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Liberdades fundamentais:

a terceira torre em perigo

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29/09/2004 às 00:00
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CAPÍTULO IV

HEGEMONIA NORTE-AMERICANA E O PAPEL DA COMUNIDADE INTERNACIONAL NA BUSCA DA PAZ (PRESSUPOSTO DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS)

"O mundo deve ser convertido em pacífico para a democracia"

WOODROW WILSON, Presidente dos E.U.A

Discurso para o Congresso Americano em 2 de Abril de 1917 [54]

1. A necessidade de combate às causas dos atos terroristas.

Os atos de violência organizada perpetrados contra os centros nevrálgicos da Nação Americana, acima de tudo, são crimes contra os direitos humanos. No entanto, também, podem serem vistos como parte de um conflito maior entre as forças democráticas do diálogo/persuasão e a intolerância/força dos atos terroristas.

De forma profética, o secretário de defesa americana, de BILL CLINTON, WILLIAM COHEN, já havia atestado que com o avanço da tecnologia, a possibilidade de destruição por ataque terrorista tinha atingido enormes proporções. [55]

Como afirma HABERMAS: "A guerra contra o terrorismo não é uma guerra", uma vez que o que caracteriza o terrorismo é a ausência de um poder central a ser atacado. [56]

Desse modo, os ataques terroristas não podem ser enfrentados, exclusivamente, de forma pontual e reducionista por meio de retaliações militares, como sugere a reação americana de destruição do Iraque e, agora, de forma mais recente de ocupação por tempo indeterminado deste país (mesmo sem a aprovação da ONU).

No documento "A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA", enviado por BUSH ao Congresso Americano em 20 de setembro de 2002, os EUA ratificam a pretensão de continuar, indefinidamente, com as intervenções militares para a destruição do terror. [57]

A verificação da existência da hegemonia americana no mundo contemporâneo e dos conseqüentes conflitos mundiais, de forma direta ou indireta, decorrentes da política externa intervencionista americana, permite uma melhor abordagem para a questão ao dar-se maior ênfase às causas do que às conseqüências da intolerância (atos terroristas).

Aceitando o pressuposto de que os ataques de 11 de setembro foram planejados e implementados por rede de terroristas muçulmanos descontentes com a postura americana no Oriente Médio, há necessidade de a Comunidade Internacional atuar de forma preventiva para diminuir o descompasso político, social, econômico e cultural de oportunidades de diferentes países e grupos étnicos, notadamente com ênfase na questão Palestina.

2) Correlação entre os ataques terroristas e a intervenção norte-americana na arena internacional

Nesse aspecto, a própria comunidade acadêmica e institucional americana vincula os ataques terroristas diretamente às intervenções americanas na arena internacional.

IVAN ELAND, Diretor de Estudos sobre a segurança americana no Instituto CATO situado em Washington, afirma que dados históricos demonstram forte relação entre a ação americana em conflitos internacionais e os ataques terroristas contra os Estados Unidos. [58]

Assim, esse autor defende, inclusive, que haja redução da intervenção militar americana no resto do mundo, limitando-se a ação militar americana aos casos extremos, tendo em vista que a primeira prioridade de qualquer política de segurança militar deve ser a proteção da sua Pátria e do seu Povo. [59]

Observe-se, ademais, que é intolerável a postura americana de ser o único árbitro e julgador do terrorismo internacional. A existência de um único árbitro enseja sérios problemas de justiça e compromete a igualdade entre as nações no âmbito internacional. Exemplo de erro de julgamento ao avaliar quem é terrorista e que ação reativa é adequada, foi o bombardeio pelos Estados Unidos de uma indústria farmacêutica do Sudão em 1998, em retaliação à suposta conexão desse País com Osama bin Laden e a produção do gás venenoso VX. Um ano após esta ação, as autoridades americanas concluíram que a indústria equivocadamente agredida produzia medicamentos. [60]

