Direitos humanos e a relativização da soberania estatal

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06/04/2017 às 20:21
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3          DIREITOS HUMANOS E A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL

Monte (2012)[15] escreve que “o modelo de sociedade que vivenciamos atualmente tem tornado os indivíduos suscetíveis a riscos até então desconhecidos, oriundos não mais de ações locais e delimitadas”.  Nesse sentido, “uma nova preocupação diante da percepção de riscos em âmbito global vem à tona e merece análise”.

3.1      A soberania dos Estados frente à internacionalização dos Direitos Humanos

Embora os direitos humanos tenham adquirido considerado espaço no âmbito internacional e se tornado assim tema de interesse mundial, esse direito não é estático e passa por contínuas adaptações para atender um mundo que está em constante mudança. Flávia Piovesan (2015) ensina que o processo de internacionalização dos Direitos Humanos e a consequente transformação das relações estatais, além de reconhecerem o homem como sujeito de direito no plano internacional, também revelam a necessária limitação da soberania nacional. Para tanto, a autora cita os ensinamentos de Richard Pierre Claude e Burns H. Weston, nestes termos:

A doutrina em defesa de uma soberania ilimitada passou a ser crescentemente atacada, durante o século XX, em especial em face das consequências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, o que fez com que muitos doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. (PIOVESAN, 2015 apud RICHARD PIERRE CLAUDE E BURNS H. WESTON).

Formalmente, “o Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas, procedimentos e instituições internacionais desenvolvidas para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos”. Entretanto, a mesma autora retoma aos escritos de Richard Pierre Claude e Burns H. Weston, quando questionam:

“O problema se coloca no contexto da seguinte indagação: seria um ato de inapropriada interferência um Estado criticar a prática de direitos humanos do outro? O art. 2º (7) da Carta das Nações Unidas estabelece que as Nações Unidas não podem intervir em problemas que essencialmente sejam da jurisdição doméstica do Estado. Muitos estados usam este argumento. (...) O forte e agressivo nacionalismo é um obstáculo à ideia de que a comunidade internacional deve respeitar os parâmetros da legalidade.” (PIOVESAN, 2015 apud RICHARD PIERRE CLAUDE E BURNS H. WESTON).

Em outras palavras, haveria limites para a intervenção internacional num determinado Estado ou para a própria relativização da soberania? E como garantir a efetividade de aplicação dos Direitos Humanos? Certamente estas questões dependem de uma análise mais profunda na medida em que os processos de instituição de direitos agora acompanham as mudanças globais. Contudo, muitos parâmetros já se encontram normatizados nos tratados internacionais e servem de referência para a construção do direito dos Estados, principalmente àqueles que adotam a democracia como sistema político.

Nesse sentido, Flávia Piovesan (2015) explica que “consagra-se, (...) o princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao Estado conferir plena observância ao tratado de que é parte, na medida em que, no livre exercício de sua soberania, o Estado contraiu obrigações jurídicas no plano internacional”. E destaca ainda que “os tratados são, por excelência, expressão de consenso”. Além disso, visando o maior número de adesão dos Estados, podem ainda ser formuladas reservas de conteúdo, desde que não sejam incompatíveis com o propósito do tratado.

Dessa forma, respeitadas as variáveis constitucionais de formação, cada Estado é discricionário para celebrar (ou não) sua adesão aos tratados, o que por si só lhe garante o pleno exercício da soberania, nestes termos:

Com efeito, se, no exercício de sua soberania, os Estados aceitam as obrigações jurídicas decorrentes dos tratados de direitos humanos, passam então a se submeter à autoridade das instituições internacionais, no que se refere à tutela e fiscalização desses direitos em seu território. (FLÁVIA PIOVESAN, 2015):

Sob outra análise, se a própria finalidade do Estado é a de garantir a segurança da Nação, “não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano internacional ‘that king can do no wrong’[16]”.  Por conseguinte, a própria “proteção internacional dos direitos humanos é um forte indicador da universalidade desses direitos”, e “o conceito de soberania sofre mutações acompanhando a modificação dos valores protegidos pelo direito”, conforme explica Rogério Taiar (2010). Logo, ainda que “o processo de internacionalização dos direitos humanos tem sido lento e penoso, (...) tais dificuldades não anuviam a importância da evolução jurídico-positiva já desenvolvida desses direitos”.

Segundo o mesmo autor, “o principal entrave à proteção efetiva dos diretos humanos na arena internacional, constantemente enunciado, relaciona-se à soberania, mas propriamente à relativização da soberania do estado”, contudo também sobrevém o pensamento de “que não existem incompatibilidade entre a soberania dos Estados e a internacionalização dos direitos humanos, pelo simples fato de a soberania em seu conceito engloba a proteção de tais direitos”. Desse modo, defende-se que a soberania deve ser “limitada”, não no sentido de “diminuição da importância da soberania, mas sim do redimensionamento dos seus contornos a partir dos direitos humanos”.  

3.2      Direitos humanos: passagem do dever do súdito para o direito do cidadão[17].

Flávia Piovesan (2015) escreve que “se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução”. Nesse contexto, Rogério Taiar (2010) explica que com a evolução do Estado moderno para o democrático e finalmente, para o social, “a relação tradicional entre direitos dos governantes e obrigações dos súditos é invertida completamente”. E citando Sahid Maluf, destaque que, com a concepção contemporânea da própria função, “o Estado existe para servir ao povo e não o povo para servir ao Estado”.

