I – OS DELITOS
Os romanos conheciam duas espécies de ilícito penal: os crimina ou atos lesivos ao interesse público, cuja punição era objetivada por penas públicas, corpóreas e pecuniárias e confiadas à iniciativa do Estado, e os delicta que ofendiam somente o interesse privado, sancionados que eram através da iniciativa particular, com a pena privada pecuniária ou, civilmente, com o ressarcimento do dano patrimonial. Os crimina eram o domínio específico do direito romano; os delicta são reparados por árbitros investidos após solicitação aos órgãos competentes da jurisdição civil(jurisdictio).
Lecionou Roberto de Ruggiero(Instituições de direito civil, volume III, terceira edição, tradução de Ary dos Santos, pág. 383) que assim como do contrato os romanos não têm uma noção abstrata e geral, mas conhecem só simples figuras concretas, o mesmo se dá com o delito. Distinguindo os delitos públicos dos privados, conforme a pena, de que o ato ilícito era punido, fosse estabelecida no interesse do Estado e tivesse um caráter público, ou fosse privado para vantagem da pessoa ofendida, não chamavam os romanos delito(no campo do direito privado) qualquer ilícito lesivo ao direito alheio, mas só alguns fatos determinados, originando a obrigação de reparar o mal produzido. Delitos privados são para eles apenas o furto, a rapina, o damnum injuria datum, a injúria, isto é, fuguras concretas e específicas de lesões. Há ainda, ao lado das ações que destas nascem, outros remédios mais gerais dados a quem seja prejudicado por um ato ilicito não pertencentes a um desses tipos: assim a doli, que se destina a sancionar um comportamento doloso em geral. Mas a lacuna, como disse Ferrini, resultante daquela restrita enumeração dos delitos, não era de todo preenchida, porque faltava uma ideia abstrata e geral do delito privado.
Os modernos, por sua vez, dizem claramente: "não ha delito civil se não houver dano".
Por sua vez a repressão aos delitos privados era caracterizada pela ideia de que o delinquente respondia pelo delito a que era responsável; e não ao grupo ao qual pertencia. O delinquente era o responsável. Aliás, os autores destacam que Roma desconheceu a responsabilidade coletiva, encontrável, na maioria dos povos da antiguidade, em virtude da qual todo o grupo familiar do delinquente suportava a vingança do grupo familiar da vítima e só se exonerava se expulso o culpado. Devia a vítima, para obter a reparação e punição, recorrer ao Estado, não tendo o ofendido, a princípio, o direito de fazer justiça com as próprias mãos.
Destaca-se que a responsabilidade delitual no direito romano, já era individualizada e sancionada pelo Estado.
No direito romano, o delinquente condenado era, em certos casos(fur manifestus), adjudicado pelo magistrado à vítima. O seu corpo respondia, portanto, pelo delito. Em outros casos(iniuria grave), era lícito o talião e ainda em outros era a pena pecuniária(poena) a punição adequada. Foram, após, abolidos a addictio do delinquente e o talião, e todos os delitos passaram a ser sancionados por uma pena. A actio poenalis era a ação destinada a condenar o réu a pagar uma quantia à vítima.
Nos ensinamentos de Gaio e Justiniano as obrigações ex delicto eram as que nasciam do furto, do roubo, do dano e da injúria.
No começo da época clássica, o pretor criou novas figuras dos delitos que não eram contemplados no antigo direito civil.
O furto, furtum, era um delito perpetrado contra o patrimônio que consistia em subtrair coisa alheia ou em considerá-la como própria contra a vontade do proprietário. A princípio, ensinam os estudiosos, o furto era simplesmente a amotio rei, isto é, a subtração da coisa. Mais tarde, consistia tal delito em desviar a coisa em proveito próprio e desde então, em vez do requisito da amotio rei, exigiu-se algo mais vasto: a contrectatio rei(contrectatio fraudulosa rei alienae). Assim Justiniano classificava o furto: furtum rei, furtum usus e furtum possessionis, isto é, a subtração da coisa, uso ilícito e ainda a apropriação indébita.
No direito clássico, os elementos do furto eram, além da contrectatio, a consciência de agir contra a vontade do proprietário(dolus malus, affectus furandi, animus furandi), o intuito do lucro(lucri faciendi causa) e a falta de consentimento do dominus, salvo no caso do furtum possessionis. A subtração da coisa alheia feita para arremessa-la no mar não configurava o furto, como ainda não configurava a subtração feita na crença de que o proprietário a consentiria ou na suposição errada de agir conta a vontade do proprietário.
