pode em suas decisões adotar o mesmo simbolismo do legislador, que fabrica leis penais a cada momento par atender aos reclamos midiáticos ou sociais;

  • (q) que o cancelamento da Súmula 174 não significa um "salvo conduto" para a violência;

  • (r) que as súmulas não podem engessar eternamente o Direito;

  • (s) que o relevante é ter presente a incolumidade física não a psíquica da vítima para o efeito do agravamento da pena;

  • (t) que o conceito (histórico) de arma no § 2º, inc. I, já vinha dado pelo antigo art. 19 da LCP (arma verdadeira) etc.”

Depois que a Súmula 174 foi cancelada, varias decisões foram proferidas com o entendimento de que o uso de arma de brinquedo em roubo não justifica o aumento da pena nem o regime prisional mais gravoso.

A lamentar a revogação da Súmula 174, num Brasil cercado de violência e impunidade.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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