No âmbito comercial da Globalização, [61] CHOMSKY, de forma persistente e fundada, destaca o papel nocivo das corporações transnacionais, a maioria delas americana, e do próprio governo americano para com os países mais pobres e com o aumento das diferenças sociais:

"Nós não podemos desprezar o extraordinário aumento da diferença entre os ricos e os pobres na era do fundamentalismo do mercado globalizado (...) De forma evidente, um bilhão de pessoas vive em absoluta pobreza mergulhada em cenário de um bilhão que vive de forma esplendorosa." (62)

Assim, há necessidade de respostas plurais (múltiplas para as distintas causas do descontentamento mundial) e persuasivas (construídas a partir da força do argumento de muitos) ao terrorismo internacional. O descontentamento com os fenômenos globais contemporâneos e com a hegemonia americana em nível local mostram-se em diferentes matizes.

Múltiplas situações de conflito exigem múltiplas soluções pacíficas desses conflitos. Portanto, deve ser gerenciado todo o iter do ato terrorista por Organismos Internacionais ou Consórcios de Nações: seja na cogitação do ato terrorista, estimulado pela insatisfação interior com a "opressão americana" e as escolhas de formas violentas de reação, seja nos atos preparatórios, ao estruturar as redes de terroristas globalizadas, seja na execução do ato terrorista, ou seja após a consumação do ato nos procedimentos de investigação, captura, e entrega desses criminosos a órgãos plurais como o Tribunal Penal Internacional, previsto no Estatuto de Roma. Em todo esse "iter", o combate ao ato terrorista difuso mundial deve ocorrer por meio da Comunidade Internacional.

A própria prevenção dos atos terroristas deve constituir esforço internacional. A INTERPOL e outros canais de inteligência devem permitir a troca de informações entre diferentes Governos visando ao justo combate e à repressão destas ocorrências que se multiplicam desde atos que desde a década de 80.

Conforme enfatizam JAMES DOUGHERTY e ROBERT PFALTZGRAFF a estratégia de longa ação militar contra o terrorismo não deve ser a solução adequada quando "não há robusta e substancial prova de que um determinado Estado existe para propagar a atividade terrorista". [63]

Visto como parte de um problema mais amplo de intolerância e de reação à globalização, a colocação da Comunidade Internacional no centro da discussão da problemática do Terrorismo, seria benéfica à própria proteção americana contra o terrorismo, mitigando a concentração da reação terrorista dirigida ao território americano.

3) O papel da Comunidade Internacional como mediadora da paz – pressuposto da proteção dos direitos fundamentais

Consoante destaca NORBERTO BOBBIO, "a filosofia da paz nasce quando a filosofia da guerra esgota suas possibilidade e quando mostra sua impotência diante do aumento quantitativo e qualitativo das guerras". [64]

Assim, ao invés de buscar justificações éticas e morais para a Guerra, chega-se ao momento em que se deseja a sua não existência e substituição por uma Paz Perpétua. [65]

KANT, como o primeiro e grande filósofo moderno da Paz, enfatiza, na obra Paz Perpétua, visão transtemporal de Paz em contraste com as correntes filosóficas existentes que aceitavam as guerras limitadas no tempo e no espaço. No início do Estado Moderno, entre os séculos XVII e XVIII, a tradição ocidental manteve a filosofia da guerra justa grega, reafirmada por Teólogos e Filósofos como Santo Agostinho, São Tomás e Hugo Grotius.