O objeto do furto poderia ser uma pessoa livre: o filius famlias, a uxor in manu, o iudicatus. Mas, em geral, era uma coisa móvel, pois o direito clássico repeliu o furto de imóveis, embora admitido.
O furto era cometido, não apenas contra o proprietário da coisa, como ainda contra quem tivesse interesse na não subtração dela(cuius interest salvam esse, licet dominus non sit), como o credor pignoratício, o locatário e o comodatário. O proprietário poderia perpetrar o furto se subtraísse a própria coisa de seu credor pignoratício, do possuidor de boa-fé ou de quem tivesse direito de retenção sobre ela.
Havia no direito clássico duas espécies de furto: o furtum manifestum e o furtum nec manifestum.
Fala-se no furto manifesto ou flagrante quando o ladrão fosse surpreendido no momento do delito ou posteriormente, quando transportava a coisa furtada. Agravava-se quando fosse realizado à noite ou à mão armada, casos em que o ladrão podia ser morto, após convocado o testemunho das pessoas presentes(ploratio); nos demais casos, o ladrão, se livre, era açoitado e adjudicado à vítima, se escravo, açoitado e lançado da rocha tarpeia e, se impúbere, açoitado e condenado a reparar o prejuízo segundo a decisão do magistrado. Todavia, admitia-se sempre a composição voluntária(pacto) entre o ladrão e a vítima, a qual se objetivava o pagamento de uma indenização. Sofria as sanções do furto manifesto o ladrão em cuja casa fosse encontrada a coisa furtada, durante uma investigação solene que seria empreendida pela vítima.
Se o furto não era manifesto, a vítima devia provar o delito pela actio sacramenti; o juiz ordena que o ladrão pague o dobro do valor do dano ou, na falta de acordo sobre o quantum, o dobro do valor da coisa. No furto não manifesto incorre ainda quem ajudou ou instigou o ladrão.
O furtum conceptum e o furtum oblatum constituíam pressupostos de certas ações especiais. O primeiro ocorria quando a coisa furtada fosse procurada e descoberta em poder de um terceiro, na presença de testemunhas; o segundo quando a coisa furtada fosse entregue a um terceiro que a recebia de boa-fé. A actio furti concepti e a actio furti oblati puniam com o triplo do valor da coisa o receptador e o detentor de boa fé da coisa roubada, quantia que esse último podia recuperar do ladrão.
O pretor manteve a pena do dobro do valor para o furtum nec manifestum(actio furti nec manifesti) e a do triplo para o furtum conceptum e o furtum oblatum, mas aboliu a pena privada corpórea e a composição voluntária no furtum manifestum, punindo o ladrão livre ou escravo com o quádruplo do valor da coisa furtada e depois do valor do interesse que tinha a vítima em não ser furtada(actio furti manifesti). Criou, outrossim, a actio furti prohibiti e furti non exhibiti contra quem não permitiu levar a coisa furtada encontrada em seu poder. Todas estas ações furti concepti, furti oblati, furti prohibiti e furti non exhibiti desapareceram no direito de Justiniano, que pune com réus de furto não manifesto todos aqueles que, de forma consciente, receberam a coisa furtada.
O furto, no direito de Justiniano, torna-se, em casos mais importantes, um delito público, assumindo o caráter que tem na atualidade.
Por sua vez, a rapina(vi bona rapta) era um furto agravado pelo emprego da violência. O seu agente era considerado um improbus fur ladrão malvado. O pretor sancionou a rapina com uma ação especial, a actio vi bonorum raptorum, que era no quádruplo intentada no ano de delito e depois in simplum. No direito clássico se admitia com frequência que a actio vi bonorum raptorum pudesse ser cumulada com a rei vindicatio e a condictio.
A figura do delito civil de dano surgiu com a Lex Aquilila.
Poderia envolver certas hipóteses particulares, como se via na Lei das XII Tábuas: o incêndio de coisa alheia, por negligência, reprimido pela actio de aedibus incensis; a fratura de um osso de um escravo, punido por uma multa de 140 asses, dentre outros casos identificados pela doutrina; fazer pastar o animal em terreno alheio, sancionado pela actio de pastus ecoris; cortar árvore alheia, punido com multa de 25 asses(actio de arboribus succisis).
