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A legislação do abate de aeronaves.

Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas

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Diante de todo esse raciocínio, encontramos a compatibilidade da legislação que regula o abate de aeronaves com a disciplina dos direitos fundamentais, bem como a localização topográfica no ordenamento punitivo da conduta estatal que venha a culminar no resultado morte, indesejado, em caso de aplicação da citada norma.

Não há, assim, malferimento ao devido processo legal e seus consectários (ampla defesa e contraditório), haja vista que o rito estatuído pelo Decreto em testilha se compatibiliza com a peculiaridade do contexto fático sui generis ora em análise, da mesma forma que não se trata de aplicação de pena de morte, mas, como explicamos, de um exercício regular de um direito que pode, indubitavelmente, derivar o indesejado resultado cruento.

Tal possibilidade, a prática de condutas acobertadas por uma causa de excludente de antijuridicidade, existe justamente por ser inviável a presença do Estado em toda situação em que esteja sendo molestado um determinado direito, o que, em virtude dessa realidade, fica autorizado, legitimamente, o próprio sujeito titular do direito a proteger seu patrimônio jurídico, sendo reservada, é evidente, a verificação judicial, a posteriori, de eventual abuso ou excesso praticado.

Dito isso, lembramos, a final, para depois concluir, a magnífica obra La Paix Perpetuelle de Kant, na qual, o ilustre filósofo, tecendo brilhantes comentários acerca do direito internacional, evocando ao que chamou de Direito Cosmopolítico, algo semelhante como o fenômeno da globalização, no entanto, com seu viés político (alusão a um cidadão universal), diz que, tal direito, deve limitar-se ao Direito à Hospitalidade Universal. O que compreende, de um lado, o direito de todo estrangeiro, que se encontra num Estado do qual não é nacional, não ser tratado hostilmente. E, de outro lado, o dever de todo Estado não usurpar da hospitalidade que lhe é oferecida pela população de um determinado Estado ou território e transformar o seu direito de visita num violento ato de conquista.

Desse modo o que disse Kant, noutras palavras, foi que a paz perpétua é um anseio e desejo a ser implementado, fundado no pacto do Direito, ou seja, o próprio Direito trata de albergar o modelo de conduta social esperado e os respectivos mecanismos corretivos, a ser utilizado pelo Estado, numa forma de violência autorizada pelo ordenamento, tudo em prol da paz objetivada.

Não se verifica no caso, a pretensão de se justificar atrocidades, sob a distorcida idéia maquiavélica de que os fins justificam os meios, até porque tais meios, os coercivos (violência autorizada), são a última razão e não a primeira, e mesmo sendo a última ratio, está albergada pelo Direito e legitimada, portanto, pelo axioma da justiça, o que a distingue da tirania, eis a diferença, mas o que pretendemos, no entanto, no presente estudo, é a constatação da compatibilidade ou não da legislação em pauta com o nosso sistema jurídico.

Esperamos, todavia, que o Estado brasileiro nunca precise utilizar-se dessa medida extrema de violência autorizada pelo Direito, a que tratamos especificamente neste trabalho, no entanto, essa dura realidade normatizada que legitima o sacrifício de um bem para proteção de outro, em circunstâncias excepcionais, é uma decorrência, dizem alguns, da própria susceptibilidade da natureza humana no convívio social, a que o Direito, enfim, não poderia ficar alheio. (25)