As guerras religiosas e não-religiosas, que se multiplicaram nesse período, conforme JAMES DOUGHERTY e ROBERT PFALTZGRAFF, provocaram a mudança da postura filosófica de aceitação limitada da guerra para a de busca universal e perpétua da paz. [66]

Em 1794, KANT escrevia seu tratado "A Paz Perpétua", [67] aonde estabelecia três condições para a paz na Comunidade Internacional: a república democrática deve ser a base da forma de governo de todo Estado, o direito internacional deve se basear em uma federação internacional de estados soberanos e deve ser assegurado o direito a uma cidadania mundial (o que, contemporaneamente, podemos denominar como o respeito a um rol de direitos humanos universais). [68]

A referida obra clássica de KANT está por merecer uma releitura contemporânea. Vincula-se à origem do Estado Moderno influenciado pela doutrina contratualista de HOBBES. KANT tinha em mente as idéias de HOBBES, do estado de natureza como estado de beligerância ("homo hominis lupus"). Assim, a paz perpétua só seria obtida quando os Estados soberanos saíssem do estado natural, de beligerância em que se encontravam, da mesma maneira que os homens se acomodariam com a criação do Leviatã.

Conforme destaca TOM SORELL, para HOBBES a paz era o valor mais importante a ser buscado pelo Estado. HOBBES imaginava, de forma pragmática, que o conceito de paz mostrava-se mais evidente do que o conceito de felicidade, sujeito a maior controvérsia entre as pessoas. Assim, era, também, para HOBBES objetivo do Estado a busca da paz interna e externa. [69]

Para conseguir essa evolução e sair da beligerância, os Estados devem estipular, também, pacto que os integrem em confederação permanente (A Comunidade Internacional das Nações – foedus perpetuum). Ao contrário do Estado do Leviatã de HOBBES (solução para a paz a nível interno), KANT propunha a criação da confederação, como pacto de igualdade (solução de KANT para a paz a nível internacional) e não de sujeição das Nações a um poder maior como ocorreu com a coletividade humana em nível do Estado Nacional.

Do mesmo modo, o pacto de igualdade entre as Nações exalava do projeto filosófico prescritivo kantiano nos artigos preliminares para a paz perpétua entre os Estados, a saber: "2. Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação (...) 5. Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado". [70]

Não haveria um Estado supremo dos Estados, como a hegemonia americana parece querer sustentar no mundo globalizado presente, mas, sim, mutatis mutandi, um Estado Federal em nível internacional.

A Paz Perpétua pressupõe certa homogeneidade dos Estados-contratantes do pacto federativo, com respeito ao seu regime interno (forma de governo), que não deveria ser despótico. Nas palavras de BOBBIO:

"Lo que Kant quiso afirmar, o por lo menos lo que se puede recabar con utilidad de su propuesta, es que los Estados democráticos, o en todo caso homogéneos en cuanto a su forma de gobierno, se acercan más dificilmente en sus relaciones al estado de guerra que los Estados despóticos o no homogéneos". [71]

Assim, o argumento central de KANT, de simetria dos Estados, pode ser utilizado na necessidade de igualdade de voz no tratamento das questões mundiais globais, tal qual o terrorismo, não obstante a dificuldade de ser alcançado nas atuais circunstâncias de Estados não-democráticos,

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Nesse aspecto, pode-se colacionar a visão de BOBBIO de que a paz contemporânea repousa no equilíbrio do terror e na chamada estratégia do acordo ou seja na técnica da persuasão, em paralelo com a visão de HANNAH ARENDT). [72]

O equilíbrio do terror vincula-se à capacidade destrutiva dos armamentos humanos que, pelo medo, não seriam utilizados sob pena de destruição total. Prendia-se, quando da guerra fria à situação de animosidade existente entre o bloco soviético e o bloco americano. Mesmo não havendo mais a polaridade de forças militares do passado continua atuante a possibilidade de destruição total apresentada no argumento de BOBBIO: o medo continua, pois, sendo uma razão da paz. [73]

Com relação à estratégia de acordo, BOBBIO destaca que esta problemática vincula-se à incerteza do cumprimento do acordo por ambas as partes, razão pela qual surge a necessidade de um mediador do conflito, que incentive a persuasão e a controle nos momentos necessários. Na mediação, as partes delegam a solução do problema a um terceiro e comprometem-se a aceitar a decisão deste como a adequada e a melhor para solução do conflito. [74]

Neste aspecto, deve ser visto o papel da Comunidade Internacional no combate ao terror e no controle do "olho por olho, dente por dente". A Comunidade Internacional deverá ser o terceiro da paz, aquele que propicia a mediação do conflito e evita as atividades extremadas e desarrazoadas da vítima estatal. Portanto, para alcançar-se a "Paz Perpétua", condição precípua para a existência de direitos fundamentais, deve a Comunidade Internacional comprometer-se, tanto para evitar a ação terrorista como para controlar os meios adequados para sua punição.