A lei Aquilia, de data incerta, mas já existente no meado do século II a.C, estabeleceu que quem houvesse morto, com dolo ou negligência, um escravo ou um animal alheio pertencente a um rebanho, deveria pagar ao proprietário o valor máximo que ele atingisse, no ano anterior à morte; punia o credor acessório que remitisse uma dívida com prejuízo para os outros credores, sancionava os danos materiais menos graves do que a morte, causados ao escravo ou animal de rebanho e ainda a destruição de coisa alheia, sendo a multa, neste último caso, consistente no mais alto valor que a coisa atingisse nos trinta dias anteriores ao delito.
No direito romano, viam-se os dois elementos do delito de dano: a iniuria, ou seja, uma atividade ilícita, excluída, portanto, a legítima defesa e o damnun corpore corpori datum, isto é, a circunstância de o dano dever ser o causado diretamente pelo agente a coisa, com um ato material e positivo seu. Não constituiria dano dar uma ordem de cujo cumprimento resultasse a morte ou então entregar ao louco uma arma com que se feria. No direito clássico, com a palavra iniuria se quer significar a culpa e exige-se que o dano haja ocorrido em virtude de uma imprudência ou negligência oriunda de um fato positivo(culpa in commitendo), embora muito leve(in lege Aquilia culpa levíssima venit); o dano fortuito(casu) não é delito. O dano compreende a deterioração, contanto que acarrete prejuízo pecuniário ao proprietário. O pretor concedia ações úteis quando o dano não era causado in corpori, isto é, quando o escravo era morto pela fome, e as torna acessíveis ao possuidor pignoratício e aos peregrinos. Mas só o direito de Justiniano é que admite que o dano possa ser causado corpori, quase transformando a actio legis Aquiliae, intentada diretamente, utilmente ou in factum, numa ação geral de ressarcimento do dano extracontratual. A condenação ao mais alto valor da coisa já compreendia, no direito clássico, todo o prejuízo que o proprietário sofresse, além da mera aestimatio corporis, chegando a jurisprudência romana a conceber a moderna noção de dano e de perdas e danos, com o seus elementos: damnum emergens e o lucrum cessans.
A actio legis Aquilieae era uma ação in simplum contra quem confessava e in duplum contra quem a negava sem razão. Dai o seu caráter reipersecutório.
A iniuria, no direito romano, era vista como atentado à pessoa física ou moral do cidadão. Essa noção completa não existia à época das XII Tábuas.
A iniuria podia ser atroz por diversas razões: pela própria gravidade do fato, como um ferimento ou golpe, pelo lugar quando, por exemplo, realizada em teatro ou praça pública, ou pela posição do injuriado(ex persona), se é um magistrado, um senador.
Havia diversos casos de injuria indireta: o dominus podia processar quem viesse a inflingir maus tratos a escravo seu: o pai, o marido, o noivo e o herdeiro podiam acionar o ofensor respectivamente dos filhos in potestate, da mulher, da noiva e do defunto. Aos próprios filhos era licito, entretanto, em certos casos repelir, por si próprio, a ofensa recebida.
A actio iniuriarum era infamante e vindictam spirans, portanto, intransmissível ativa e passivamente. O próprio ofendido era quem estimava a ofensa.
A Lei Cornelia de iniuris, de 81 A.C, instituiu um iudicium publicum de re privata para julgar os casos mais graves de injúria, como golpes e ferimentos e a violação de domicílio.
As figuras que o pretor criou, no início da época clássica, foram a coação(metus), o dolo(dolus) e a fraude a credores(fraus creditorum).
A actio metus era concedida contra o autor da coação e quem dela se aproveitou.
A exceptio metus paralisava a ação do coator que reclamava o cumprimento do ato jurídico eivado de coação.
A integrum restitutio in metus era um benefício que o pretor concedia ao coato, após exame do ato jurídico viciado e que o destruía pura e simplesmente sem qualquer pena para o autor da coação.
A ação de dolo era dada contra o autor do dolo, mas não contra quem dele se aproveitasse.
A exceptio dolo repelia a ação do autor do dolo porque o ato fosse inquinado de dolo ou porque a própria ação fosse dolosa. Era, no direito de Justiniano, uma exceção que abrangia inúmeros casos.
A coação o pretor reprimiu com a actio metus, com uma exceptio metus e a in integrum restitutio ob metum. Esta última rescindia o ato doloso, tendo âmbito restrito no direito de Justiniano.
A actio metus era concedida contra o autor da coação e quem dela se aproveitou. De inicio, era penal, pois podia acarretar a condenação no quádruplo do dano causado. Além disso, era ânua, intransmissível passivamente e suscetível de ser dada noxaliter. Tinha algumas características que eram própria das ações reipersecutórias com a possiblidade, no direito de Justiniano, do réu evitar a condenação ao quádruplo restituído a coisa, de acionar os herdeiros do autor do delito na medida de seu enriquecimento, de ser dada in simplum depois do ano e, enfim, a impossibilidade de se poder cumular com outras ações.