NOTAS

  1. (Vacatio Legis) Vigência a partir de 90 (noventa) dias da data da publicação, conforme art. 12 do Dec. 5.144/04 .
  2. "Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna" in Moraes. Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Atlas; p. 46. 3ª. ed.
  3. Ibidem. p. 47.
  4. Afora outras prisões que também não possuem cunho de definitividade, como a decorrente da pronúncia e a sentença condenatória recorrível.
  5. STJ Súmula nº 09 – "A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência."
  6. Verifica-se a distinção do emprego terminológico entre "colisão" e "conflito", o primeiro alude a norma-princípio e o segundo norma-regra.
  7. Tal princípio recomenda ponderação no procedimento de tomada de decisão. Exemplificando: "Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida." In Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, p. 91.
  8. Vide também: "Idéia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes" (Lerche) in Canotilho. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina. p. 1259. 6ª. ed.
  9. In http://www.politicsprofessor.com/politicaltheories.html
  10. Ibidem. David Robertson, The Penguin Dictionary of Politics (Lodon, 1986)
  11. "Grócio contribuiu, de modo decisivo, para a criação do Direito Internacional. Segundo ele, a lei natural que regula a convivência das diversas nações é o Direito das Gentes e esse direito é um fragmento destacado da lei natural" in Bittar. Eduardo C.B. e Almeida. Guilherme e Assis. Curso de Filosofia do Direito. Atlas. p. 223. 2001.
  12. Comparato. Fábio Konder. Convenção de Genebra (1864). In http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/dih/index.html.
  13. in Canotilho. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina. p. 1256 e 1257, 6ª. ed.
  14. "O Departamento de Aviação Civil (DAC) é uma organização subordinada ao Comando da Aeronáutica – Ministério da Defesa, cuja missão é estudar, orientar, planejar, controlar, incentivar e apoiar as atividades da Aviação Civil pública e privada, além de manter o relacionamento com outros órgãos no trato dos assuntos de sua competência." Vide http://www.dac.gov.br/.
  15. Digo causas legais porque admitem alguns a existência de causas supralegais de exclusão do crime.
  16. Exercício regular do direito de salvar a vida, presente na relação médico e paciente.
  17. Zaffaroni. E. Raúl; Pierangenli. J. Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. RT, São Paulo, p. 458., 1999.
  18. Para os finalistas. Já para os causalistas acrescenta-se a culpabilidade.
  19. Jesus. Damásio de. Código Penal Anotado. São Paulo. Saraiva. 8ª. ed., p. 92.
  20. "Através da legítima defesa qualquer bem jurídico pode ser protegido. A agressão pode, assim, dirigir-se contra bem jurídico de qualquer natureza, sendo irrelevante que pertença ao agente ou a terceiro, podendo tratar-se inclusive da coletividade ou do Estado."in Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. A nova parte geral. Forense. p. 187.
  21. Tal assertiva se inclui no rol dos chamados Direitos Fundamentais do Estado, doutrina jusnaturalista racionalista bastante criticada, mas que ganhou espaço no Direito Internacional. Contemplando a referida teoria "em Montevidéu (1933), na 7ª. Conferência Internacional Americana, foi concluída uma convenção onde se consagrou: a) a inviolabilidade do território; b) a existência do Estado não depende do seu reconhecimento; c) igualdade jurídica; d) direito à independência e conservação; etc." In Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, I volume. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 12ª. ed. p. 424.
  22. "Com de costume, o Código não se preocupou em definir o conceito de estrito cumprimento de dever legal, tal como procedeu com o estado de necessidade e a legítima defesa." In Greco, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Impetus: Rio de Janeiro. p. 362.
  23. "Primeiramente, é preciso que haja um dever legal imposto ao agente, dever este que, em geral, é dirigido àqueles que fazem parte da Administração Pública, tais como policiais e oficiais de justiça. Em segundo lugar, é necessário que o cumprimento a esse dever se dê nos exatos termos impostos pela lei, não podendo em nada ultrapassá-lo." Ibidem p. 363.
  24. Saraiva, Alexandre José de Barros Leal. Direito Penal Fácil. Del Rey: Belo Horizonte. p.108, 2003
  25. "(...) a lei não poderia virar as costas ao natural instinto de conservação dos homens, em razão do que admite excepcionalmente o sacrifício de interesse alheio, muito embora tal opção pareça atentar contra preceitos morais e éticos."In Saraiva, Alexandre José de Barros Leal. Direito Penal Fácil. Del Rey: Belo Horizonte. p.93, 2003.
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Sobre o autor
José Moaceny Félix Rodrigues Filho

procurador federal no Ceará, professor universitário, especialista em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES FILHO, José Moaceny Félix. A legislação do abate de aeronaves.: Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 444, 24 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5735. Acesso em: 28 abr. 2024.

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