Lex rei sitae e lex domicilii

11/04/2017 às 14:07
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O artigo discute soluções com relação ao Direito Internacional privado nos casos que envolvam direito real, sucessões.


Determina o artigo 8º da Lei de Introdução:
Art. 8o Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados.
§ 1o Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens moveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.
§ 2o O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse se encontre a coisa apenhada.
Da doutrina do direito internacional privado é conhecida a lição de Waechter de que o princípio da lei da situação, da lex rei sitae para os bens, era o seguro e o mais coerente, porém, com uma restritiva: tratando-se de bens imóveis.
Ensinou Haroldo Valadão(Direito Internacional Privado, volume II, segunda edição, pág. 157) que, na doutrina que se considera moderna, Story, seguindo os estatutários, levou a lex rei sitae para os imóveis a um extremo rigor, até à capacidade, à forma e ao fundo dos contratos sobre os mesmos e aos direitos transmitidos e admitia para os móveis a lei do domicílio do proprietário, mas com a larga exceção de disposição contrária do lugar da situação dos mesmos móveis. Essa doutrina dominou o direito norte-americano e na Europa ocidental com as obras de Rocco, na Itália. Savigny afastava de forma imperativa à tradição estatutária pluralista, para adotar o regime unitário, da moderna doutrina alemã, pois a sede quer dos bens imóveis quer dos bens móveis é sempre o lugar da respectiva situação, regulados, assim, uns e outros pela lex rei sitae. Mas, Savigny fazia uma exceção dos móveis que ocupam no espaço um lugar indeterminado e variável, que seria indicado pela vontade do proprietário ou coincidirá com o respectivo domicílio, como a bagagem do viajante ou as mercadorias expedidas pelo negociante para outro país. Na lição de Mancini, de cunho nacionalista, e da escola ítalo-franco-belga, a tendência foi considerar o direito dos bens como pertencente ao direito privado necessário, e, pois, regido pela lei nacional dos proprietários.
O Instituto de Direito Internacional aprovou a Resolução de Madrid, de 19.4.1911, acerca dos conflitos em matéria de direitos reais, em geral, estabelecendo um regime unitário, lex rei sitae, sem distinção de bens móveis e imóveis.
No Esboço do Projeto Teixeira de Freitas, no artigo 411 assim se lia:
“O lugar da existência das coisas imóveis no Império, ou fora dele, será o de sua situação; e o das coisas móveis, aquele em que se achavam no dia da aquisição dos direitos reais que sobre elas se alegar ou no dia da aquisição da sua posse, ou em que se acharem no dia em que sobre elas se intentar alguma ação ou procedimento judicial”.
Deve-se atentar diante disso, que, no século XIX, no Brasil havia um entendimento distante daquele que hoje há sobre os imóveis e seu registro.
Em 1864, surgiu a Lei nº 1.237 que criou o Registro Geral, denominada por muitos juristas como o embrião do Registro de Imóveis. A Lei substitui a tradição pela transcrição como modo de transferência, continuando o contrato a gerar efeitos obrigacionais. Ressalte-se, porém, que esse registro não era prova de propriedade, nem mesmo como presunção relativa, sendo que o autor precisava prová-la por outras vias como a reivindicatória. Está, pois, àquela época, longe do que é hoje o nosso sistema registral.
Em 1890, a Lei 1.237 foi substituída pelo Decreto nº 169-A e seu Regulamento, Decreto nº 370, contudo, substancialmente, nada foi alterado. Com o advento do Código Civil de 1916, o Registro Geral foi substituído pelo Registro de Imóveis, mantendo-se a transcrição, entretanto, com uma mudança substancial, foi lhe dada nova roupagem, resultando em prova da propriedade juris tantum, ou seja, admitindo prova em contrário. O código trata da matéria nos artigos 856 e seguintes.
Com o Regulamento da Lei nº 4.827, de 1924, consubstanciado no Decreto nº 18.542, de 1928, foi introduzido no sistema registrário o princípio da continuidade, exigindo-se, para qualquer transcrição ou inscrição, o registro do título anterior. O regulamento subsequente, nº 4.857 de 1939, nos ensina Afrânio de Carvalho, corrigiu a terminologia do ordenamento anterior, separando os atos sujeitos à transcrição e inscrição. Os primeiros referentes aos atos de transmissão da propriedade; os segundos à constituição de ônus reais.
No direito comparado, o sistema estatutário, bipolar, foi consagrado no Código da Prússia, § § 28 e 32; da Áustria, de modo formal, artigo 302; de Quebec, artigo 6º, dentre outros exemplos.