A excepti o metus paralisava a ação do coator que reclamava o cumprimento do ato jurídico eivado de coação.
A integrum restitutio ob metum era um beneficio que o pretor concedia ao coato, após ecame do ato jurídico viciado e eu o destruía pura e simplesmente, sem qualquer pena para o autor da coação.
A ação de dolo era dada contra o autor do dolo, mas não contra quem dele se aproveitasse.
A exceptio dolo repelia a ação do autor do dolo porque o ato fosse inquinado de dolo ou porque a própria ação fosse dolosa.
A restitutio in integrum ob dolum rescindia o ato doloso. Mas tinha trânsito restrito no direito justiniâneo.
Para punir a fraude contra credores o pretor instituiu o interdictum fraudatorium , a restitutio in integrum ob fraudem e a actio pauliana.
O interdictum fraudatorium era uma ordem, dada ao terceiro, que adquiriu do devedor insolvente uma coisa corpórea, de restituição ao patrimônio do devedor para possibilitar a execução por parte dos credores. Devia ser concedido no prazo de um ano.
A restituo in integrum ob fraudem rescindia a alienação feita em detrimento de credores.
A actio pauliana cabia ao credor e, no direito de Justiniano, ao curator bonorum, não só contra o devedor fraudulento como ainda contra tercerios que se aproveitassem da alienação.
Para tanto, seria necessário a comprovação do empobrecimento do devedor, oriundo quer de um ato de alienação, quer de uma abstenção(extinção propositada de uma servidão pelo não uso de uma ação temporária etc) não porém de uma recusa de se enriquecer como a não aceitação de uma doação, sucessão ou legado; em segundo lugar, o prejuízo dos credores(eventum damni); em seguida, a consciência da insolvência por parte do devedor e do terceiro adquirente(consilium fraudis, conscius fraudis), salvo se à título gratuito, portanto a anulação do ato apenas evitaria um enriquecimento seu, mas não uma perda. A ação pauliana era uma ação in factum e arbitrária: o juiz só passava à condenação se a restituição não ocorresse.
II – QUASE - DELITOS
Lecionou Ebert Chamoun(Instituições de direito romano, 1968, pág. 413) que têm eles em comum apenas a circunstância de darem origem a ações penais pretorianas. Mas não se sabe com certeza por que razão foram separadas dos demais casos de ações para constituírem uma categoria a parte. A doutrina francesa do século XIX e o Código Civil francês entenderam por quase-delitos os fatos jurídicos culposos e por delitos os dolosos. Essa concepção apresentada não corresponde à realidade do direito romano. O direito civil brasileiro rejeitou a categoria dos quase-delitos.
Justiniano distinguiu quatro espécies:
- O positum et suspensum: contra quem quer que houvesse colocado ou suspenso ou permitido a colocação ou suspensão de uma coisa num edifício de modo que pudesse cair sobre a via pública, atingindo o transeunte, qualquer cidadão podia, sem considerar a intenção do réu, intentar uma actio de positis et suspensis, a fim de multa-lo em até 10.000 sestércios;
- O effusum et detectum: Se de um edifício caísse ou fosse arremessado qualquer objeto que causasse dano ao transeunte, este podia propor contra o morador do edifício, ainda que a culpa fosse de um filho ou de um escravo, uma ação pretoriana de effusis et delectis para obter o dobro do valor do dano sofrido(in duplum). Se um homem livre perecesse, qualquer cidadão podia mover a ação, a fim de cobrar uma multa de 50.000 sestércios; se fosse ferido, era o juiz quem fixava o montante da condenação;
- A responsabilidade do exercitor navis aut cauponae et stabuli pelos furtos e danos. Os comandantes de navio, os donos do hotel ou de estrebaria respondem em duplum pela perda ou dano sofrido pelas coisas depositadas em seu poder ou pelo furto cometido por seus prepostos. Trata-se de um caso de culpa in eligendo;
- Si iudex liltem suam fecerit: o juiz que sentenciou erradamente condenando o réu a mais ou a menos do que a quantia fixada pela condemnatio, ou que faltou de qualquer maneira ao seu dever, não comparecendo ao julgamento ou prevaricando, deve ressarcir a parte lesada com o valor da causa. Basta, no direito justiniâneo, a simples imprudentia para configurar o quase-delito.