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A dimensão humana do Estado:

o povo

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01/10/2004 às 00:00
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5. O CIDADÃO E O SISTEMA REPRESENTATIVO

A idéia de que o povo é órgão do Estado e assim atua na formação da vontade estatal é uma teoria construída para explicar o sistema de representação no direito público moderno, tendo seus principais formuladores Gierke e Jellinek. É certo que o sistema representativo surgiu por razões de ordem prática, tendo em vista que o Estado moderno não é mais a Estado-cidade, a polis grega, tem larga base territorial, grande número de indivíduos e que atua conforme o princípio da supremacia.

A partir da Revolução francesa, passou-se a entender que a assembléia de parlamentares era um dos órgãos da nação, sendo responsáveis pela emissão da vontade desta nação, que se realiza por meio destes parlamentares. Para que este corpo de parlamentares possa ser considerado como um corpo representativo é preciso que exista, previamente, uma vontade nacional, da qual as decisões implementadas pela assembléia sejam apenas uma expressão desta vontade. Carre de Malberg (22) critica esta noção, afirmando que no sistema representativo não é possível esta representação de vontades.

Não existe, neste regime, representação de uma vontade por outra, senão que entra em jogo uma só vontade, a da nação, que se expressa, se realiza pelos deputados. Estes, não são, pois, os representantes de uma vontade nacional distinta da sua, senão que são um órgão por meio do qual a nação chega a ser capaz de querer.

Laband criticou duramente esta doutrina dos órgãos do povo. Para ele, a assembléia de parlamentares é escolhida pelo corpo de cidadãos, sendo tal fato insuficiente para transformá-la em órgão do povo. O povo, ao eleger seus parlamentares, somente realiza um ato de nomeação, tornando-se a assembléia eleita em órgão do Estado. Após esta crítica, segundo Carre de Malberg, Jellinek defende uma nova definição para o regime representativo, reconhecendo que o corpo de deputados é um órgão direto do Estado. (23)

Jellinek também critica o fato de que alguns doutrinadores procuravam transpor para o direito público, na tentativa de explicar a natureza da representação, a idéia de mandato. Para esses doutrinadores os parlamentares eram meros mandatários do povo, razão pela qual eram detentores de um mandato parlamentar. Tal hipótese ainda é comentada pela doutrina pátria, a saber, o comentário de Dallari (24):

Entendem alguns estudiosos que é impróprio falar-se em mandato político, o que, no seu entender, significa uma transposição inadequada de um instituto do direito privado par ao âmbito do direito público. Acham que só existe representação política, o que, em última análise, não resolve o problema, uma vez que também existe o instituto da representação no âmbito do direito privado. Assim, pois, como não foi ainda apontado um substituto nitidamente superior, é preferível que se continue a usar o termo mandato, que já tem a seu favor uma tradição de vários séculos.

Na verdade, os autores referem uma origem comum entre o mandato privado e o público, cuja origem mais remota, advém do direito romano, que trazia a figura da manus datio. Ocorre que no fim da idade média até a revolução francesa havia o mandato imperativo, de caráter contratual, que obrigava o mandatário a seguir as instruções escritas pelos eleitores. Estas instruções determinavam, detalhadamente, como os seus representantes deveriam se comportar no momento da votação das leis e em outras questões que seriam discutidas e decididas. Tal prática foi repudiada pela Constituição francesa de 1891, que expressamente proibia o mandato imperativo.

De qualquer forma, o mandato político na atualidade deve obedecer a princípios de natureza pública, como o fato de que o mandatário, não obstante ser eleito por parte do povo, o representa totalmente, tomando decisões em nome de todos. Embora seja eleito por uma parte do eleitorado, não fica vinculado a estes eleitores, agindo com absoluta autonomia e independência. O mandato confere poderes gerais, suficientes para a prática de quaisquer atos, sendo também irrevogável.

Assim, não obstante as diversas correntes a respeito da natureza da representação, a nossa Constituição de 1988 utiliza a expressão "mandato", termo que já se tornou tradição no direito constitucional pátrio.


6. O POVO SEGUNDO FRIEDRICH MÜLLER

Instigado por um aluno cearense, que lhe fez a pergunta "Quem é o povo", Müller resolve fazer uma reflexão acerca do tema, produzindo uma obra única, onde consegue examinar a noção "povo" sobre diversos ângulos, justamente por ser um conceito plurívoco. De forma sintética vamos expor suas diversas concepções de povo.

Seu ponto de partida é o "povo como povo ativo", atribuindo um caráter político ao tema. Analisando a palavra "democracia", em que demo significa povo e cracia significa dominação, afirma que o "o povo atua como sujeito de dominação nesse sentido por meio da eleição de uma assembléia constituinte e/ou da votação sobre o texto de uma nova constituição". (25) O termo povo ativo significa a totalidade de eleitores, constituindo-se fonte da determinação do convício social por meio de prescrições jurídicas, sendo considerado então, os titulares de nacionalidade.