O sistema unitário, da lex rei sitae para imóveis e móveis, sem distinções, nem exceções, veio do Código Maximiliano da Baviera, 1756, p´. 1, capítulo 2, parágrafo 17); Luisiana(1809 – 1825), artigo 9º; Zurich; Chile; Salvador; Honduras; Panamá; Grécia(1856); Japão; Código Civil da Itália; Grécia; Egito, dentre outros.
Os conflitos de leis no espaço relativos aos direitos reais regem-se pelo princípio da territorialidade. O critério jurídico para regular coisas móveis de situação permanente, inclusive no uso pessoal, ou imóveis(ius in re) é o da lex rei sitae, que importa na determinação do território, espaço limitado no qual o Estado exerce competência. Essa norma será aplicável para qualificar os bens, reger relações que  a eles sejam  concernentes e disciplinar as ações que lhes assegurem como já firmara o Código Bustamante, artigos 112, 113, 121, 122 e 123.

Discute-se o artigo 8º da Lei de Introdução.
Registrou Maria Helena  Diniz(Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 1994, pág. 242) que a qualificação dos bens, delineada no caput do artigo em discussão é territorial, visto que se lhes aplicam as leis do país onde estiverem situados. Assim pela territorialidade a norma aplica-se no território do Estado, incluindo-se o ficto por ser havido como extensão do território nacional. Assim a autoridade judicial não pode aplicar no  território nacional  outra norma por ocasião dos fatos ocorridos no seu território. É o que se dá com relação às leis relativas a imóveis, uma vez que se sujeita à lex rei sitae. Será a lei extraterritorial se o juiz puder aplicar outra lei, que não é a sua, a fatos ocorridos no seu território ou no estrangeiro, como os casos contemplados nos parágrafos primeiro e segundo do artigo 8º.
Regulará os bens móveis ou imóveis a lei do país onde estiverem situados, salvo a hipótese do parágrafo primeiro, pois a propriedade deve subordinar-se às normas de ordem pública do Estado.
Bem disse Maria Helena Diniz(obra citada, pág. 242) que a lei da situação da coisa móvel em situação permanente ou imóvel imperará. Assim foi repelido o princípio mobília sequuntur personam, que somente será aplicável aos bens móveis em estado de mobilidade(artigo 8º, § 1º). A tudo que disser respeito aos direitos reais(ius in re) aplica-se a lex rei sitae. Mas a lex rei sitae regulará apenas os bens móveis ou imóveis considerados individualmente(uti singuli) pertencentes a nacionais ou estrangeiros, domiciliados ou não no país. Mas, quando forem elementos de uma universalidade, afastado estará tal critério de conexão, pois a lei competente para regê-los sob esse aspecto é aquela que se subordina o instituto correspondente, como se aplica a coisas uti universitas, como o espólio, o patrimônio conjugal, que escapam a aplicação da lex rei sitae, passando a se reger pela reguladora da sucessão(lex domicilii do autor da herança) como se lê do artigo 10 da Lei de Introdução; da sociedade conjugal, artigo 7º da Lei de Introdução. No caso da desapropriação do imóvel de tutelado, de curatelado, da massa falida, as relações se disciplinam pela lex rei sitae, como se lê de Machado Vilela(O Direito Internacional, páginas 247, 248 e 267), Oscar Tenório(Direito Internacional Privado, volume II, pág. 168 e 169) e ainda Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho(A Lei de Introdução, volume II, pág. 451 e 512).
Vale dizer que no artigo 10 da Lei de Introdução, adotou-se a teoria da unidade sucessória, tal como proposto por Savigny em seu Sistema(volume VIII, parágrafos 375 e seguintes), pois enquanto não se efetivar a partilha, os bens do falecido ou do ausente irão se constituir numa universitas, como um todo, sendo uma projeção econômica da personalidade do autor da herança. Aplica-se aquele artigo 10 à sucessão legítima, a testamentária como a sucessão por ausência. A sucessão abre-se e liquida-se no último domicílio do autor da herança, por ser sua sede jurídica.
Observe-se que o domicílio do autor da herança indicará a lei aplicável à sua sucessão. A lex domicilii no momento da morte do de cujus determinará:
a) A instituição e a substituição da pessoa sucessível;
b) A ordem de vocação hereditária, se se tratar de sucessão legítima;
c) A medida dos direitos sucessórios dos herdeiros ou legatários, sejam eles nacionais ou estrangeiros;
d) Os limites da liberdade de testar;
e) A existência da proporção da legítima do herdeiro necessário;
f) A causa da deserdação;
g) A colação;
h) A redução das disposições testamentárias;
i) A partilha dos bens do acervo hereditário;
j) O pagamento das dívidas do espólio.