CONCLUSÃO

A diplomacia internacional, atividade pacífica de busca da resolução de conflitos pela persuasão alcançada pela comunicação dos autores internacionais, é o melhor mecanismo de preservação da paz, pré-requisito necessário para a proteção dos direitos fundamentais.

A magnitude do poderio destrutivo da ação e da reação do terrorismo exige a busca de mecanismos preventivos e do cultivo da paz para a própria preservação da existência da humanidade.

O ato terrorista(ação) e a retaliação do ofendido(reação) devem, pois, obrigatoriamente, ser delegados à Comunidade Internacional por meio das suas instituições competentes (ONU, Tribunais Internacionais, Consórcio de Nações voltado para a resolução de conflitos, dentre outros).

A violência coloca em potencial e duradouro risco as liberdades fundamentais. A terceira torre, que não pode ser derrubada por ataques terroristas ou suas correspondentes reações deve erguer-se acima dos Estados, para iluminar toda e qualquer ação internacional estatal.

A Civilização construída na Idade Moderna vincula-se, notadamente, à teoria contratualísta da formação do Estado, de HOBBES, que pressupõe a construção de um Estado em que haja a redução da violência, no banimento da visão pré-estatal do "homo homini lupus".

Toda violência constitui-se em ato de ataque universal aos direitos fundamentais, pois a sua negação é antecedente necessário à proteção estatal dos direitos fundamentais.

No momento em que as Guerras se iniciam, os direitos fundamentais são subjugados e enterrados como experiências humanas possíveis. Consoante as preciosas palavras de HANNAH ARENDT, deve estar, pois, nos centros das consciências internacionais, especialmente, das nações com alto poder de destruição, o fato de que as condutas estatais na esfera internacional situam-se, de forma universal, no espaço público internacional.

O julgar ético deve, pois, preceder ao agir político internacional. A legitimidade das ações internacionais passa, conseqüentemente, a ser tópico imprescindível para a escolha do que pode e do que não pode ser feito na "Guerra contra o Terror".

O mundo, por meio da persuasão diplomática, deve ser convertido em pacífico pelos diversos atores internacionais, obrigando a efetiva proteção dos direitos humanos. Há, pois, necessidade de se combaterem as causas dos atos terroristas e a reação a estes atos, visto que a paz – elemento polar da violência – coloca-se como antecedente dos direitos fundamentais.

Consoante a obra Paz Perpétua de KANT, a democracia, no âmbito internacional, apresenta-se, em essência, para a proteção dos direitos fundamentais. Neste contexto, representado pelo papel atuante da Comunidade Internacional, deve valer a máxima: "one person, one vote". A hegemonia política e econômica da Nação Americana, per si, não a afasta da responsabilidade de submeter-se às regras do Direito Internacional fundada na igualdade entre as nações.

Assim, os conflitos armados, que, pela evolução tecnológica, são todos potencialmente mundiais, devem ser banidos em um agir preventivo da Comunidade Internacional.

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Sobre o autor
Paulo José Leite Farias

promotor de Justiça em Brasília (DF), diretor da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal, professor da Universidade Católica de Brasília, professor substituto da Universidade de Brasília, mestre em Direito e Estado pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Paulo José Leite. Liberdades fundamentais:: a terceira torre em perigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 449, 29 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5753. Acesso em: 10 mai. 2024.

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