Müller também dá ao povo a concepção de "instância global de atribuição de legitimidade". Nos Estados onde os funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, necessitam de uma instancia legitimidora de suas atividades. O Judiciário, que é um poder executante, vai aplicar as normas produzidas por um Legislativo eleito pelo povo, cujos destinatários são potencialmente o povo, enquanto população, formando um ciclo de atos de legitimação que não pode ser interrompido. Assim o povo desempenha seu papel de instância global da atribuição de legitimidade democrática.

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Numa reflexão da legitimidade, o autor examina a utilização da palavra povo mesmo quando o Estado funciona sem obedecer aos ditames democráticos, como em eleições fraudadas, ou quando o texto constitucional invoca o poder constituinte, mas é posta em vigor sem um procedimento democrático, entre outras situações. Neste caso, afirma que a invocação do povo é apenas icônica, a saber (26):

O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealziar’ [entrealisieren] a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – "notre bom peuple".

Neste sentido, Müller fala na possibilidade de se "criar o povo", quando a população real impedir a os planos de legitimação, como nos casos de colonização, expulsão, reassentamento, e até mesmo por meio da "limpeza étnica" denotando uma prática tão bárbara quanto antiga. Assim, o povo como ícone não se refere a ninguém, mas é utilizado como figura mítica num discurso de legitimação.

Por fim, Müller trata o povo como "destinatário de prestações civilizatórias do Estado". Ao povo não são impostos somente ônus e obrigações, mas também direitos. E Friedrich Müller aqui quer dizer, que todo homem, não importando se nacional ou não, desde que em território de Estado democrático será destinatário de benefícios e proteção. Assim, a distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial, mas relevante. "Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima". (27)


CONCLUSÃO

Diante desta panorâmica em que buscamos as formas variadas com que os autores empregam a palavra povo, foi possível perceber o sentido plurívoco que evoca a partir da história e dos grandes mestres que se dispuseram a enfrentar o tema. É, portanto um termo dotado de historicidade, e que encontra sentido de natureza política, sociológica, étnica, religiosa, jurídica, entre outros. Tarefa árdua para qualquer estudioso no tema.

Assim, encontramos autores, como Kelsen, que se importou basicamente com seu sentido jurídico, porque reduziu o Estado e seus elementos ao estudo da norma jurídica. Zipellius se interessou sobre o tema, abordando-o tanto do ponto de vista político como do ponto de vista sociológico. Jellinek, que produziu uma obra dedicada ao estudo da teoria do Estado, desenvolveu e defendeu com ardor seu pensamento, sendo talvez o autor que mais profundamente estudou o tema Estado.

Os autores nacionais também têm obra volumosa e consistente sobre teoria do Estado. Mas só recentemente passamos a dar valor ao tema. O Direito constitucional passou a ocupar um lugar de destaque depois de ser ignorado por grande parte da doutrina, ocorrendo o fenômeno da constitucionalização do direito. o direito deixa de ter seu eixo central as relações privadas, para se dar destaque ao direito público e, mais precisamente, o direito constitucional.

Assim, o povo deve ser tema constante no direito constitucional quando se está diante de um Estado Democrático de Direito como professa a Constituição da República de 1988. Ficamos com as palavras de Friedrich Müller (28): "Constata-se logo que "povo" não é um conceito simples nem um conceito empírico; povo é um conceito artificial, composto, valorativo; mais ainda, é e sempre foi um conceito de combate".


NOTAS

  1. Carlos Maximiliano ensina que apesar do brocardo estar expresso em latim, não teve origem no Direito Romano, que ao contrário, nas palavras de Ulpiano entendia que "embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se deve descurar da interpretação respectiva" (Quamvis sit manifestissimum edictum proetoris, attamen non est negligenda interpertatio ejus). Ver em MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 27 e 28.
  2. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 35.
  3. Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 454.
  4. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 2.
  5. FICHTE, J. G. Grundlage des Naturrechts, 1796, apud ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 36.
  6. Ob. cit., p. 38.
  7. Ob. cit., p. 43.
  8. STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 154.
  9. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 190.
  10. Grifos do autor.
  11. Ob. cit. p. 198.
  12. Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 334.
  13. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 93.
  14. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 74 a 78.
  15. DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 85.
  16. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 182.
  17. Ob. cit. p. 183.
  18. JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002.
  19. JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002, p. 391.
  20. DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, p. 85.
  21. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 104.
  22. CARRE de MALBERG., Raymond. Teoría General Del Estado. Version espanhola de J. L. Depetre. México: Fondo de Cultura Economica, 1948, p. 989.
  23. Ob. cit. p. 1021.
  24. DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva.
  25. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 55.
  26. Ob. cit., p. 67.
  27. Ob. cit., p. 76.
  28. Ob. cit., p. 118.

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2001.

CARRE DE MALBERG, Raymond. Teoria General Del Estado. Version espanhola de J. L. Depetre. México: Fondo de Cultura Enonomica, 1948.

DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2003.

STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

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Sobre a autora
Débora da Silva Roland

professora da graduaçã em Direito na Universidade Santa Úrsula, professora dos cursos de MBA da Fundação Getúlio Vargas, mestranda em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROLAND, Débora Silva. A dimensão humana do Estado:: o povo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 451, 1 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5767. Acesso em: 29 mar. 2024.

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