Isso está na linha do Código Bustamante do que se lê dos artigos 144, 154 e 163.
Portanto, se falecer, no Brasil, um estrangeiro aqui domiciliado tendo herdeiro ou legatário estrangeiro, por ser o domicílio  a sua sede jurídica e a de seu patrimônio, o juízo competente será o brasileiro e a sucessão irá obedecer a lei brasileira.
Osiris Rocha(Uma Interpretação Politica do Direito Internacional Privado, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 36: 168) sobre a matéria disse:
“O critério legal de aplicação aos imóveis da lei de sua situação(Lex rei sitae), universalmente observada, desde os tempos estatutários, é facilmente explicado pela ciência política: nenhum país admitirá qualquer dúvida a propósito da competência legislativa e do poder diretivo sobre a propriedade real, em razão de sua visceral inserção no território, um dos elementos fundamentais do Estado”.
Se houver mudança da situação do bem móvel, a lei da nova situação(lex rei sitae) aplicar-se-á, respeitando-se os direitos adquiridos, garantia constitucional.
Mas os navios e aeronaves não se regem pela lex rei sitae, ante as suas passagens de um Estado para o outro, regendo-se pela lei do pavilhão, isto é, dos navios onde estiverem matriculados, respeitando-se o princípio da ordem pública, conceito indeterminado de direito.
Assim a lex rei sitae é competente para :
a) Classificar os bens em móveis e imóveis, públicos ou privados, divisíveis e indivisíveis, consumíveis ou inconsumíveis, fungíveis ou infungíveis, determinando ainda se estão ou não no comércio;
b) Reger a posse e seus efeitos, especificando a legitimidade ativa para ajuizar ação possessória;
c) Dispor sobre a aquisição e perda de direitos reais;
d) Traçar normas sobre usucapião(Código Bustamante, artigos 227 e 228) seja da coisa móvel ou imóvel. Anotou Maria Helena Diniz, a posição de Shaeffner(obra citada, pág. 244), quanto ao usucapião de coisa móvel que veio a mudar de território, que seria competente a lei do primeiro país; por sua vez, Brocher(Théorie du Droit International Privé, Révue de Droit International, 1871, pág. 550) admitia a competência combinada das duas leis, calculando-se, proporcionalmente, o prazo segundo o tempo decorrido num e noutro país. Autores como Von Bar pronunciavam-se pela lex domicilii do possuidor como sendo aplicável ao usucapião de coisa móvel. Savigny e Machado Vilela adotaram posição que se alinhava ao artigo 228 do Código Bustamante;
e) Restringir o direito de propriedade mobiliária e imobiliária;
f) Resolver questões de transferência da propriedade por meio de ato inter vivos;
g) Estipular as ações cabíveis ao titular do direito real;
h) Decidir os bens que podem ser objeto de direito real sobre coisa alheia;
i) Disciplinar o direito real sobre coisa alheia de fruição(enfiteuse, servidão, uso, usufruto e habitação) e de garantia(hipoteca e anticrese), regulando a sua constituição, os seus efeitos e extinção.
Observa-se que a Lei de Introdução ordena a aplicação da lei domiciliar do proprietário quanto aos móveis que ele, em viagem, trouxer consigo, para uso pessoal, que poderão num só dia, passar por vários países e quanto aos que, em razão de negócio mercantil, destinar ao transporte ferroviário, rodoviário, aéreo ou marítimo para outros lugares até chegar ao  lugar do destino. Aplica-se a lex domicilii de seu proprietário para esses casos. Para Savigny aplicar-se-ia a lei do país de destino.
Relativamente ao direito real de penhor irá prevalecer a lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse direta se encontrar o bem empenhado, no momento em que for constituída a garantia real sobre coisa móvel. Aplica-se assim a lei domiciliar da pessoa em cuja posse estiver a coisa empenhada, conflitando a lei nacional com o que foi disposto no Código Bustamante(artigo 214) que sujeita a matéria à lei territorial. Na antinomia entre essas normas, há opiniões de Serpa Lopes(Curso de Direito Civil, vol. I, pág. 223), Amílcar de Castro(Direito Internacional Privado, volume II, pág. 126), Oscar Tenório(Direito Internacional Privado, volume II, pág. 166), no sentido de que este prevalecerá.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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