Com esse entendimento, “os direitos humanos, que antes eram afirmados nas Constituições dos Estados, são hoje reconhecidos e solenemente proclamados no âmbito da comunidade internacional”, logo, “todo indivíduo foi elevado a sujeito potencial da comunidade internacional, cujos sujeitos até agora considerados eram, eminentemente os Estados soberanos”.

Ainda que inicialmente concebido “para regular as relações entre soberanos, o direito internacional viu-se envolto num processo de ampliação de sua incidência a outros sujeitos, ocupando o indivíduo num plano mais avançado nesse processo evolutivo”. E continua o autor: “esta nova concepção abandona o velho conceito de soberania estatal absoluta, que considerava, na acepção tradicional, como sendo os Estados os únicos sujeitos de direito internacional público”. Nesse sentido, Flávia Piovesan (2015) destaca a afirmação do Secretário-Geral das Nações Unidas (BOUTROS-GHALI[18]) no final de 1992:

Ainda que o respeito à soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania (...). Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. (FLÁVIA PIOVESAN, 2015 apud BOUTROS-GHALI).

3.3      A dignidade da pessoa humana como característica inerente ao conceito de soberania

Rogério Taiar (2010) escreve que se o próprio “conceito de Estado[19] vem sido reformulado”, “também a soberania classicamente concebida não atende mais às necessidades emergentes das situações de vida atuais”.  Nestes termos escreve:

É preciso adaptar o princípio da soberania a um conceito mais dinâmico e flexível, mas de forma articulada, para que seja capaz de produzir efeitos sociais, econômicos e jurídicos de maior intensidade nos indivíduos, proporcionando-lhes maiores possibilidades. Faz-se necessário uma soberania mais jurídica e menos política, pois que os povos encontram sua dignidade na lei, porque é desse modo que se livram de se curvar perante tiranos. A soberania, portanto, é uma qualidade do poder estatal. Por sua vez, o poder estatal, um poder de natureza jurídica, submete-se ao direito, resultando necessariamente num poder limitado. (ROGÉRIO TAIAR, 2010).

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De outra forma, “significa dizer que a soberania é limitada à conformidade com o ordenamento jurídico”. Interessante destacar que sobre o termo “relativização”, o autor cita a fala de Albert Eintein (1879-1955): “não existe sistema de referência absoluto”, e ainda Norberto Bobbio, para quem “o fundamento absoluto não é apenas uma ilusão, em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras”.

Considerando a “relativização da soberania” no sentido exclusivo de “relação entre os princípios de soberania e da dignidade humana”, e “nunca com o significado de diminuição”; “o conceito de soberania contemporâneo é ‘limites’, no sentido de demarcar suas características, tarefa essa incumbida ao direito internacional”. Nesse sentido, “a dignidade da pessoa humana” emerge como “tendência contemporânea dos ordenamentos jurídicos em reconhecer o indivíduo como o centro e o fim do direito”.  

Sobre o tema, Flávia Piovesan (2015) enfatiza ainda que “é no princípio da dignidade humana que a ordem jurídica encontra o próprio sentido”. Para Rogério Taiar (2010), “o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como uma verdadeira e indiscutível norma geral para todos os direitos”. Logo, verifica-se “uma inter-relação coexistente e harmoniosa entre o direito internacional dos direitos humanos e o conceito de soberania, tendo como valor supremo a nortear o intérprete à dignidade da pessoa humana”.  

Por conseguinte, se “o poder soberano, na forma como realizado nos dias de hoje, é constituído pela vontade do povo[20]”, “o respeito aos direitos humanos tem se tornado um aspecto crucial de legitimidade governamental, tanto no âmbito doméstico, como internacional”, e “fortalecendo a posição jurídica do indivíduo em relação ao Estado”, se “estabelece limites à própria soberania estatal”. Em outros termos, “os direitos humanos fortalecem a soberania, esta concebida como ‘popular’, isto é, no sentido de que ‘soberano é o cidadão e não o Estado’. A par disso, não se pode negligenciar o fato de que a cidadania ‘é cada vez mais supranacional’”.

Superada a fundamentação teórica, Rogério Taiar (2010) escreve que é preciso concretizar a ideia gerida a partir da lógica de que os conceitos de soberania e de direitos humanos são complementares entre si:

“Se antes os referidos fundamentos foram enunciados como contrapostos, alternando-se ao longo do tempo a preponderância de um conceito sobre o outro: ‘ora predominava o conceito de soberania sobre os direitos humanos, era se argumentava pela prevalência dos direitos humanos sobre o conceito clássico de soberania’, na atualidade é preciso não só desenvolver a ideia, mas concretizá-la no sentido de que os conceitos de soberania e de direitos humanos são complementares em si, levando a uma nova concepção do conceito de soberania em sua projeção horizontal, cuja complementaridade ocorre por meio da integração realizada pelo princípio da dignidade da pessoa humana. (ROGÉRIO TAIAR, 2010. p. 321)

Nestes termos, “a soberania passa a ser um meio de instrumentalização dos conceitos de direitos fundamentais e de direito internacional dos direitos humanos”, que também consolida que “a soberania de outros Estados tem que ser igualmente um elemento de limitação da soberania”. Por outra via, “significa dizer que para cumprir sua finalidade de Estado Democrático de Direito (...), o Estado deve observar os direitos de seus cidadãos e desenvolver os mecanismos que tornam o direito internacional justificável”.

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Sobre a autora
Georgilene Glorete Windler

Bacharel em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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